Cosmos, cosmética e caos: o sistema de Lina Meruane
Essas visões, essas audições não são um assunto privado, mas formam as figuras de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas. É o delírio que as inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo.
São acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos.
A literatura é uma saúde.
Gilles Deleuze, Crítica e clínica, 1993.
Publicado em 2018 e lançado no Brasil em 2020, com tradução de Sérgio Molina (Editora Todavia), Sistema nervoso, da escritora chilena Lina Meruane, é um livro sobre a doença. Não é, contudo, um livro-impasse, fechado pela enfermidade, já que nele o pensamento, a imaginação, a criação, em suma, a abertura de mundos não encontra seu termo, não sendo interrompida, impedida ou obliterada. Na verdade, a meu ver é o contrário: trata-se, sobretudo, de uma amplificação do que pode ser visto, ouvido e pensado, isto é, trata-se de um livro sobre o processo de invenção, sobre o delirante processo do vir-a-ser. Uma saúde, portanto.
Com efeito, em Sistema nervoso deliramos com a língua – “para fora de seus sulcos costumeiros”, como propôs Deleuze – “de um extremo a outro do universo”. Na narrativa, a protagonista – nomeada, como outros personagens, pela impessoalidade: Ela – é uma professora e estudante de astronomia que tenta escrever uma tese de doutorado no lugar onde vive, longe da família, o “país do presente”. “Começara estudando as órbitas elípticas e seus campos magnéticos, os cinturões de asteróides e os restos de supernovas milenares; dedicara meses ou talvez anos aos sistemas estelares mais próximos do Sol procurando em vão planetas habitáveis, e conjeturou a posição de astros parecidos com a Terra. Uma coisa levava a outra e refutava a anterior, obrigando-a a recomeçar sua pesquisa. Seu último esforço seria dedicado às estrelas que já perderam sua luz e colapsaram sobre si próprias formando densos buracos negros”.
Agora, essa extensão mais extrema e intensa do universo, onde ocorrem acontecimentos que forçam a fronteira das nossas linguagens e do pensamento, extensão que na narrativa ela busca alcançar de modo ambivalente – com seus cálculos, previsões, rotinas, mas também com seus medos, manias, incertezas, procrastinações –, conecta-se, de maneira íntima, com seu próprio corpo e seus sofrimentos.
Tudo se dá como se o universo se contraísse em seu denso corpo terrestre que carrega, ele mesmo, o colapso, a gravidade, a relatividade dos tempos, as mínimas vibrações das energias e dos afetos, assim participando – com as temporalidades e os espaços fragmentários da narrativa, com os demais personagens que igualmente orbitam doenças e padecimentos (o Pai, a Mãe, Ele, os Gêmeos, o Primogênito, a Amiga etc.) – de um complexo sistema de signos. Compostos, ou seja, ficcionados, esses signos se mostram interdependentes e produtores, afinal, de uma constelação contingente, mas de força expansiva, disseminante em seu processo, como numa espécie de assemblage de elementos dissímeis cujo sentido, a rigor não equacionável, vem a ser algo mais do que a simples união das singularidades em questão: um assistemático sistema de sistemas, por assim dizer; ou um sistema sem todo, talvez, indecidível em seu início e seu fim.
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Está presente no romance a positividade que alicerça a medicina moderna e o aparecimento da clínica. Fundada numa objetividade supostamente mais científica (ou menos fantasiosa, quem sabe), “a clínica aparece para a experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável”, escreve Foucault. “Esta nova estrutura se revela, mas certamente não se esgota na mudança ínfima e decisiva que substituiu a pergunta ‘o que é que você tem?’, por onde começava, no século XVIII, o diálogo entre o médico e o doente, com sua gramática e seu estilo próprios, por esta outra em que reconhecemos o jogo da clínica e o princípio de todo seu discurso: ‘onde lhe dói?’”. A partir daí, segue o filósofo em O nascimento da clínica, “toda a relação do significante com o significado se redistribui, e isto em todos os níveis da experiência médica: entre os sintomas que significam e a doença que é significada, entre a descrição e o que é descrito, entre o acontecimento e o que ele prognostica, entre a lesão e o mal que ela assinala etc. A clínica, incessantemente invocada por seu empirismo, a modéstia de sua atenção e o cuidado com que permite que as coisas silenciosamente se apresentem ao olhar, sem perturbá-las com algum discurso, deve sua real importância ao fato de ser uma reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria possibilidade de um discurso sobre a doença”.
