Transaberes enquanto indissociabilidade de clínica e educação
É preciso modular a atenção para chegarmos no campo pré-linguístico, adimensional e atemporal. Assim, apreenderemos com mais precisão a indissociabilidade entre clínica e educação.
É evidente que podemos pensar, dançar e depois pensar o contrário. É evidente, enfim, de novo, insisto, que podemos explicar, mas é melhor não. Gonçalo M. Tavares
Antes de mais nada, é preciso deixar algo bem claro: INEXISTE A SUBJETIVIDADE, no sentido que o termo é impreciso. É bem verdade que Félix Guattari[1] tentou desassociar “sujeito” de “subjetividade”, mas podemos ir além.
Se queremos, de fato, problematizar todos os dualismos, nos desviaremos das noções de sujeito e objeto, ressoando com campos relacionais, ressonâncias que possuem emaranhados, ou melhor, vórtexes, que são auto-organizações de vibrações autossimilares (fractais) com níveis diferentes de permeabilidade.[2] O máximo de modulação dessas vibrações é ético, realizada de acordo com o problema.
A subjetividade, então, inexiste, no sentido de produção psíquica de indivíduo “puro”, assim como inexiste um psiquismo enquanto “objeto”, enquanto oriundo de uma “mente individual”.
Por desdobramento, inexiste uma “objetividade”, no sentido de foco no objeto. Objeto é um recorte que o pensamento faz num campo, mas enquanto indissociável do seu campo, esse recorte será sempre impreciso. Existe, pois, emaranhados de vibrações, ou seja, vórtex, sendo que a consciência modula sua atenção, emergindo com isso a percepção, o que é mais preciso do que dizer que se “faz um recorte”. Tal modulação pode se iludir supondo que sua atenção é focada em um objeto, mas ela apenas dá ênfase a certos emaranhados de vibrações, indissociáveis do restante, do cosmos.
Se inexiste objetividade, há, no entanto, precisão. Precisão é se ater ao que é, sem se perder nos ruídos linguísticos e se ater ao que é apreender que o ser deve ser substituído pelo devir, ou seja, inexistem essências, mas mudanças que mudam.
Aqui chegamos em outro ponto importante: é preciso dar menos valor à linguagem. Já apreendemos que ela possui comportamento viral,[3] ou seja, a linguagem vai tomando seus hóspedes de modo que eles prescindem de se questionar sobre ela. A linguagem é uma ferramenta que possui utilidade em certos campos, mas acabou por se tornar uma espécie de mediadora universal das relações humanas, o que urge ser problematizado de modo pragmático. A mediação pela linguagem facilita a produção de dualismo e aumenta a chance do vórtex se dessensibilizar das potências imediatas da vida.
É preciso modular a atenção para chegarmos no campo pré-linguístico, adimensional e atemporal. Assim, apreenderemos com mais precisão a indissociabilidade entre clínica e educação.
Corremos o risco de nos alongarmos desnecessariamente se nos atermos às ditas “psicopatologias”, ou, como preferimos, singularidades das vibrações mais sutis que restringem as modulações. A esquizoanálise opera satisfatoriamente nesse âmbito, mas acrescentaríamos, para além da importância de tornar ética a permeabilização do psiquismo, ou seja, das vibrações mais sutis, a relevância de cultivar um corpo biológico saudável, pois muitas das ditas “psicopatologias” emergem, por exemplo, do desequilíbrio da flora intestinal.[4] No entanto, há muito que se descobrir acerca do “apaziguamento do sofrimento psíquico”, para usar uma expressão imprecisa, à luz das modulações que trataremos aqui.
Educação é, sobretudo, modular o foco da atenção.[5] Transmitir conhecimento é, perante a modulação da atenção, secundário. Transmitir conhecimento tem algo de petulante, além de negligenciar o potencial criativo do “aluno”. O conhecimento deve ser menos transmitido e mais suscitado, transduzido[6] em sabedoria, um cultivo a aprender a aprender.[7] A sabedoria se adquire quando se modula no nível pré-linguístico, adimensional e atemporal. Alguns sábios chamam isso de “iluminação”, termo que pode induzir a incompreensões; Spinoza, em sua Ética, chama de intuição, ou seja, apreender-se imanente ao todo, ainda que, com Bergson e outros, saberemos ser esse todo aberto, em devir, que chamamos de Unidade Dinâmica.
