Afinando a escuta psicanalítica
Isabella Novello – Regina Celi Bastos Lima
Trata-se sempre de liberar a vida, lá onde ela é prisioneira
ou de tentar fazê-lo num combate incerto
Gilles Deleuze – Félix Guatari
Este artigo saiu nos Cadernos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, v.45, o 48 (janeiro/junho de 2023)
A pandemia nos fez parar. Ganhamos um tempo, uma duração e fomos afetados por uma inundação de questões que irrompiam tanto em nossas reflexões como nos relatos clínicos. Nós e os pacientes – todos sem teto e sem chão. Como uma lente de aumento, a pandemia espelhou o que já se anunciava – um novo mal estar. Percebemos a importância de não negar a invasão destes conteúdos que traziam, claramente, um saber novo a respeito do mundo – um mundo atravessado por mudanças que, inevitavelmente, abalaram os alicerces de nossa compreensão.
Essa ruptura no tempo nos fez perceber como certas circunstâncias da vida e das subjetividades contemporâneas já invadiam nossos consultórios. A sala de análise deixou de ser, há muito, um espaço dominado apenas pela dinâmica intrapsíquica sendo tomada, também, por elementos das profundas e constantes transformações na sociedade. “Podemos dizer que, tanto no registro coletivo como no individual, nas escalas local e global a subjetividade foi virada de ponta a cabeça” (Birman, J 2012).
Historicamente caminhamos de uma sociedade moderna repressora e patriarcal em direção ao neoliberalismo que trouxe com ele uma falsa idéia de autonomia e liberdade sugerindo, de forma sedutora, que o sujeito é livre gestor de si mesmo, sendo o único responsável pelo seu ‘sucesso’ ou ‘fracasso’. Isto é evidentemente um engodo, pois cada ação humana traz em si um conjunto ilimitado de causas. Toda liberdade é limitada. A subjetividade humana se constitui entre a realidade interna e o mundo externo, O neoliberalismo deturpa a verdadeira idéia de liberdade, nega esta dupla dependência do humano.
Diferente da modernidade onde a opressão se dava por meio da repressão e disciplina, hoje, no neoliberalismo a sedução é a arma opressora. O sujeito encantado pela falsa idéia de que o bem estar e o sucesso dependem apenas dele e inebriado pelas imagens de felicidade ampliadas pela tecnologia se engaja numa performance e se lança numa submissão voluntária, na compra de um desejo pronto. Sem perceber o ardil, vive uma artificial positividade e deixa de fora toda negatividade inerente à condição humana, atendendo desta forma a um mandato que vai de encontro aos seus anseios narcísicos.
Vários pacientes que nos chegam expressam sofrimento de não encontrar “um lugar”. São aqueles que não aderiram à servidão e denunciam o engodo ao qual estão submetidos e a impossibilidade angustiante de responder a este mandato. A depressão que invade nossos consultórios sinaliza uma condição anti-performática, contra a corrente. Sabemos que experiências vividas na realidade compartilhada podem aumentar nossa potência de agir como se fossem pontes do eu que vão ao encontro do outro na cultura, fortalecendo a confiança na vida. No entanto, compartilhar é sempre paradoxal e tensional. Quando o ambiente é excessivamente tóxico torna-se mais difícil um bom encontro no sentido Spinoziano.
No Brasil, seguimos submetidos aos alicerces coloniais que nos instituíram. Somos marcados desde nossa fundação por imensas desigualdades. Fomos o ultimo pais a abolir a escravidão e o racismo é estrutural em nossa sociedade. A divisão em castas, cidadãos de primeira classe e cidadãos de segunda classe é bastante óbvia para aqueles que não carregam vendas nos olhos.
Alguns pacientes, mesmo inconscientemente, contestam este estado de coisas e fazem um movimento de adesão ao que se tem nomeado de pautas identitárias. Estas se apresentam como uma forma de engajamento e reação coletiva em busca de pertencimento, necessidade fundamental da condição humana. Sabemos que olhar a experiência humana apenas sob o prisma da identidade é apequenar a imensa diversidade do humano, a busca pelo comum entre nós é o que nos dá esperança de um caminho em direção à uma sociedade mais justa . Ainda assim, nas últimas décadas acompanhamos lutas políticas, sociais e as conquistas essenciais nos longos processos rumo à emancipação. Com indignação observamos atualmente grupos reacionários que, sentindo-se ameaçados, tentam manter ou recuperar seu ‘lugar’ de poder. Como diz P. Preciado: “vivemos um momento contrarrevolucionário. Estamos imersos em uma reforma heteropatriarcal, colonial e neonacionalista, que visa desfazer as conquistas de longos processos de emancipação operária, sexual e anti-colonial dos últimos séculos”.
E a psicanálise diante deste cenário?
É essencial sustentar, na psicanálise atual, discussões clínico-conceituais que nos levem a refletir sobre como nos livrar dos grilhões e de possíveis amarras teóricas que por vezes impedem as errâncias características de um saber sempre em construção.
