Lições de Cosmologia para não-especialistas (das leis físicas às leis cósmicas) – 2
Estas notas constituem uma extensão de um curso de cinco lições que dei em 2018 no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas para divulgar alguns aspectos do universo que os cientistas têm elaborado nas últimas décadas, sem me deter nas demonstrações matemáticas associadas. Aqueles que tiverem interesse em aprofundar este conhecimento técnico poderão consultar as referências citadas.
Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma
(Hegel)
PRIMEIRA LIÇÃO
Ao começo dessa nossa caminhada algumas escolhas devem ser feitas. Essas escolhas são arbitrárias, mas irei considerar cenários os mais comuns, isto é, aqueles que não se afastam por demais de uma visão convencional, embora eu aponte aqui e ali alguns cenários pouco convencionais que embora tenham sido relegados ao esquecimento possuem uma estrutura formal consistente e forte embasamento nas teorias convencionais.
Iremos aceitar a teoria da gravitação que Einstein propôs em 1915 e que chamou (de modo pouco correto) teoria da Relatividade Geral (TRG) pois, pensava, deveria ser a extensão natural da Relatividade Especial. Enquanto esta se limitava a referenciais associados a sistemas inerciais, e consequentemente admitia transformações lineares de coordenadas (o chamado grupo de Lorentz), a TRG deveria se abrir para transformações arbitrárias de coordenadas. Essa TRG foi identificada a uma teoria da gravitação que então transformou os efeitos da força gravitacional newtoniana em alterações da métrica do espaço-tempo.
Ao aplicar essa TRG ao universo foi necessário, para simplificar a sua descrição, usar um sistema de coordenadas, que consiste na escolha de uma representação tradicional na qual é utilizada a separação newtoniana 3 + 1, correspondente a 3 dimensões de espaço e um único tempo cósmico, global. Vamos nos deter um pouco no significado dessa escolha. Isto é, queremos responder à questão: como é possível organizar uma representação do universo em termos de um tempo comum, global, sabendo que os diversos sistemas de coordenadas devem ser tratados igualmente?
Com efeito, começamos por reconhecer a existência de uma miríade de tempos próprios, um para cada corpo ou observador. Nos primeiros anos do século 20 Poincaré, Lorentz, Minkowski, Einstein organizaram a descrição dos observadores inerciais e construíram esses múltiplos tempos.
Como ponto de partida, devemos reconhecer o princípio democrático segundo o qual ao descrever um fenômeno é legitimo utilizar qualquer sistema de referência, esteja ele associado a um observador inercial ou acelerado. Igualmente para fixar a posição quadridimensional de um acontecimento no espaço-tempo é possível eleger qualquer sistema de coordenadas. Segundo a teoria da relatividade somente quantidades que são invariantes por transformações de representação são relevantes em um discurso científico sobre os fenômenos. Isso garantiria que estamos tratando de sinônimos, que devem conter a mesma informação dos processos no mundo, como discursos iguais em dialetos distintos. É claro que ao selecionarmos uma dada representação, além do fenômeno estou também dando informação sobre essa escolha, mas isso não é relevante para caracterizar o fenômeno, somente a minha particular forma de descrição.
Se é assim, então devemos recorrer ao matemático e perguntar: que representações são mais adaptadas a um discurso que fazemos sobre o mundo na caracterização e descrição de um fenômeno? “Isso depende do fenômeno”, dirá ele. Podemos insistir e especificar melhor nossa questão: é possível conservar uma descrição newtoniana do universo e separar as três dimensões do espaço de uma dimensão temporal na descrição de um fenômeno, qualquer que seja ele?
A resposta foi dada por Gauss. Sim é possível, disse ele e mostrou um modo prático de como isso pode ser efetivamente feito. Usando uma linguagem moderna, o procedimento para essa escolha de representação (que chamaremos, por simplicidade, representação gaussiana) segue os seguintes passos.
Dada uma configuração qualquer do espaço-tempo (isto é, qualquer que seja sua métrica) escolhe-se uma classe de observadores inerciais, livres de qualquer força, interagindo somente gravitacionalmente, que chamaremos de congruência de curvas geodésicas. Chama-se geodésica a curva descrita por um corpo livre de qualquer força. Do ponto de vista matemático ela é o caminho mínimo entre dois pontos arbitrários do espaço-tempo.
Construímos para esses observadores um tempo comum. Esse será o tempo gaussiano associado a essa classe de observadores. A questão relevante é saber se essa congruência inercial, construída a partir de um dado ponto do espaço-tempo, pode ser estendida de tal modo a preencher toda essa variedade quadri-dimensional. A resposta não provém somente da geometria, mas envolve condições globais que são tratadas na topologia. Dito de modo simples, Gauss mostrou que nem sempre é possível construir uma tal representação gaussiana capaz de ser estendida para todo o espaço-tempo, embora seja sempre possível fazê-lo em uma região compacta de qualquer geometria.
Em alguns casos, como na quase totalidade dos modelos cosmológicos (Einstein, Friedmann, deSitter, Kasner) uma tal escolha de um tempo global único para todos os observadores é possível. No caso da geometria descoberta pelo matemático Kurt Gödel, isso não é possível. Note que todas essas geometrias são soluções das equações de Einstein da gravitação.
Reconhecemos nessa construção a principal hipótese onde se organiza a cosmologia moderna: a escolha de um tempo único global. Os matemáticos o chamariam de tempo gaussiano; os físicos de tempo global; os filósofos talvez o chamassem de duração bergsoniana.
A matéria no universo
Além da matéria ponderável, massiva, sob forma de estrelas e seus conjuntos galácticos, grande parte da energia no universo está concentrada em radiação (fótons) e neutrinos livres. As estrelas são constituídas por barions, ou seja, basicamente prótons e nêutrons.
A totalidade da distribuição de toda forma de matéria e energia no universo é representada por um fluido perfeito, continuo, que requer para sua completa caracterização somente de duas quantidades: a densidade de energia (E) e a pressão (P). Essa escolha simples foi indispensável para poder encontrar uma solução às complexas equações da teoria da Relatividade Geral. É precisamente a partir desse fluido de matéria que um tempo gaussiano é atribuído ao universo.