Não obstante, o que vemos em Sistema nervoso é já o paroxismo, o limite dessa racionalidade. O personagem Pai, médico e professor no “país do passado”, era severo com os estudantes. Humilhava-os “por qualquer imprecisão. Por um lapso. Por excesso de informação e falta de entendimento. Por não conceber o organismo como um complexo sistema de signos. Por não atentar com cuidado ao relato dos sintomas”. Ora, trata-se do mesmo Pai que não soube acertar o diagnóstico de sua filha, Ela; o mesmo que aparecia na televisão fazendo propaganda de aspirinas; aquele que, enfermo num hospital militar, é obrigado a apontar o nascimento de outra clínica. Se na passagem do “Iluminismo” para o século XIX, como diz Foucault, “olho torna-se o depositário e a fonte da clareza”, na narrativa de Lina Meruane o velho Pai já não se reconhece nas imagens técnicas e na instrumentalização anestesiante das práticas e dos saberes contemporâneos: “Tudo mudou tanto, eu estou aprendendo a me esquecer do que aprendi porque esse conhecimento já não serve ou já não tem nenhum valor, auscultar o corpo do paciente, examiná-lo, apalpá-lo; agora a única certeza é a que as máquinas produzem, o olho das máquinas. A medicina já não era aquela que eu estudei, acrescenta num bocejo”.
A personagem Mãe, por sua vez, precisa passar por uma cirurgia na mama, situação em que a narrativa coloca não apenas uma questão sobre os limites da saúde e da enfermidade, mas também uma dúvida sobre as possibilidades de desnudamento do sujeito. Sob a “dissecção soberana da linguagem e do olhar”, como escreveu Foucault, isto é, diante da lógica que obriga a verdade do corpo vivo a medir-se, sem resíduos, com a universalidade morte, emerge em Sistema nervoso, a contrapelo, uma resistente imaterialidade, como o nó ou nervo dessas forças microfísicas que, em suma, tecem um sujeito singular: “O cirurgião agora lhe abria outra pele com seu bisturi. Cortaria tecidos em busca de quê? Um asteróide ou uma mesquinharia do seu marido, um pão queimado, a excessiva radiação do verão, sua aversão ao Primogênito? Onde terminavam os enredos da Mãe e começava seu tumor?”
Já a filha sente antes uma cãibra nas costas; logo, “uma ardência insuportável se instalara em seu ombro nuca brasa”; então, “entre Ela e seu sintoma instala-se outra coisa: uma leve dormência que começa no ombro e se estende pelo braço em direção ao cotovelo até chegar às costas da mão direita, aos dedos onde tudo começou”; finalmente, “já não era apenas ombro braço túnel do carpo mas também a base do crânio, a borda da cara, a língua”. Aos poucos, a vida e a morte, o singular e o plural, a poeira das estrelas e os corpos humanos, enfim, a escala cósmica e o ínfimo mundo subatômico formam, por assim dizer, uma espécie de entrelaçamento não pressuposto, com o qual a relatividade geral e a mecânica quântica parecem se articular, mas não se esclarecer. Vale acompanhar a passagem:
“Aí. Nessa sala mal pintada, diante de todas essas cadeiras cheias de alunos matutinos pouco interessados no que Ela possa lhes dizer sobre o princípio da incerteza. Ela tenta se sucinta: o universo nunca conheceu a harmonia, nunca foi um mecanismo perfeito, não serve para medir o tempo com precisão. […]
Por mais que a temporalidade do espaço seja ondulante, Ela tenta traçar na lousa uma cronologia de descobertas em linha reta. Estrelas congeladas. Anãs brancas e pulsares se contraindo e paralisando em milhões de buracos negros espalhados pelo universo. E depois a densidade infinita da singularidade e o horizonte de eventos do qual era impossível voltar. Os efêmeros sóis da física teórica e a irrupção da física nuclear durante as guerras planetárias. A física extraterrestre. Sobre essa linha de giz, o que ocorreu depois, embora tudo acontecesse simultaneamente. E Ela lhes fala e os minutos avançam embora pareçam retroceder ou ao menos estar parados quando sente uma fagulhada imprevista na ponta dos dedos.
Repentina descarga elétrica na mão. Instantâneo ai de dor retorcendo o fio da sua frase. A fração de um segundo se desajusta em seu relógio. Ela esconde a mão no bolso esperando que a imobilidade detenha o choque seguinte que a sacode. Seus alunos erguem os olhos surpresos por esse grito agudo e cochicham tentando deduzir, entre eles, o que está acontecendo com a professora de física”.