Será que hoje a psicanálise segue sendo a ‘Peste’?
Provavelmente muitos se lembram do relato sobre esta cena emblemática: Freud chegava às Américas de navio, o porto apinhado de curiosos, saudavam o já ilustre psicanalista. Neste momento ele comenta: “eles nem sabem que estamos lhes trazendo a peste!”
A ‘peste’ que Freud nomeou tomou corações e mentes, caminhou contra a corrente racionalista de então, revelou o inconsciente e legitimou as subjetividades e a sexualidade infantil polimorfa, numa sociedade vitoriana, repressora de desejos e alicerçada em normas culpabilizantes. A ‘peste’ dominou o século XX e interagiu com todas as áreas do pensamento. O sujeito, ferido em seu narcisismo, percebe os limites do consciente e sai em busca de descobertas sobre seus desejos. Freud chama atenção para o mundo interno de cada um, para a relevância do intrapsíquico e para a curiosidade sobre este território escondido.
Freud decifrou com afinco essa dinâmica metapsicológica, trazendo à tona o mal-estar do ser humano, condição básica e estrutural- sou onde não estou- mas sabemos também que esta compreensão é indissociável de um contexto histórico cultural sempre mutante, que traz novas condições para constituição da subjetividade humana. Lembramos a premissa Freudiana de que a psicologia individual é também social. É este eterno movimento que guarda o viés revolucionário inerente à psicanálise – a peste. Nele está contida a potência da psicanálise – a elaboração de um pensamento crítico e a constatação de que a experiência humana acontece sempre num processo tortuoso, sem garantias, com limites e não linear. Não somos senhores todos poderosos em nossa morada psíquica.
Neste momento lembramos um pensamento de Freud: “Estamos ainda no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali, onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.”
Reconhecer hoje o que emerge de comum nos relatos dos pacientes que nos procuram nos levou a afinar a escuta para a expressão dos sentimentos coletivos infiltrados na esfera psíquica individual, sem nos precipitarmos procurando abrigo e conforto no patrimônio teórico já estabelecido. Tendo a clínica como fonte de nossas inquietações, destacaremos uma vinheta.
Vamos chamá-la de Ana, é uma mulher de 49 anos, negra. Nasceu quando sua mãe tinha apenas 17 anos. Passou a infância na casa da avó que abrigava muitos outros parentes. Sua mãe desaparecia por longos períodos, às vezes por anos. Quando esta mãe retornava e Ana manifestava dor por sua ausência, levava surras e era recriminada por criar problemas. Ana foi abusada sexualmente quando criança por parentes próximos e queridos, pessoas em que confiava e de quem esperava proteção.
Aprendemos com Ferenczi que quando o abuso se dá no interior da família, por um adulto percebido pela criança como confiável e não apenas como opressor, dá-se o desmentido no próprio ato desta violência. A criança é lançada numa zona cinzenta, confusa, onde sua percepção é colocada em dúvida e seu sentido de realidade deixa de ser confiável. A desconfiança em si se instala, ela passa a não crer nos próprios sentimentos.
Nesse desmoronar de si mesmo a criança perde sua forma própria, tendo sua capacidade de agir e pensar atingida, aceitando de maneira fácil e sem resistência qualquer forma que lhe dão. Torna-se facilmente submetida ao desejo de um outro – instala-se desta maneira a identificação com o agressor.
Com imensas dificuldades pelo caminho, a droga foi uma delas, Ana conseguiu formar-se em Enfermagem. Nas reuniões do NA conheceu Bianca, que trabalhava na instituição. Pela primeira vez se apaixonou e arriscou uma relação. Bianca, uma mulher branca, loira e de classe média alta, que sem dar-se conta, comportava-se como representante de um mundo repetidor dos processos de opressão e do racismo estrutural. Oferecia-se de guia, julgando falas e atitudes de Ana assim como sugerindo mudanças de estilo e comportamento. Ana viu em Bianca o modelo de sucesso e de saúde, uma meta a alcançar. Engajou-se em um projeto de ‘embranquecimento’. Apesar das conquistas nesta direção, Ana deprimia com frequência e profundamente. Sem entender porque sentia-se tão adoecida, procurou nos medicamentos psiquiátricos e até no eletrochoque solução para sua ”patologia”, sem perceber que a dor pela impossibilidade de performar transformando-se em Bianca era seu grito por saúde, sua busca de Ser.
Durante longo tempo no processo analítico Ana apresentava um sentimento de fracasso e desqualificação, sentia-se ignorante e incapaz de ser como Bianca e seu grupo de amigas. Repetia as acusações e ataques que, frequentemente, eram feitos pela namorada. Sua depressão era percebida por ela como mais um sinal de seu corpo estragado, causador de problemas e provocador de violências. Ana incorpora a culpa do agressor de sua primeira infância, este é reeditado, amalgamando-se ao novo opressor que surge na figura de Bianca.