Entre a pressão e a densidade existe uma relação que por simplicidade consideramos sob a forma
P = w E,
onde a constante w é, em geral limitada entre zero e 1. No caso da energia ser dada pelos fótons uma relação semelhante ocorre dada por
P = 1/3 E.
A matéria ponderável na qual pode-se associar a ausência de interação entre suas partes (isto é, P = 0) tem importância numa fase ulterior.
Essas quantidades (matéria bariônica e fótons) são conservadas separadamente. Isso implica (pelas correspondentes leis de conservação em um universo em expansão) que quando o volume do universo é muito pequeno, é a energia dos fótons quem controla a sua evolução. A matéria ponderável vai ser importante em uma fase ulterior onde o volume do universo já é considerável.
Nesse momento é necessário fazer um breve comentário sobre uma questão crucial, a existência de singularidade no modelo de Friedmann. Antes, um breve comentário histórico.
Origens da cosmologia relativista ou do fracassado modelo cosmológico de Einstein à eternidade do universo
O ano de 1917 trouxe duas grandes novidades que ficaram à margem das terríveis dificuldades que a primeira grande guerra do século 20 trouxe. Uma delas, de natureza política, foi a Revolução Socialista de outubro na Rússia, transformada em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A segunda foi a produção do primeiro modelo cosmológico no interior da ciência. Embora hoje ambas tenham cedido lugar a outras modificações, podemos sem dúvida considerá-las como dois fatos marcantes que o século 20 nos legou. Não irei fazer comentários sobre a Revolução russa, concentrando-me na ciência. A acreditar em Giordano Bruno, essa dissociação do político com a descrição dos fenômenos físicos observados na natureza é um erro de princípio que nenhum verdadeiro cientista deveria cometer. E, no entanto, sem negar esse pecado formal, deixarei essa associação para pensá-la em outro lugar.
Dois anos depois de produzir uma alteração profunda na interpretação newtoniana dos fenômenos gravitacionais, estabelecendo o que chamou Teoria da Relatividade Geral, Einstein examinou as consequências da nova teoria sobre a visão que os cientistas possuíam sobre o universo. Para entendermos a dificuldade dessa tentativa, bem como sua grandiosidade formal, é importante ressaltar que naquele momento a comunidade cientifica não demonstrava nenhum interesse nessa questão consubstanciada na ausência de qualquer observação de caráter global. Embora vários importantes momentos da história da cosmologia seriam forjados naquele século creio que podemos aceitar que somente a partir dos anos 1960 a cosmologia adquiriu um lugar de destaque nas atividades cientificas. Em sua proposta de descrição global do universo, Einstein parece ter sido guiado somente por sua intuição formal e suas idiossincrasias filosóficas, dentre as quais a mais crítica foi aceitar a visão pré-relativista, newtoniana, de que o universo deveria ser uma configuração estática. A proposta de cenário cósmico que Einstein propôs se baseava em três hipóteses que se revelaram incorretas, a saber:
- A topologia desse universo é fechada. A seção espacial é finita mas ilimitada. Ou seja a tri-curvatura é constante e igual a 1.
- A geometria que descreve o universo é estática;
- A principal fonte da energia controladora da geometria do universo é constituída por matéria incoerente, sem interação entre suas partes; além dela existe uma energia misteriosa de estrutura desconhecida, imaterial, a que deu o nome de constante cosmológica.
Esse primeiro modelo cosmológico proposto por Einstein não possui suporte observacional. Com efeito, o modelo padrão da cosmologia atual afirma que:
- A seção espacial do universo é euclidiana, ou seja, a curvatura do tri-espaço é nula;
- O universo é um processo dinâmico: a curvatura da sua geometria varia com o tempo cósmico;
- As fontes da geometria se concentraram, ao longo da história do universo, ou sob forma de radiação (a densidade de energia dos fótons dominou o cenário cosmológico nos momentos iniciais da atual fase de expansão) ou como matéria ponderada (galáxias e aglomerado de galáxias). Embora, é importante notar que nos últimos anos a constante cosmológica ressurgiu como um possível fator capaz de produzir uma explicação alternativa para a possível aceleração do universo, entendida agora como energia escura.
Havia um outro problema adicional ao modelo cosmológico de Einstein e diz respeito à demonstração de que esse modelo é altamente instável. Ou seja, um universo controlado por aquela geometria não teria existido tempo suficiente para gerar configurações estáveis e permitir o aparecimento de vida, dos planetas, da Terra, da espécie humana.
Há, no entanto, duas características da proposta de Einstein que permaneceram. A primeira diz respeito à sua formulação ao propor a separação do espaço-tempo quadridimensional em três dimensões de espaço e uma de tempo. Longe desta proposta configurar um retorno a ideias pré-relativistas, uma tal escolha de sistema de coordenadas simplificou muito as equações que descrevem a evolução da geometria que representa o universo.
A segunda característica do cenário cosmológico de Einstein, mais importante, tornou-se uma questão crucial da Cosmologia inserida sub-repticiamente em seu programa e que depende da existência da constante cosmológica contida em sua terceira hipótese, a saber, a proposta revolucionária de que a Cosmologia não se esgota na Física.
Anos depois, ao final da década de 1930, Lemaître, Hubble e outros mostraram que as observações astronômicas poderiam ser interpretadas à luz da teoria da relatividade geral desde que abandonássemos a hipótese de que o universo possuía uma geometria estática. Essas observações eliminaram completamente o modelo cosmológico de Einstein.
O modelo de Friedmann (universo dinâmico)
Embora àquela época não havia nenhuma observação que pudesse corroborar a ideia de que a geometria do universo varia com o tempo cósmico, um matemático russo, Alexander Friedmann, produziu em 1922 um cenário cósmico na qual o volume total do espaço variava com o tempo. Malgrado um certo desagrado ideológico com essa suposta dinâmica cósmica, Einstein foi levado a aceitar (como referee) que o artigo de Friedmann exibindo essa configuração não-estática fosse publicada em um jornal científico alemão. A seguir reprodução d a primeira página do artigo de Friedmann.