Às vezes, numa mediação tensa entre os monstra (mundo visceral) e os astra (mundo sideral), nomes vicários, como coordenadas vacilantes, conduzem um alinhamento saturnino entre um embrião e um planeta: “Um médico mais baixo que Ela confirmou o resultado mostrando-lhe um pálido embrião na tela. Era um alpiste feijão planeta distante pairando no escuro, rodeado por uma maçaroca branca. Grudado na borda do seu útero foi onde Ela o viu e quis arrancar-se os olhos. Arrancar-se o rosto. Arrancar”. Em outras passagens, a visão do universo numa casca de noz é a irônica maquinação de um sentido intestino, corpóreo, para o cosmos: “Contempla uma vitamina desmanchar na água. Bolhas ascendentes que estouram propiciando o nascimento de uma galáxia efervescente que Ela vai engolir”.
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A ficção de Lina Meruane é desse modo a aplicação de uma potente cosmética. Em princípio, como nos lembra Bertrand Prévost, se kosmos é o termo grego para o ordenamento do mundo é, também, o termo que se refere ao ornamento do corpo e ao paramento; assim como é termo que remete ao equipamento destinado à guerra, ao preparo do corpo do morto etc. Ou seja, de acordo com a articulação desse campo semântico, escreve Prévost, do “cósmico à cosmética, é uma mesma ordem que se estende a todas as escalas, das esferas celestes até as menores pérolas de um colar, das trajetórias astrais até a regularidade das estrias deixadas pela passagem do pente nos cabelos. Temos aí, decerto, aquilo que, dos gregos até nós, trabalha em profundidade toda ideia de cosmética”.
Sabemos que na modernidade a literatura tornou-se um dos meios destacados da cosmética do mundo. No entanto, já não estamos aqui sob o signo dessa analogia que estrutura o cosmos como mundo unificado e devidamente organizado: não vamos longe com a ideia de um universo fechado em seu belo arranjo. (O texto de Prévost é, na verdade, uma crítica a esse pressuposto: pensando uma sorte de caósmos, busca propor as condições de um devir-mundo expresso por um paramento que, não sendo analógico e, portanto, pautado no ideal, é, sim, real e contínuo, fundado numa “mais vasta história natural das aparências”).
Ou seja, a proposição da literatura como um dos modos da cosmética não se baseia na ideia de que ela viria a completar, identificar ou representar, com sua presença, a ausência do referente (seja deus, tradição, experiência, autoridade, aura, origem, essência, centro, ou qualquer outra das “perdas” sofridas pelo Ocidente no desabalado avançar da sua modernidade). O que está em jogo, diversamente, é a compreensão de que, como cosmética, a literatura suplementa excessivamente um referente ausente, sendo, portanto, o próprio traço dessa in-existência que, sem remédio, é sempre reposta por uma série de imagens, de palavras, de falas, de consignas – por uma série de fármacos possivelmente sem fim. É assim que, em torno da doença, do padecimento, da morte, Sistema nervoso opera como pharmakía, com tudo o que aí se mobiliza de produtivo e de disruptivo.
Em sintonia com o que lemos em Jacques Derrida (autor, aliás, de textos que manteriam afinidade, por exemplo, com a aporia proposta pelo experimento conhecido como “O gato de Schrödinger”), a narrativa de Lina Meruane nos diz: “Em sua origem a palavra fármaco tinha significados contraditórios: era remédio veneno bode expiatório. Mas existia uma aliança secreta entre esses sentidos: o sacrifício do bode aos deuses visava resolver dificuldades, o veneno podia servir de solução ou consolo para a comunidade”. Com efeito, em A farmácia de Platão acompanhamos a propagação dessa cadeia de significantes: phármakon quer dizer, ao mesmo tempo, veneno e remédio; assim como o termo articula os sentidos de filtro, droga, escritura, pintura, perfume, feitiço, disfarce, mascaramento. E mais que isso, de acordo com a lógica do suplemento, a phármakon ainda estão ligados os significantes pharmakeia (a administração da droga), pharmakeus (mágico, feiticeiro, envenenador), pharmakós (bode expiatório, figura do mal, do fora).
Derrida assinala em sua leitura: “Sócrates compara a uma droga (phármakon) os textos escritos que Fedro trouxe consigo”. Os caminhos costumeiros retinham Sócrates no interior da cidade. Mas, “operando por sedução, o phármakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais e habituais”. Em outros termos: enfeitiçado por essa palavra órfã e desobediente – vale dizer: sob efeito da escritura, que pode passar de mão em mão, e de voz em voz –, o filósofo é levado para além das fronteiras, para fora dos muros da polis, até os limites da razão (do logos). Novamente, trata-se da saúde do delírio, de suas derivas: “a escritura, o phármakon, o descaminho”, resume Derrida.