É preciso apreender que enquanto pré-linguístico estamos conceituando um campo em que a linguagem é desnecessária, o que é diferente dizer que ela deva ser negligenciada. Como foi dito, em muitos campos a linguagem é até imprescindível, mas estamos interessados no âmbito do atemporal e adimensional em que ela é desnecessária. Chamaremos esse âmbito atemporal, adimensional e pré-linguístico de instância de vibração máxima.
Atingir a instância de vibração máxima é o esplendor tanto da clínica quanto da educação. A psicologia, a psicanálise, a neurociência etc., falham em atingir a instância de vibração máxima, apenas ocorrendo em picos de modo acidental, por postularem dualismos, que, por sua vez, impedem uma experiência mais íntima ou de platô com a instância de vibração máxima. Uma clínica precisa desvia-se dos dualismos, apreendendo uma imanência. Clínica e educação ambicionam sabedoria. A educação tradicional busca acúmulo de conhecimento. A clínica tradicional busca um bem-estar e/ou uma adequação forçada a determinado modelo de aparelho psíquico. Esses modelos fracassaram.
O bem-estar é impossível para o vórtex que está alheio aos problemas contemporâneos. As guerras híbridas[8] e seu desdobramento em guerras cognitivas,[9] hackeiam os vórtexes de modo a controlarem suas vibrações mais sutis para interesses outros: consumo, colocar uns contra os outros para gerar desagregação social etc. O vórtex rotula automaticamente os demais vórtexes por emitirem opiniões diferentes das suas. Negligenciam que uma cúpula de Controle Transnacional[10] manipula sua cognição, interesses, afetos etc., ou seja, a sua atenção é modulada pelo Controle Transnacional. Uma educação e uma clínica tradicionais são ineficazes diante desse nível de manipulação. Apenas uma intimidade crescente com a capacidade de modulação permite desviar-se do Controle.
Uma proposta pragmática para uma crescente modulação das vibrações é a prática do exercício em vórtex, que apreende as modulações do corpo orgânico e das vibrações mais sutis, junto a um processo de autoinquirição do Advaita Vedanta indiano, permitindo uma modulação rumo à experiência em platô – mais estável que a de pico – à Consciência, ou, em nossos termos, à instância de vibração máxima.
Toda educação e toda clínica devem partir disso, da proficiência na modulação. Assim, o vórtex consegue se desviar do controle. É sem sentido pensar que existe um locus exclusivo da educação e outro da clínica. A capacidade de modulação conflui ambas.
Se a psicologia falhou em trabalhar a política e a sociologia falhou em pensar as singularidades, é sabido que ambas emergem na instância de vibração máxima, pois até o espaço-tempo emerge nela. A partir disso, apreendemos que a política que emerge daí é uma auto-organização cósmica, ou, como chamamos, uma anarquia sagrada. Uma política que emerge da instância de vibração máxima é destituída de ideologia, seja “de esquerda” ou “de direita”. Nenhum processo clínico-educacional deve ser permeado por ideologias, caso contrário perde-se a espontaneidade, a criação natural.[11] Em termos de processo clínico-educacional, preferimos trazer os transaberes.
A partir dos transaberes, ou seja, da confluência ao longo da filosofia, ciência, arte e mística, apreendemos a univocidade, a imanência, a indissociabilidade entre clínica e educação. Para isso, é preciso uma transdução de todo o processo clínico e educacional. Devires que emergem a partir dos transaberes habitam o vórtex que ressoa no limiar vibracional anterior[12] à taxonomização do saber em disciplinas.