O modelo de Friedmann foi construído à semelhança com o background cósmico proposto por Einstein com uma diferença fundamental: a geometria não era estática, mas sim varia com o tempo. Uma interpretação simples mostra que o volume total do espaço aumenta com o passar dos tempos a partir de um ponto singular onde toda a energia/matéria do mundo está concentrada. Essa singularidade é descrita matematicamente como a divergência das quantidades físicas, ou seja, a densidade de energia e a temperatura ambiente teriam assumido naquele ponto o valor infinito, uma quantidade que não existe no mundo físico.
Contrariamente ao cenário de Einstein que não requeria uma análise de sua origem (seu modelo de universo estático, independente do tempo, não tem uma origem) os modelos cosmológicos a partir de Friedmann tem essa questão, da origem do universo, intrínseca.
Próxima à singularidade do modelo de Friedmann a fonte dessa expansão são os fótons. Existe uma pressão produzida por esses fótons que tornam desnecessária a introdução de uma constante cosmológica. Nós iremos ver, no entanto, que depois de várias décadas sem que Λ fosse considerada relevante, no século 21 ela reapareceu por razões que iremos considerar mais adiante.
No mesmo ano da proposta de Einstein, 1917, o astrônomo holandês Willem De Sitter encontrou uma outra solução estática gerada somente pela constante cosmológica. Mais tarde, nos anos 1940, ela será usada por Fred Hoyle para descrever seu modelo de universo (steady state universe). Na década de 1980 esse cenário de De Sitter serviu para descrever os primeiros modelos cosmológicos de inflação elaborados para atenuar as dificuldades causais do cenário original de Friedmann.
Comentário adicional
Temos usado a palavra universo como caracterizando a totalidade de matéria e energia, concentrada em estrelas e seus aglomerados em galáxias e toda forma de energia de radiação. Note, entretanto, que existem soluções das equações da Relatividade Geral — o chamado universo de Kasner é um exemplo — sem nenhuma forma de matéria e energia. Esse é uma das estranhas consequências da não linearidade das equações da teoria.
A crítica (incorreta) de Einstein
Na mesma revista (Zeitschrift für Physik) onde Friedmann havia publicado seu artigo e Einstein foi o referee solicitado pela revista, ele fez publicar o seguinte comentário onde argumenta que os cálculos de Friedmann não eram corretos:
Qualquer estudante de física hoje é capaz de reconhecer de imediato o erro contido na argumentação de Einstein. Estranho que ele tenha sido tão descuidado a ponto de fazer uma crítica tão inconsequente em um trabalho onde Friedmann mostrou que o cenário estático proposto por Einstein para representar o universo não era o único compatível com as equações da Relatividade Geral.
O início da ideia do big bang
Em conferências na Bélgica no ano de 1931 o cônego Georges Lemaître tratou a singularidade presente no cenário matemático de Friedmann como um fenômeno físico convencional ao qual pode-se atribuir uma imagem a partir de uma analogia com a desintegração da matéria que havia sido descoberta no começo daquele século. Disse êle:
A hipótese do átomo primordial é uma hipótese cosmogônica que descreve o universo atual como o resultado da desintegração radioativa de um átomo.
É com essas palavras que apresenta o cenário singular da geometria do universo que daria origem ao cenário big bang. Embora essa proposta devesse estar em minha quarta lição sobre utopias controladas decidi fazer um comentário aqui como introdução a uma das questões mais cruciais da cosmologia moderna: o universo tem um tempo finito ou infinito de existência?
Teoremas de singularidade
Para tentar esclarecer e resolver definitivamente esta questão alguns matemáticos como Roger Penrose, Geroch e físicos como George Ellis, Steven Hawking a formularam em termos precisos e rigorosos cujo resultado foi propagado sob forma de alguns teoremas.
Se por um lado, isso foi benéfico por aprofundar o conceito de singularidade usado até então de modo vago; por outro lado isso trouxe um movimento retrógado que inibiu a análise de cenários cosmológicos alternativos, mais realistas, sem singularidade. Isso se deveu à forma como os teoremas foram expostos, como se a singularidade fosse inevitável ao se utilizar a teoria da Relatividade Geral e mais algumas características da matéria que pareceram à primeira vista bastante aceitáveis.
Até o advento desses teoremas, ao final dos anos 1960, as consequências da Relatividade Geral eram tratadas a partir de propriedades geométricas, enfatizando o caráter local da métrica do espaço-tempo. Foram esses teoremas que levaram os relativistas a considerarem propriedades topológicas, isto é, globais do espaço-tempo.
A partir da afirmação dos teoremas a ideia da impossibilidade de evitar a origem singular do universo pareceu ser mais do que uma particular propriedade dos modelos do tipo Friedmann, mas sim como uma característica interna da própria teoria.
Para não entrar em questões técnicas [ver M Novello e S E P Bergliaffa] basta notar que nestes teoremas a característica mais relevante da interação foi relegado a plano secundário, isto é, o modo pelo qual a matéria interage com o campo gravitacional. Evitar a singularidade poderia ser feito com fluidos esdrúxulos (como a constante cosmológica ou outros tipos com pressão negativa) ou por acoplamentos não mínimos de campos clássicos com a métrica. Ver detalhes no artigo citado.
A história da questão da singularidade começou a ser diferente ao final da década seguinte.
A situação naquela época, foi resumida pelas conclusões apresentadas pelo famoso físico inglês Dennis Sciama em Conferência na International Atomic Energy Agency (Vienna) em 1969, a respeito de dois de seus antigos alunos. Diz ele:
A solução apresentada por Friedmann possui uma singularidade que impede que possamos continuar a análise de suas propriedades antes dela. Pensava-se até então que essa singularidade era consequência das hipóteses de alta simetria deste modelo (espacialmente homogêneo e isotrópico). Foi somente no final dos anos 1960, graças aos teoremas (Hawking e Penrose), que a questão foi definida.