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Eis a sua potência. O phármakon “transforma a ordem em enfeite, o cosmos em cosmético. A morte, a máscara, o disfarce, é a festa que subverte a ordem da cidade […]”, lemos em A farmácia de Platão. Em Sistema nervoso, essa subversão é crucial. Ao que parece, em afinidade com o que pensava Deleuze, Lina Meruane faz questão de salientar que essas visões, essas audições presentes em seu livro não são um assunto privado; ao contrário, dizem respeito às possibilidades e limites da vida em comum, com isso trabalhando a história e a geografia.
Com esse caráter disruptivo, a narrativa deixa marcada a relação entre estética e política. O “país do passado”, país da personagem Ela e de sua família, sofrera por anos “a epidemia da ditadura”. Já no “país do presente”, não demora “a acontecer a manifestação dos imigrantes sem papéis. As avenidas se enchem de lampadinhas acesas e de lanternas de celular. Contra a xenofobia, clamam alguns. Contra a violência, outros”. O Chile – país de nascimento da autora, ou seja, espaço-tempo da ditadura de Pinochet e, logo, da implantação laboratorial do neoliberalismo – não é nomeado. Tampouco encontramos no romance o nome dos Estados Unidos – onde Lina Meruane reside e leciona (Universidade de Nova York). E, no entanto, eu diria que permanecem, ambos, como ausências incontornáveis que são colocadas em jogo, em série: cifradas, justamente, por essa trama farmacológica, a costura cosmética da narrativa.
Nesse “país do presente”, “Ela faz parte de toda essa gente que perambula com suas faixas e sem papéis, dessa gente de todas as cores e espessuras e alturas. […] Ela é apenas uma residente temporária, uma alien doente não se sabe do quê. E fica junto à janela porque agora há estrelas costuradas à noite e manifestantes nas ruas e policiais armados até os dentes, escudados até a testa […]. Uns jovens tocam imensas cornetas anunciando precisamos uns dos outros, o mundo vai acabar se não nos misturarmos. Ela concorda, rodeia a boca com as mãos e lança a voz cava. O sonho de pureza é puro pesadelo, vocifera já rouca de tanto fumar. A imunidade será nossa morte. […] estamos todos contagiados, o contágio é a saúde, nós imigrantes somos vida, a imunidade é a morte”.
Em Immunitas, Roberto Esposito analisa a densa genealogia do paradigma imunitário no Ocidente, que de salvaguarda do corpo individual e coletivo, isto é, de princípio protetor da vida da comunidade, acaba por ameaçá-la e mesmo destruí-la. Diante do fantasma do contato e do contágio de variadas ordens, a modernidade é, em larga medida, um sonho de pureza autodestrutivo, um pesadelo realizado. Em tal contexto, o phármakon é definido como aquilo que se opõe ao seu outro sem excluí-lo; antes, age ao revés: faz a sua inclusão e pode até substituí-lo de forma vicária. Daí que seja “o mesmo como outro e o outro como ele mesmo, o ponto no qual o um penetra no dois sem deixar de ser um; o um-dois que não é nem um nem dois, e contudo é ambos, sobrepostos na linha do seu contraste”. Nesse sentido, trata-se de uma não-substância, uma não-identidade, uma não-essência. Se o corpo ou o organismo esteve sempre presente como metáfora nos tratados políticos, aqui a ficção vem a ser o modo cosmético que melhor explicita esse fundamento ausente que estabelece uma dialética sem síntese entre os princípios comunitários e os dispositivos de imunização.
Em outras palavras, o nervo de Sistema nervoso é também biopolítico: mas, no caso, de biopolítica afirmativa da vida, assim como parece ser o caso da proposição de uma imunidade que apenas encontra sua força como suplemento, como excessivo reforço do comum. Em torno da necessidade de construção coletiva da memória, como forma de elaboração do trauma histórico vivido pelo “país do passado” e possibilidade de imaginação de qualquer futuro, a narrativa parece recolocar, em chave romanesca, uma pungente intimidade que foi sensivelmente articulada por Patricio Guzmán no documentário Nostalgia de la luz (2010): trata-se da inquietante intimidade que há entre a poeira das estrelas, o solo deserto do Atacama e os ossos, ali enterrados, dos desaparecidos pela ditadura chilena.
