Sonhando a dança dos saberes
há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora
Ana Martins Marques
Saindo da vigília
Como está o estatuto dos estudos transdisciplinares que envolvem o sonho, confluindo ciência, psicologia, antropologia e ciência, para citar algumas das áreas envolvidas? Vamos passar por alguns desdobramentos recentes para chegar em um argumento que radicaliza o caráter transdisciplinar dos sonhos.
Algo hipnagógico
Este ano completa-se 10 anos do lançamento do meu livro Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica. O livro foi resultado de uma tese de doutorado na História das Ciências das Técnicas e Epistemologia na UFRJ defendida em 2012. Vejamos o caminho que culminou no livro.
Eu me formei em psicologia, cujo contato com a Dra. Nise da Silveira me fez ser estagiário e, em seguida, coordenador cultural da Casa das Palmeiras, em que as relações peculiares de Nise ao longo da Psicologia Analítica, a filosofia de Spinoza e afins, me fez adentrar nos estados extremos dos clientes que possuem singularidade psíquica, incluindo, claro, seus sonhos. Junto a isso, estabeleci um trabalho de consultório e de acompanhamento terapêutico – que consiste em acompanhar os clientes que mais se beneficiariam com essa modalidade clínica para rua, fora do consultório -, já muito influenciado pela esquizoanálise de Deleuze e Guattari, ou seja, pelas mais belas ressonâncias da clínica com a filosofia. No entanto, para dialogar com a ciência com a consistência devida, em meu mestrado, doutorado e pós-doutorado, fui orientado pelo saudoso físico Luiz Pinguelli Rosa, que veio a escrever o prefácio do Ontologia Onírica. Na banca de doutorado, estavam lá o cosmólogo Mario Novello – que, no ano seguinte, escreveu a orelha do meu livro -, o filósofo Auterives Maciel, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o matemático Ricardo Kubrusly e a neurobióloga Maira Froes. Se insisto aqui nesses detalhes, é para cultivar no agora a ousadia do departamento em permitir uma banca desse nível de heterogeneidade, o que levou a uma discussão tão acalorada e quanto rica.
No livro lançado em 2013, filosofia da diferença (que privilegia os devires, ou seja, a mudança que muda, crítica ao dualismo e seus desdobramentos, como a representação), a ciência (sobretudo a mecânica quântica e a cosmologia, que é o estudo do desenvolvimento histórico do universo), a espiritualidade (naquela época, a ênfase era no hermetismo, uma prática espiritual europeia com influência egípcia, dos primeiros séculos da Era Comum) e a arte (passando pela literatura, artes plásticas e cinema contemporâneos) eram colocadas em ressonância para pensar o estatuto de realidade dos sonhos. No livro, lançamos nosso campo conceitual e experimental transaberes, em que a transdisciplinaridade é aplicada na vida cotidiana.
O que apreendíamos então enquanto realidade dos sonhos era, de um lado, fazer uma crítica à interpretação dos sonhos da psicologia e suas derivações, como a psicanálise e do funcionalismo reducionista que neurociência majoritária delegava aos sonhos, a saber, um mero protetor dos sonhos. A partir da filosofia de Henri Bergson, María Zambrano e a esquizoanálise, nossa concepção de sonho é que ele é real, mas sutil e que ele deveria servir menos como algo a ser interpretado e mais como uma instância de cultivo de devires na vigília, trazendo novos possíveis.
Sonhos lúcidos?
Nesses últimos 10 anos, o que ocorreu nos transaberes da pesquisa no campo onírico e afins?
Os estudos do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro vêm atraindo muita atenção, sobretudo pela abrangência de seus temas. Ele trabalha com psicanálise, filosofia enteógenos e afins. Se, de um lado, os estudos científicos relacionados à psicodelia ganham força, por outro, parece que a ciência legitima o uso de psicotrópicos como uma espécie de concessão da razão para descansar brevemente de si própria, posto que o junky foi praticamente expulso pelo avanço do capitalismo não só da academia, mas até mesmo das artes. No entanto, cabe aqui o contrapeso do livro Somos nosso cérebro? de Vidal e Ortega que revela a redundância de grande parte das pesquisas em neurociências ao afirmar que estas não sobrevivem a um simples “e daí?”.