E continua:
The most powerful theorem, due to Hawking, Ellis and Penrose states that Einstein‘ s field equations together with the energy and causality conditions and one more condition guarantee the presence of a singularity. This final condition is that there is a point whose past light-cone begins to reconverge at some distance from the point.
Ele termina com o seguinte comentário:
Arguments of this sort do not however tell us much about the nature of the singularity, nor how to avoid it if this is thought desirable. These are hard problems whose solution lies in the future.
Sciama não poderia imaginar à época que a solução do problema exibido nos teoremas pelos seus dois antigos alunos seria dada por um outro seu antigo aluno, 10 anos depois.
Uma curiosidade histórica: embora o artigo dos russos tenha sido publicado alguns meses antes do artigo dos brasileiros (março e julho de 1979, respectivamente), estes enviaram seu artigo para publicação alguns meses antes. Os brasileiros em março 1978 e os russos em dezembro de 1978.
Os primeiros cenários com bouncing
Em 1979 por caminhos e métodos independentes, usando distribuições de energia responsáveis pela evolução do universo associados a configurações distintas, dois físicos russos V Meklnikov e S. Orlov, e dois físicos brasileiros M Novello e J M Salim mostraram como é possível conciliar a teoria da Relatividade Geral com um universo não singular. No primeiro caso foi usado um campo escalar e no segundo caso o campo eletromagnético. Em ambos os casos a impossibilidade de aplicar os resultados dos teoremas era claro: tanto um quanto o outro construíram a interação com a gravitação através do processo não mínimo, onde não somente a métrica está presente, mas igualmente aparece a curvatura como um fator de interação. Isso impedia de imediato submeter esses processos às premissas dos teoremas. Consequentemente os teoremas não eram aplicáveis, mostrando a limitação de sua abrangência.
E, no entanto, passaram-se quase 20 anos até que cenários com bouncing, uma real possibilidade para evitar a singularidade dos modelos tradicionais como os propostos em 1979, fossem considerados competitivos pela comunidade internacional.
Um comentário adicional sobre este cenário. O modelo Novello-Salim é simétrico no processo de inversão temporal. Ele começa no infinito passado a partir do vazio completo (de matéria/energia e de curvatura do espaço-tempo nula) e termina no infinito futuro em um vazio completo (de matéria/energia e de curvatura do espaço-tempo nula). Isso sugere a ideia de ciclos eternos. Aparece então a pergunta: este vazio completo é instável? Nós analisaremos esta configuração na quarta lição.
A ideia do bouncing
No cenário de Friedmann o universo tem uma origem singular. No cenário com bouncing o universo passou por uma fase anterior à atual, onde o volume total do espaço tridimensional diminuiu com o tempo cósmico, passou por um valor mínimo diferente de zero e iniciou a seguir a atual fase de expansão.
Isso, claro está, resolvia um problema e criava dois outros: O que deu origem ao colapso e por que ele foi interrompido e transformado em expansão?
Esses dois primeiros modelos modelos cosmológicos sem singularidade e vários outros, com bouncing, foram exaustivamente descritos por Novello e Bergliaffa na revista Physics Reports em 2008.
Universo Magnético
Resumo
O Universo Magnético é uma combinação dos campos gravitacional e eletromagnético em interação gerando um universo cíclico sem singularidade. A gravitação é controlada pela teoria da Relatividade Geral e o campo magnético por uma teoria não linear e um procedimento de média que identifica a fonte magnética da curvatura do espaço-tempo como um fluido perfeito. O resultado é um universo espacialmente homogêneo e isotrópico eterno, cíclico, possuindo fases de expansão e colapso e, em alguns períodos, tendo sua expansão acelerada. Neste modelo não é necessário invocar nenhuma forma desconhecida de energia. Ou seja, somente os dois únicos campos clássicos conhecidos são suficientes para produzir um cenário cosmológico adaptável às observações.
Recentemente modelos de universo controlado pelo campo magnético tem sido investigado com sucesso. Cenários de universos sem singularidade, possuindo bouncing e capazes de serem acelerados em fase ulterior têm atraído a atenção dos cosmólogos. A principal vantagem desses cenários é que não requerem a introdução de matéria nova esdrúxula. Essa forma hipotética de matéria, jamais vista, foi postulada –tendo recebido o atraente nome de energia escura—para explicar uma fase acelerada do universo associada a um modo inusual, aparentemente repulsivo, de gravitação. A energia de origem magnética não é uma nova forma de matéria, mas possui propriedades novas como consequência da não linearidade do campo magnético no cosmos.
Embora a descrição linear do modelo tradicional de Maxwel seja suficientemente boa para descrever grande parte de processos convencionais em laboratórios terrestres e em situações de campo não extraordinariamente fortes, sua extrapolação para o universo não condiz com a geometria cósmica e as propriedades que ela possui. O esquema linear de Maxwell produz dificuldades formais associadas a uma origem singular do universo, bem como não é compatível com uma fase ulterior acelerada. Nós veremos como processos magnéticos não lineares resolvem estas dificuldades e podem ser entendidos como constituindo aquilo que se chama energia escura.
Para entendermos as questões atuais da cosmologia e algumas soluções propostas é preciso considerar os conhecimentos acumulados nestas últimas décadas. Assim, iremos rever brevemente alguns avanços científicos que produziram uma descrição coerente do universo compatível com as observações. Nós nos limitaremos aos seguintes temas:
- Cosmos e a matéria;
- Campos de longo alcance, gravitação e eletromagnetismo: de Newton a Einstein, de Maxwell a Born-Infeld;
- O universo homogêneo e isotrópico;
- Como compatibilizar campos elétrico e magnético com uma estrutura cósmica isotrópica;
- Regularizando os campos clássicos na elaboração de um modelo do universo;
- A simetria campo forte- campo fraco
- Universo magnético.