Enquanto astrônomos do mundo inteiro recorrem ao céu cristalino do Atacama para interrogar o cosmos, em busca, quem sabe, da origem imemorial do universo e da vida, no filme, mulheres chilenas insistem em vasculhar a opacidade do solo desértico em busca de vestígios de familiares e amigos, ou seja, em busca da memória comum de um passado recente. De estrelas longínquas, os cientistas recolhem pulsações, ondas, ruídos ínfimos, com os quais desenham gráficos – uma impressão digital, um spectrum, afirma um dos astrônomos – que apontam, em linhas, o cálcio presente nesses imensos mas invisíveis corpos celestes, posicionando-os assim no espaço; as mulheres, por sua vez, de quando em quando localizam pedaços de corpos humanos – um pé, dentes, uma costela, uma falange – e, na maioria das vezes, em meio à poeira do imenso deserto, poeira de ossos anônimos: mínimos vestígios perdidos no espaço, ínfimos aglomerados de cálcio, calcinados pelo sol.
O cálcio, uma sorte de phármakon: essa matéria quase imaterial (um spectrum) é o que produz, no filme de Guzmán, uma resistente zona de indiscernibilidade entre tempos, espaços, corpos, e entre saberes e poderes. No entanto, ao contrário do que ocorre com a arcaica poeira estelar, legitimada pelo interesse científico internacional, sendo, portanto, vitalizadora do já privilegiado céu chileno, a poeira da ditadura apenas sobrevive ao passado mais próximo, subversiva para a ordem do Estado: “Nosotros somos un problema. Para la sociedad, para la justicia, para todos, somos un problema. […] Somos la lepra de Chile”, afirma Violeta Berríos, uma das mulheres que buscam desaparecidos. Ser a doença do Chile: isso significa subverter a imunidade de um corpo autoevidente, em si mesmo presente, pretensamente democrático; corpo na verdade armado de um antiquíssimo e violento consenso oligárquico, excludente, hoje ordenado pela lógica neoliberal.
Lemos em Sistema nervoso: “Ela era uma estudante de férias em sua cidade, Ele era um forense convidado para dar uma palestra magistral sobre a identificação de ossadas tão comuns no subsolo de países como o seu, transtornado por anos de ditadura. […] Esse país do passado estava minado de fossas ainda por descobrir”. E, mais adiante, a tensão entre Ela e o irmão, numa passagem que pode ser lida como sintoma:
“Quem disse que não temos futuro?, sibilou o Primogênito uma tarde, lançando para Ela um olhar de esguelha. Sob o árido céu do norte se multiplicam os observatórios, os telescópios interestelares, continuou dizendo aquele irmão que só se lembrava do céu quando chovia e seus ossos rangiam estremecidos. Lá só estão compilando o passado do cosmos, são apenas dados entropia objetos a identificar, Ela disse abandonando a mesa cansada de dar explicações que nem Ela própria entendia por completo.
Só uma vez Ela ousara subir os montes mais áridos, as montanhas mais desertas, onde o céu era transparente e a luz, tão perfeita que os astros pareciam chegar antes ou nunca ter saído da eterna noite do observatório. Aventurou-se a olhar de perto o que vinha conjeturando de tão longe. Aquela contemplação telescópica lhe causara vertigem, enjoo, e escapou de lá sem dizer a ninguém que não conseguiu olhar. Nem mesmo ao pai.
Aqueles observatórios violando a noite.”
Por essas derivas cosmético-cósmicas, estéticas e políticas, segue a expansão disruptiva do sistema de Lina Meruane (que se prolonga em outros livros, como Sangue no olho; Tornar-se Palestina; Contra os filhos etc.). “Fim último da literatura”, propunha Deleuze: “pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo que falta… (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’)”. Que os eventos que acompanhamos na atualidade, sempre iluminados pela ausência dos astros, sejam o trajeto, o produtivo processo que enfim advém desse chamamento disruptivo, compartilhado por incontáveis vozes.
Referências
Deleuze, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras: 2005.
Esposito, Roberto. Immunitas: protección y negación de la vida. Trad. Luciano Padilla López. Buenos Aires: Amorrortu, 2005.
_____. Termos da política: comunidade, imunidade, biopolítica. Trad. Angela Couto Machado Fonseca, João Paulo Arrosi, Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Curitiba: Ed. UFPR, 2017.
Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
Meruane, Lina. Sistema nervoso. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Todavia, 2022.
Prévost, Bertrand. “Cósmica cosmética. Por uma cosmologia do paramento”. Revista species, ano 1, n. 1, p. 21-44, nov. 2015.