A busca por análise se dá no desespero de não conseguir corresponder ao mandato de submissão e adaptação patológica. Na relação analítica o risco de uma aposta na confiança do setting era torturante. Estava em jogo recuar defensivamente ou arriscar aprofundar-se no vínculo com a analista legitimando a confiabilidade numa relação de não submissão.
Aos poucos surgiram dúvidas na certeza monolítica da autoimagem de Ana – um novo olhar que não a trazia como causa imediata e exclusiva de suas dores… Talvez um fio de esperança na direção de encontrar um lugar para viver por si mesma. No campo analítico uma nova experiência se apresenta marcando algum distanciamento da identificação com o agressor. Ana começa a perceber que foi uma criança que sofreu abusos de toda sorte. Surge uma enxurrada de memórias. A analista passa a ser testemunha destas cenas configurando um importante momento transferencial.
Nessa avalanche de memórias, Ana segue desvendando seu olhar, compreende que sua mãe também havia sofrido violências, e que toda sua família, de alguma forma, era vítima de diversas violências. Foi ficando cada vez mais claro que a paciente dividia o mundo em dois grupos distintos: um ao qual ela pertencia e outro que descrevia como ‘as pessoas que moravam do outro lado da rua’, o lado arrumado, das pessoas não estragadas. Aos poucos esse olhar para o mundo vai deixando de ser uma visão delirante e desqualificadora de si e de seu universo para caminhar em direção a uma percepção mais realística do mundo real opressor ao seu redor. A descrição de Ana nos faz lembrar de F. Fanon quando fala sobre a ocupação colonial, diz ele : “ a cidade do colonizado é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação, lá eles nascem, pouco importa onde ou como, morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço, os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada.” Assim era também a casa de Ana, todos apinhados, com fome, sem sapatos. Dormiam uns sobre os outros, o sexo acontecia nesse amontoado, sem distinção, privacidade ou cuidado com a infância.
Consideramos que o reconhecimento e validação por parte da analista, de que a percepção de Ana correspondia a uma realidade compartilhada foi essencial. Ana foi se apropriando de ‘um lugar’. Conseguindo conferir valor ao grupo no qual sente-se hoje pertencendo. Não oferecer esta validação, em análise, poderia desconsiderar situações abusivas que ocorrem no campo social favorecendo a reedição de experiências traumáticas vividas pela paciente em suas relações primitivas. Diante dessa compreensão poderíamos pensar num aspecto da clínica que age no sentido de enfraquecer ou destituir o opressor no interior do oprimido.
O adoecimento revelado no dia a dia de nossos consultórios aponta para um sofrimento que passa por instâncias políticas, jurídicas, econômicas, religiosas e psicológicas. É na clínica – nosso campo soberano de investigação e atuação – que se constata os atravessamentos deste sofrimento coletivo infiltrado na esfera psíquica individual.
Inspiradas por Ferenczi, entendemos a importância de reconhecer, no encontro com o paciente este aspecto abusador e patologizante do ambiente, em especial para determinados corpos considerados de menor valor no imaginário social como o corpo do pobre, do trabalhador precarizado, do refugiado, do negro, do indígena, da mulher, da população LGBTQI++, entre outras minorias ou maiorias minorizadas. Negar a toxicidade neste círculo expandido do ambiente, para além da família nuclear, poderia nos colocar no lugar do desmentido Ferencziano?
Pensamos ser essencial afinar nossa escuta para favorecer o paciente a lidar com o risco constante da colonização de sua subjetividade e, sobretudo, perceber seus sintomas – formações do inconsciente que nos informam a respeito dos sofrimentos psíquicos de cada indivíduo – também como expressão do sofrimento coletivo. Considerando a potência desses sintomas como denúncia, como arma, como reação a um sistema profundamente opressor.
Inspiradas por Suely Rolnik, entendemos que não há mudança possível de uma forma de realidade e seus respectivos sintomas sem que se operem mudanças no modo de subjetivação dominante. Sob esta lente poderíamos considerar nosso ofício como aliado de uma luta micropolítica. Uma luta pelo direito de existir ou, mais precisamente, o direito à vida em sua essência de potência criadora. Luta que tem como alvo a reapropriação da força vital, frente à sua expropriação pelo regime capitalista-neoliberal .
Possivelmente aqui mora a psicanálise como ‘peste’.
Referências
Birman, J. F. O sujeito na Contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021
Birman, J.F. Mal estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Record, 1999.
Foucault, M. História da sexualidade: a vontade de saber. ( vol.1, 16a Ed.) São Paulo: Graal, 1976
Winnicott. D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro. Imago Editora LTDA, 975
Rolnik, S. Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo : n-1 edições. 2018
Ferenczi, S. Obras completas. São Paulo, Martins Fontes 1992
Gondar, J. e Reis, E.S. Com Ferenczi: Clínica, Subjetivação, Política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.
Mbembe, A. Necropolítica : Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
Fanon, F. Os condenados da terra. São Paulo: Civilização brasileira,1968