Preâmbulo
A cosmologia conseguiu avanços notáveis nas últimas décadas. Sabemos por exemplo que o universo é um processo dinâmico controlado em seu aspecto global pela interação gravitacional descrita pela teoria da relatividade geral. Sabemos também que o volume tri dimensional que chamamos simplesmente de “espaço” varia com o tempo cósmico. Embora isto seja uma escolha de representação, ela tem a vantagem de apresentar uma configuração global do universo dentro dos padrões convencionais que usamos para descrever processos observados em laboratórios terrestres onde a teoria que estabelece a geometria local do espaço-tempo é dado pela relatividade restrita.
A variação do volume com o tempo cósmico proposto pelo cientista russo Alexander Friedmann, há quase um século, provocou desde então a questão crucial de saber se o universo teve um momento único de criação separado de nós por um tempo finito como em sua proposta original ou se ele tem um tempo de existência associado a um passado extremamente longínquo, infinito.
Com a evolução dos estudos em Cosmologia, várias outras questões passaram a exibir a dificuldade em considerar este cenário primeiro de Friedmann como válido ao longo de toda a história do universo. Desde então diversas propostas alternativas têm sido examinadas. Nós não iremos fazer um inventário dessas propostas aqui, mas me limitarei a descrever somente uma delas que no que se chamou universo magnético.
No cenário proposto por Friedmann em 1922 e que se tornou a base do modelo padrão da cosmologia toda a geometria depende somente de uma única função do tempo a(t) que é uma medida do volume total do tri espaço. Nesse modelo essa função possui um valor mínimo igual a zero que foi interpretada como identificando o momento inicial de existência e expansão do universo.
A fonte desta geometria é um fluido perfeito que, nos momentos primordiais se identificaria com uma radiação, um gás de fótons, no qual a relação entre a pressão e a densidade de energia se escreve p = 1/3 E. Esta densidade de energia diverge naquele ponto inicial. Não somente a energia tem valor infinito, mas igualmente a curvatura do espaço-tempo diverge. Isso se deve à conservação da energia, pois o campo eletromagnético interpretado como um fluido perfeito implica que a densidade de energia E é proporcional a . Ou seja, se a função a(t) pode assumir o valor zero então segue que a densidade E vai ao valor infinito.
Nesse cenário tradicional vários problemas aparecem, tais como:
- Existência de uma singularidade inicial e o infinito da densidade de energia, provavelmente indicando que ou a fonte dessa geometria deve ser alterada ou a própria dinâmica usada para descrever o campo gravitacional na Relatividade Geral deveria ser alterada;
- Existência de um horizonte cósmico impossibilitando que se possa entender como o universo em um tempo finito pode atingir um estágio tão homogêneo e isotrópico;
- Incompatível com um estágio ulterior de aceleração da expansão.
Cosmos e a matéria
A totalidade do que existe, o universo, é composto por matéria e energia de diversas formas e uma estrutura global o espaço-tempo. A matéria interage através dos dois únicos campos de longo alcance: os campos gravitacional e eletromagnético. A interação da matéria com esses dois campos e deles entre si é descrita pelas teorias clássicas na formulação de Einstein da teoria da Relatividade Geral e na teoria linear do eletromagnetismo de Maxwell.
Além dessas interações existem dois outros processos de curto alcance que descrevem a estabilidade da matéria e sua desintegração. São as forças nucleares forte e fraca. Essas não possuem similar clássico, pois são interações exclusivas do mundo quântico, de alcance extremamente pequeno.
Algumas dessas interações possuem leis de conservação próprias que se somam a leis gerais como a lei de conservação de energia.
Dentre essas leis de conservação no mundo quântico uma é fundamental que preserva certa quantidade básica chamada número barionico. Por exemplo, o próton e o nêutron, constituintes dos átomos, pertencem a essa categoria, os barions. Já o elétron e os neutrinos pertencem a outra família, os leptons. Os físicos descobriram que em todos processos de interação e desintegração entre eles, essas quantidades — os números bariônicos e leptônicos — são preservados separadamente.
Assim, por exemplo, ao nêutron e ao próton se atribui o valor unitário de número bariônico. Analogamente, segue que suas antipartículas, antineutron e antiproton está atribuído o número bariônico menos um. Ao eletron e ao neutrino está atribuído número leptônico um, e correspondentemente, menos 1 às suas antiparticulas, o antieletron e o antineutrino.
Desse modo, quando esses quatro componentes interagem, em um processo de desintegração como no decaimento do nêutron isso se representa pela equação
n → p e ṽ
significando a desintegração do nêutron em próton, eletron e antineutrino. O lado esquerdo dessa equação tem número bariônico um (1) e número leptônico zero (0). O lado direito deve ter os mesmos números. Com efeito, o único elemento a ter número bariônico da parte direita dessa equação é o próton que possui número bariônico unitário. Quanto ao eletron (de número leptônico um) e o antineutrino (de número leptônico menos um(- 1) ) eles se cancelam como deveria ser segundo as leis de conservação.
Além dessas famílias de partículas – barions e leptons – existem outras que são os reponsáveis por carregar a interação entre eles, como o fóton – condutor da interação eletromagnética; e os chamados mesons vetoriais, que carregam os processos de interação nuclear dito fraco ou de Fermi.
A matéria é composta de inúmeras formas e contém miríades de substâncias, que se concentram nas estrelas, planetas, galáxias e aglomerados de galáxias.
A configuração do universo, sua geometria depende somente da interação gravitacional. As demais formas de energia são somente fontes que determinam a evolução dessa geometria. É dessa evolução que iremos tratar.
Antes devemos chamar a atenção para uma questão crucial: se essa lei de conservação do número bariônico, descoberta em laboratório terrestre, fosse válida em todo o universo, em qualquer lugar do espaço-tempo, não haveria excesso de matéria (digamos, barions) sobre a anti-matéria (anti-barions).
No entanto, a observação e nossa própria existência permitem afirmar que em algum momento na história do universo essa lei foi violada. Isso sugere fortemente que não devemos extrapolar as leis físicas descobertas na Terra para todo o universo sem uma análise cuidadosa. As leis da física podem depender da configuração do cosmos, ou seja, da intensidade e característica do seu campo gravitacional.