A filosofia da diferença ganharia um desdobramento com a antropologia de Tim Ingold. O antropólogo propõe, entre muitas outras brilhantes ideias, substituir o entre (entre sujeito e objeto, Natureza e cultura, conteúdo e expressão etc., que serviria de dispositivo problematizador do dualismo) de Deleuze & Guattari pelo ao longo de na itinerância, com isso, ganhamos mais inclusão e mais intimidade com o que os filósofos chamam de imanência, ou seja, uma filosofia do aqui e agora, sem dualismo e nenhuma transcendência: sem intangíveis, eternidade e imutabilidades. Ingold ainda propõe se inspirar mais no micélio fúngico que no rizoma da botânica, para pensar o conceito filosófico do rizoma de Deleuze & Guattari – que propõe uma plasticidade intensa, uma espécie de modelo instável que foge aos modelos tradicionais – no sentido que na botânica, o rizoma seria uma espécie de clonagem, muito suscetível, por exemplo, aos ataques de uma praga, ao passo que nos fungos essa plasticidade ocorre de fato com muita desenvoltura.
Dois livros lançados no mesmo ano da minha defesa trariam muita consistência para o percurso a seguir: os estudos sobre esoterismo na academia ganhariam uma metodologia inédita com Esoterism and the Academy do historiador Wouter Hanegraaff e nas confluências ao longo da filosofia da diferença e hermetismo, seria publicado o livro Hermetic Deleuze do filósofo Joshua Ramey, ambos reforçando e desdobrando nossas propostas do Ontologia Onírica.
Em relação à mecânica quântica, um estudo que já apontávamos brevemente no Ontologia Onírica ganharia uma maior atenção nossa: a Interpretação Transacional de John Cramer e seu desdobramento com Milo Wolff. A partir dela, a afirmação esotérica “tudo é vibração” ganharia um estatuto científico mais robusto com sua proposta instigante que a partícula elementar, na mecânica quântica, seria, na verdade, uma onda esférica estacionária, ou seja, tudo é onda, de modo que a partícula é uma onda parada e que vibra menos. O que ocorre é que nossos sentidos e aparelhos de medidas apreendem tal onda de modo reducionista, ou seja, enquanto “partícula”.
Já o uso do termo oriundo da mecânica ondulatória, a ressonância,na pesquisa transdisciplinar, popularizado pelo filósofo Gilbert Simondon, tão caro para nossa pesquisa, ganha tratamento sociológico com Harmut Rosa com seu livro Ressonance, ao afirmar que a resposta para uma sociedade cada vez mais ansiosa dada à velocidade dos acontecimentos, seria justamente a ressonância ou a capacidade de vibrar com o outro, no lugar da lentidão. Os estudos transdisciplinares do músico experimental Tato Taborda, que com seu livro Ressonâncias,utiliza Rosa e amplia seu alcance.
Já no Ontologia Onírica havia a proposta da prática da assimilação onírica, uma espécie de alternativa à ditadura da interpretação dos sonhos na psicologia. Na assimilação onírica, a ideia é apreender as imagens oníricas como uma extensão da vigília, sempre partindo da questão “como seria esse sonho acontecendo aqui e agora?” e desdobramento suas ressonâncias. Tal prática se desenvolve em meus cursos e eventuais atendimentos com resultados muito significantes.
Vórtex onírico
Tais atualizações culminaram em meu novo livro, de 2021, Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica, em que as ressonâncias são apreendidas em um viés puramente vibracional. Como apreendemos o sonho através do vórtex?
Pode gerar alguma surpresa, mas o estatuto onírico agora ganha uma realidade ainda mais peculiar: toda uma relação com as vibrações mais sutis, de modo que aqui se instala a crítica mais precisa ao processo em que o sonho se “disciplinarizou”, perdendo grande parte de sua potência na contemporaneidade.
A questão seria mais como nós nos relacionamos com as vibrações mais sutis, que são mais difíceis de apreender, dada a insensibilidade secular e racional a elas: se essa relação se dá em um contexto artístico, ela é chamada de inspiração, se surge em um contexto acadêmico, é chamada de insight, se ocorre em um contexto espiritual, é chamada de mediunidade e se emerge durante o sono é chamada de sonho.
Sendo assim, nosso trabalho é evitar que a apreensão das vibrações mais sutis perca sua precisão ao ser alocada no campo específico de uma disciplina, seja ela a ciência, a arte, a psicologia ou mesmo a espiritualidade e restringida ao sistema de crença de cada uma delas. O coração do trabalho em transaberes é lidar com as vibrações mais sutis com o máximo de precisão possível, prescindindo até da linguagem, se for o caso. Para tanto, desenvolver uma meditação transaberes é da máxima importância: tarefa que chamamos de exercício em vórtex.
Com isso, estamos com uma proposta que menos promove uma relação entre os saberes, e mais habita o campo ao longo deles, na faixa vibracional em que ele não se separam e essa faixa é um trampolim para o impensável, o inominável, cuja intimidade com eles pode emergir uma nova poética em transaberes, que chamamos poestÉticaos.