Abdicar com consistência dos dualismos, envolve desviar-se da postura do antidualismo. O antidualismo é o “morrer na praia” da problematização do dualismo, o dualismo mais insistente e perigoso, no sentido de promover um dualismo entre dualismo e antidualismo. Nossa postura é menos negar o dualismo e mais problematizá-lo, no sentido de sabê-lo imanente, ou seja, de apreendermos que a organização em dois é possível enquanto certa apreensão, limitada e ilusória, denunciando a sua imprecisão. O que existe é uma percepção, enquanto organização das vibrações, em dois (ou mais) vórtexes, que são emaranhados imanentes, contínuos uns aos outros: “sujeito e objeto” são apenas emergências contextuais ilusórias no campo relacional; “Natureza e cultura” são emergências contextuais ilusórias na experiência; “conteúdo e expressão” são emergências contextuais ilusórias na inflexão contínua;[13] “tempo e espaço” são emergências contextuais ilusórias na instância de vibração máxima, assim como uma educação “pura” e uma clínica “pura” são emergências contextuais e ilusórias nas ressonâncias éticas ao longo dos vórtexes.
Assim, à luz dos transaberes, deixa de fazer sentido conceituar a partir de uma educação ou de uma clínica, já que ambas convergem no que os transaberes se propõem, ou seja, adquirir intimidade com a instância de vibração máxima, modulando a atenção e ganhando precisão, intuindo. Cabem aos clínicos e educadores, à medida que intensificarem as ressonâncias com os transaberes, ganharem proficiência em seus fazeres e na vida como um todo, na ampliação da modulação das vibrações.
O problema das nomeações é contornável. Se alguém expressa, à luz dos transaberes, uma educação que é também clínica, considera-se então um educador, clínico ou o quê? Um vórtex que possui uma formação e/ou prática de, digamos, clínico, seja ele terapeuta psicológico ou cirurgião, vai exercer seu fazer, por exemplo, uma cirurgia, ciente de que aquele corpo terá ressonâncias da cirurgia tanto em todo o seu aspecto biológico como em suas extensões em vibrações mais sutis e que isso ressoará em suas relações com seu campo, sabendo que tais ressonâncias se estendem a todo o cosmos, com intensidades diferentes. Quem possui proficiência nos transaberes é, para eleger um nome qualquer, um vortexeador. Nada impede que seja um vortexeador cirurgião, um vortexeador professor etc. A especialidade deve ser atravessada pelos transaberes, imanente e passível de uma capacidade cada vez mais ampla de modulação.
Emergir uma clínica e uma educação em transaberes é menos uma taxonomia de práticas e mais uma dissolução de taxonomias, de modo que, mais do que “educar” ou “curar”, estamos cultivando uma ética.
Notas
[1] Micropolítica: cartografias do desejo, Guattari & Rolnik. Estamos muito interessados nas contribuições da esquizoanálise de Deleuze & Guattari, mas do que qualquer psicologia ou psicanálise.
[2] Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica, Nelson Job. Nesse livro, desdobramos intensivamente os conceitos de transaberes, Unidade Dinâmica, vórtex, anarquia sagrada, instância de vibração máxima e o exercício em vórtex, citados neste artigo.
[3] Revolução eletrônica, William Burroughs.
[4] 10% humano, Alanna Collen.
[5] Anthropology and/as Education, Tim Ingold.
[6] A individuação à luz das noções de forma e de informação, Gilbert Simondon.
[7] Steps to an ecology of mind, Gregory Bateson.
[8] Guerras híbridas, Andrew Korybko.
[9] Ver artigo “Depois da guerra híbrida: discos voadores e guerra cognitiva na Guerra Fria 2.0”, de Wilson Ferreira.
[10] Ver nosso artigo “Em que a vida insiste?”
[11] Ver nosso artigo “Pororoca: a criação ‘brasileira’ enquanto levante”.
[12] Enquanto “anterior” estamos falando de um nível epistemontológico em que as taxonomias inexistem, o que diferente de dizer algo referente à sucessão temporal. Sobre o epistemontológico, ver nosso livro Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica.
[13] A dobra: Leibniz e o barroco, Gilles Deleuze.