Campos de longo alcance, gravitação e eletromagnetismo
(De Newton a Einstein, de Maxwell a Born-Infeld)
Existem somente dois campos de longo alcance no universo. Até o começo do século 20 a dinâmica desses campos era descrita por teorias lineares. Na gravitação, a famosa lei de Newton. No eletromagnetismo, as equações lineares de Maxwell. O uso dessas teorias ao longo do tempo produziu a compreensão de um grande número de problemas, desde o movimento dos planetas em torno do Sol até o comportamento de elétrons no interior dos átomos.
Ao longo do século 20 as teorias clássicas das forças de longo alcance sofreram uma enorme transformação. A antiga força gravitacional foi alterada profundamente por Einstein, em sua teoria da relatividade geral. Fenômenos não-lineares no eletromagnetismo também apareceram. As razões que levaram os físicos a procurarem teorias mais sofisticadas, de caráter não-linear para essas duas interações tem origens bem diferente.
No caso da gravitação, podemos identificar o aparecimento da teoria da relatividade restrita como o ponto crucial a exigir essa mudança. A razão é simples: a relatividade especial requer a existência de um limite máximo de propagação de qualquer informação energética. Ora, a teoria de Newton trazia sub-repticiamente a ideia de propagação instantânea, incompatível com a relatividade especial. A dinâmica do campo gravitacional sofreu então uma transformação radical. A teoria da relatividade geral associa a interação gravitacional a alterações na geometria do espaço-tempo produzida por qualquer forma de energia e matéria. Nesta teoria não somente a massa dos corpos produz gravitação, mas qualquer forma de energia também gera gravitação. Ora, como a gravitação também tem energia, segue que ela também gera campo gravitacional. Ou seja, gravitação gera gravitação. Consequentemente a não linearidade aparece inevitavelmente.
No eletromagnetismo, à parte o desenvolvimento da teoria quântica, o principal fator a conduzir os físicos a uma versão não-linear se deveu à presença de singularidades no eletromagnetismo de Maxwell. Assim, mesmo no mundo clássico, alterações não-lineares permitiram realizar uma teoria eletromagnética sem singularidades. Caso típico e bem-sucedido foi a proposta apresentada por Max Born e Leopold Infeld na década de 1930.
Eliminando as singularidades do campo eletromagnético
Uma das dificuldades maiores da teoria do eletromagnetismo clássico está associada à presença de divergências. Por exemplo, sabia-se de longa data que ao longo da linha de universo de uma partícula carregada – digamos, o eletron – o campo assume valor infinito. A tradição da física requer que os infinitos de uma teoria sejam de alguma forma proibidos de acontecerem. Na teoria de Maxwell essa dificuldade é central e embora não tenha sido resolvida ela foi transcendida com a sua versão quântica. Mas a questão permaneceu: pode uma teoria clássica do campo eletromagnético eliminar essa singularidade?
Em um artigo seminal de 1934 os físicos Max Born e Leopold Infeld [1] argumentaram que quantidades divergentes, isto é, admitindo possibilidade de valores ilimitados deveriam estar ausentes de toda teoria clássica de campo para não violar o princípio de finitude da energia. Ou seja, as quantidades observáveis de uma teoria só podem conter quantidades finitas. Isso implica que a teoria linear de Maxwell que descreve processos eletromagnéticos deveria ser alterada para que não apresentasse essas singularidades.
Para contornar essa dificuldade Born e Infeld propuseram uma modificação na descrição do campo eletromagnético de tal modo que ela contivesse explicitamente a impossibilidade formal de admitir valores infinitos em qualquer circunstância. Passou-se assim de uma teoria simples, linear, para uma outra formulação, mais complexa, não linear de tal modo que os campos eletromagnéticos na nova teoria sejam bem-comportados, isto é, finitos.
É importante notar que em condições usuais nos laboratórios terrestres a teoria linear de Maxwell produz uma boa explicação dos fenômenos. Somente na presença de campos extraordinariamente elevados, como os existentes no cosmos, essa alteração não linear é particularmente importante.
Eliminando as singularidades do campo gravitacional
Na cosmologia, onde a Relatividade Geral e a teoria de Maxwell se combinam, um comportamento singular para a geometria do universo é inevitável. Somente quando processos não lineares do eletromagnetismo são considerados essa dificuldade pode ser ultrapassada.
No caso do campo gravitacional a questão singular adquiriu uma dramaticidade que inexiste no campo eletromagnético, pois a singularidade cósmica do campo gravitacional foi associada ao início da existência do universo. Isso ocorreu de modo transparente na forma de descrição da geometria em um universo em expansão. Enquanto ao longo de várias décadas, logo em seguida à publicação do modelo de Friedmann, muitas criticas questionavam a existência da singularidade naquela geometria, foi somente em 1979 que soluções analíticas de cenários de universos espacialmente homogêneos e isotrópicos vieram à luz. Desde então, cenários cosmológicos onde a singularidade inicial não existe têm sido intensivamente estudados (ver para um estudo completo dessa questão o artigo sobre modelos com boucing de Novello-Santiago).
Esses cenários sem singularidades, iniciaram uma nova fase da Cosmologia exibindo a possibilidade de um bouncing, isto é, a possibilidade do universo ter tido uma fase anterior à atual na qual ele estaria se contraindo, tendo passado por um valor mínimo de seu volume total e então iniciado a atual fase de expansão.
O universo homogêneo e isotrópico
Desde o primeiro modelo cosmológico, proposto por Einstein, utiliza-se um sistema de coordenadas gaussiano. Neste sistema, se escolhe um tempo global e uma superfície tridimensional que chamamos espaço. Essa superfície é entendida como homogênea e isotrópica. As observações não invalidaram, até hoje, essas hipóteses.
Isso é um resultado importante, pois nesse caso, a dinâmica de evolução do universo é dada por uma única função do tempo a(t) chamada fator de escala. O volume total do espaço nada mais é do que o cubo dessa função. A maior dificuldade desses cenários consiste na propriedade inerente aos modelos cosmológicos tradicionais, gerados por um fluido perfeito com densidade de energia e pressão positivos, que implicam inevitavelmente a presença de uma singularidade. Ela aparece ao se notar que nesses modelos essa função a(t) pode ter tido em um passado finito o valor nulo. Nesse ponto, as quantidades escalares, invariantes, associados à curvatura do espaço-tempo assumem valor infinito, isto é, não poderiam jamais serem observadas.
O campo eletromagnético como energia da evolução cósmica
(Maxwell e a singularidade cósmica)
No Congresso Solvay de 1958 o cientista Fred Hoyle examinou a possibilidade de existir enorme campo magnético primordial capaz de ser o principal responsável pela evolução do universo. Mais tarde abandonou esta ideia para desenvolver sua teoria da criação continua de matéria. Em 1965 o cientista russo Yakov Zeldovich reexaminou a proposta do campo magnético e apresentou argumentos de que ele poderia efetivamente gerar um universo anisotrópico especial em um estágio anterior ao cenário isotrópico atual.
Ao considerar o campo eletromagnético como principal fonte da energia capaz de controlar a evolução da geometria do universo, a primeira questão que aparece é: como compatibilizar este campo com uma geometria espacialmente isotrópica? Com efeito, no cenário convencional da cosmologia, desde sua origem no artigo de Einstein de 1917, aceita-se como hipótese fundamental, a possibilidade de definir um tempo único, gaussiano, capaz de separar o mundo em uma estrutura temporal e um espaço tridimensional. Neste esquema, o modelo de geometria que parece estar melhor adaptado às observações astronômicas admite que essa superfície tridimensional seja homogênea e isotrópica. Isso significa que sobre a superfície “espaço”, isto é, em um dado tempo cósmico, todos os pontos possuem as mesmas propriedades. Ademais, não existe nenhuma direção privilegiada, ou seja, o espaço é isotrópico.
Uma tal hipótese de trabalho tem sido aceita sem que nenhuma contradição interna ou observacional tenha sido posta em evidência. É bem verdade que uma importante linha de investigação está relacionada com a possibilidade de tratar essa isotropia como consequência física de processos ocorridos no passado, quando o universo estava tremendamente concentrado. Nós falaremos sobre isso em outro lugar. Aqui, vale somente ressaltar que uma fase caótica anterior à alta dose de simetria deste modelo isotrópico tem sido motivo de investigação em particular pela antiga escola russa de cosmologia desde os anos 1970, tendo à frente o cientista Evgeni Lifshitz que participou diversas vezes da Brazilian School of Cosmology and Gravitation (https://ceacbrasil.com/bscg/.)
A razão da dificuldade em considerar o campo eletromagnético como controlador da evolução da geometria do universo está relacionada à sua propriedade de que ele é representado por um vetor. Isso implica que a existência de campo elétrico e de campo magnético faz aparecer direções privilegiadas associadas a esses dois vetores.
Para contornar essa dificuldade, o físico Richard Tolman propôs um critério segundo o qual é possível que o campo eletromagnético possa dar origem a uma geometria do tipo proposto por Friedman, ou seja, homogênea e isotrópica. Para isso, um certo procedimento de média espacial deveria entrar em ação. Desde então, esse método de média tem sido usado, se tornou padrão, permitindo descrever o estágio condensado do universo em seus momentos iniciais da atual fase de expansão do universo espacialmente homogêneo e isotrópico como uma radiação de gás de fótons.
Qualitativamente, sua argumentação pode ser simplificadamente assim exposta. Em um universo onde não existe uma direção privilegiada, devemos considerar que todas as direções dos campos eletromagnéticos sejam igualmente possíveis. Desse modo, a distribuição de energia – fonte da gravitação – pode ser obtida através de um procedimento de média de tal modo que embora estes dois vetores (os campos elétrico e magnético) tenham média nula, (ou seja, não exibam direção privilegiada), o produto desses vetores entre si e um com o outro (que é a forma como esses campos contribuem para a densidade de energia) fonte de gravitação, podem não ser nulos. Graças a esse procedimento o resultado final reduz a distribuição de energia desses campos como um fluido perfeito. Na teoria linear de Maxwell esse fluido é tal que sua pressão é 1/3 da densidade de energia. Usando essa distribuição de energia nas equações da teoria da relatividade geral obtém-se um cenário cosmológico na qual a geometria do universo é homogênea e isotrópica com uma dinâmica expansionista singular. Ou seja, essa energia teria, assim como o campo gravitacional – representado pela curvatura do espaço-tempo– um valor infinito no início formal do tempo cósmico.
Universo Magnético
Regularizando os dois campos clássicos na construção de um modelo cosmológico.
Recentemente a proposta de Zel´dovich foi retomada e cenários cosmológicos onde somente a parte magnética do campo eletromagnético sobrevive tem sido intensamente estudada. A contribuição do campo magnético à energia cósmica possui uma propriedade notável, associada ao processo de média, e diz respeito ao fato de que a evolução temporal do campo magnético médio independe da forma de sua dinâmica e é consequência somente da lei de conservação de energia. Ou seja, qualquer que seja a teoria eletromagnética (seja a forma linear de Maxwell, seja a expressão não linear de Born-Infeld ou seja uma sequência de expressões a determinar sua evolução) a dependência temporal é a mesma. A origem dessa propriedade se deve ao procedimento de média que reduz a importância da dinâmica do campo eletromagnético na formação da curvatura do espaço-tempo. Essa propriedade notável implica que a dependência do campo magnético com o tempo é controlada somente pela lei de conservação de energia.
Na geometria espacialmente homogênea e isotrópica que associamos ao universo a única função que a determina completamente é a variação temporal de seu volume. A lei de conservação de energia implica que neste cenário geométrico o campo magnético varia com o inverso de seu volume elevado à potência 2/3.
Assim, se a dinâmica do campo eletromagnético é constituída por um polinômio (digamos P1, P2, P3 e P4) de quantidade invariante do campo, suas diferentes componentes se comportam como fluidos perfeitos independentes uns dos outros. Tudo se passa como se o campo magnético médio possa ser descrito como um conjunto de fluidos perfeitos independentes de energias distintas E1, E2, E3 e E4, respectivamente. Essa propriedade permite a existência de diferentes fases do universo. Em certas fases da evolução do universo atinge o valor zero, mais de uma vez. Nesses momentos, um processo notável auto regulador se estabelece inibindo que a energia deixe de ser positiva.
Em consequência, a geometria descreve um universo possuindo fases de colapso e de expansão gravitacional. Cada vez que a densidade de energia se anula o universo passa de uma fase a outra, ou seja, transforma, por exemplo, a contração em uma expansão quando seu volume atinge o valor mínimo. Em outro momento, quando ele está em grande expansão o inverso ocorre: quando a densidade novamente se anula o universo passa da fase de expansão ao colapso. Essas fases se sucedem continuamente produzindo uma estrutura cíclica.
O cenário do universo cíclico pode ser pensado como o resultado de uma simetria cósmica entre a energia magnética fraca e forte. Dito tecnicamente, a densidade de energia magnética é invariante se o fator de expansão a(t) é trocado pelo fator inverso 1/a(t).
Isso permite, de um só golpe e somente com uma só fonte – a energia magnética- solução tanto do problema da singularidade inicial bem como da aceleração atrasada do universo.
Sintese do universo magnético auto-regulador
Neste cenário a evolução da geometria do universo é dominada integralmente, em toda sua história, pela interação entre os campos magnético e gravitacional. Uma combinação dos dois únicos campos de longo alcance produz a evolução da estrutura métrica do espaço-tempo, cujas dinâmicas são controladas pela teoria da relatividade geral e por uma teoria não linear para o campo eletromagnético.
Essa estrutura não possui singularidade e tem um sistema auto regulador que impede a densidade de energia de ser negativa, bem como inibe o campo gravitacional de exibir uma singularidade, limitando um valor mínimo possível para o volume total do espaço tridimensional.
Existe um ciclo básico de evolução, que se repete, a partir da simetria campo forte-campo fraco, consistindo nas seguintes etapas:
- O universo possui uma fase colapsante até atingir um valor mínimo para o seu volume. Neste ponto, a densidade de energia vale zero e o fator de expansão, ou seja, o volume espacial total, tem um mínimo;
- Passada aquela fase o universo inicia uma fase de expansão;
- Em momento posterior uma fase de aceleração acontece;
- Essa fase se encerra quando a densidade de energia volta a ter o valor zero e o universo transforma sua expansão em colapso;
- Chega-se à fase primeira deste processo e uma nova série colapso-bouncing -expansão-aceleração-colapso acontece;
- Esses ciclos podem ser repetidos indefinidamente.
Apêndice. As geometrias do mundo
Uma geometria, como vimos usando este termo nestas lições tem a função de instituir uma régua, um relógio, instrumentos projetados para medir distâncias espaciais e temporais. Esse aparelho pode ser virtual, isento de contato com o mundo ou pode dele sofrer alterações. Para permitir uma formalização dessas diversas possibilidades os matemáticos produziram vários tipos de geometria que iremos descrever muito sucintamente. Nós só consideraremos aquelas formas que, de um modo ou de outro, são empregadas nestas notas e desempenharam um papel importante nos programas cosmológicos. Reconhecemos as seguintes geometrias pelos nomes que os matemáticos atribuíram:
- Euclides. É a geometria (euclidiana) que usamos no cotidiano.
A distância ds entre dois pontos O e A no plano de coordenadas (x, y) é dada pelo valor positivo
ds2 = dx2 + dy2
A distância ds só será nula se os dois pontos (O e A) coincidirem.
Desenho 1
- Minkowski. É a geometria que descreve distâncias espaço-temporais.
A distância ds entre dois pontos O de coordenadas (0, 0, 0, 0) e A de coordenadas (t, x, y, z)) é dada pelo valor
ds2 = dt2 – dx2 – dy2 – dz2
Note que como o sinal da coordenada temporal é oposto às coordenadas espaciais, essa distância pode ser nula sem que os pontos O e A coincidam. Os pontos para os quais ds se anula são caminhos da luz, de comprimento nulo (na métrica de Minkowski).
Desenho 2
O cône ϒ representa os caminhos da luz. Todo observador ou qualquer corpo material só pode seguir caminhos no interior desse cône, pois a velocidade da luz é a máxima possível (teoria da relatividade especial).
- Riemann. Uma generalização dessas geometrias envolve a multiplicação de cada distância dx ou qualquer outra, por funções arbitrárias. Escreve-se então
ds2 = F dt2 – G dx2 – H dy2 – L dz2
Onde (F, G, H, L) são funções das coordenadas. Ou, em geral
Note: embora tenhamos escrito a distância entre dois pontos em um espaço a 4 dimensões do tipo de Minkowski como elementos constantes , ela pode ser escrita sob a forma riemanniana, através de uma simples transformação das coordenadas (t, x, y, z).
- Os modelos cosmológicos chamados pelo nome de seu descobridor (Einstein, deSitter, Kasner, Friedmann, Gödel) são exemplos da geometria de Riemann que satisfazem as equações da teoria da Relatividade Geral para diferentes configurações da matéria.
- Weyl. Numa tentativa fracassada de unificação entre os campos gravitacional e eletromagnético, Weyl elaborou uma estrutura geométrica nova distinta da geometria de Riemann, generalizando-a. Ela teve importante consequências no mundo quântico no exame das estruturas propostas por deBroglie e Bohm. Nós trataremos dessa geometria em capitulo posterior.
Referências
- Ver em marionovello.com.br e outras referências ali citadas.
- Mario Novello e Érico Goulart: Eletrodinâmica não-linear (causalidade e efeitos cosmológicos). Coleção CBPF. Ed. Livraria da Fisica. (2010)
- Mario Novello: Cosmologia. Coleção CBPF. Ed. Livraria da Fisica. (2010).
- Novello: Do big bang ao universo eterno. Ed. Jorge Zahar (2010).