Os sonhos atribulados de Maria Luisa – parte final
Capítulo 6: Um sonho de fazer inveja
Se fazer um bolo já era uma coisa complicada demais, que dirá fazer o Universo inteiro! Seu pai tinha dito no jantar que eles – os cosmólogos – estavam “estudando como o mundo tinha sido feito”.
Maria Luísa ficava fascinada com essas coisas. Imagina só: saber como o mundo todo tinha sido feito! Parecia coisa de Deus, sei lá! Nestes momentos, mais que nunca, ela se enchia de orgulho de seu pai. Mas é bem verdade que, por outro lado, preferiria que, pelo menos de vez em quando, ele deixasse essa tal de cosmologia de lado e ficasse mais tempo com ela. Mas isso, claro está, ela nunca disse.
Naquela noite seu pai tinha chegado mais excitado que o normal. Subiu logo para o escritório, sem querer saber do jantar – o que, certamente, era pouco comum. Dona Heloísa tinha dito que não se podia fazer barulho, porque ele estava trabalhando.
– Como se isso fosse novidade…, resmungou Maria Luísa.
Ela e Pedro Paulo foram para o quarto dormir. Enquanto Pedrinho caía no sono, Maria Luísa se pôs a imaginar o que estaria acontecendo no outro quarto. “Será que papai está vendo mesmo se Deus estava certo quando fez o mundo?”, pensou, repetindo o que ouvira sua tia falar.
Ela sabia que alguma coisa muito séria estava acontecendo. Tinha ouvido uma discussão violenta logo depois que o doutor Friedmann chegara, na noite anterior. Mesmo assim o doutor Luís insistira para que ele ficasse. Afinal, não é todo dia que se recebe um visitante tão ilustre, ainda mais vindo de um lugar tão longe quanto a Rússia! Porém mais importante que isso era que o doutor Friedmann, como praticamente todos os amigos de seu pai, também gostava de discutir ciência. Nisso o doutor Luís era famoso: estava sempre interessado numa boa “briguinha científica”, como costumava dizer.
Maria Luísa lembrou da cara do Píon na véspera, quando eles tinham escutado parte da discussão. Ele ficara com os olhos arregalados. Não conseguia acreditar no que ouvia do doutor Friedmann:
– As partículas elementares que vemos hoje, como os prótons, os elétrons, os fótons, são exatamente as mesmas, desde o começo desta fase de expansão do Universo…, dissera ele.
– Caramba! Então eu tenho mais de dez bilhões de anos! Por isso estou sempre tão cansado!, exclamara o Píon Carregado. Mas ele não sabia que aquilo não se aplicava ao seu caso.
O doutor Friedmann tinha passado praticamente toda a sua vida na Rússia, mas tinha ficado famoso mesmo quando, já bem velhinho, dera uma conferência em Chicago. Embora fosse a época áurea do gangsterismo, da famosa lei seca – as ruas pareciam um verdadeiro faroeste –, tal violência não ocorria no interior das salas de aula das universidades. “Para ser mais preciso”, falava, com seu ar blasé, o professor Montana, “aqui, a violência se manifesta de outro modo.”
Chicago, como todos sabiam, ditava a moda. Havia várias razões para isso. A mais simples era a que o próprio professor Montana, com uma certa dose de cinismo, proclamava: “Nós temos dinheiro.” Isso encerrava qualquer discussão mais séria.
Maria Luísa não estava nada interessada na violência que poderia aparecer nas reuniões dos cientistas, mas sim em saber se seu pai tinha razão ou não. E em saber quem iria ganhar a discussão sobre se o Universo inteiro tinha sido criado há poucos bilhões de anos!
Levantou-se da cama e foi indo devagarinho para o escritório. O clarão que a tinha acordado fora substituído por uma escuridão tão grande que ela nem podia distinguir até onde tinha andado. Mas sabia muito bem que já deveria estar no escritório. Estranhamente, ela continuava andando e nada de chegar lá.
Estava já pensando em voltar quando ouviu aquela voz bem sua conhecida:
– Você sabe, não é, queridinha, nós ficamos assim meio perturbados quando, de repente, aparece uma luz muito forte, disse o Píon Carregado. Por alguns momentos ficamos praticamente cegos. Ademais, acrescentou em tom amedrontador, um clarão desses (de onde, parece, saiu o mundo!) sempre deixa alguma sequela…
Embora não tivesse gostado daquela história de sequela, Maria Luísa se sentiu reconfortada por reconhecer a voz dele.
– Que bom que você apareceu! Eu já estava ficando com medo sozinha aqui!
– Mas você não está sozinha. Todo o mundo já chegou. Só que, como está muito quente, ninguém gosta de se separar.
Essa lógica, ela não entendeu. “Ué, se está quente é que eles deveriam se separar”, pensou, mas não disse nada. Afinal, ela já estava se acostumando àquelas esquisitices.
– Por exemplo, continuou ele, ali estão os Quarks – livres, como se já tivessem cumprido sua prisão. Ou ainda nem começado…
– Prisão?, perguntou ela, espantada.
– Essa é outra das histórias desagradáveis que você não conhece. Pois saiba que eles nunca mais vão poder andar assim, sozinhos, livres. Vão ficar para sempre presos uns nos outros, eternamente. Coisas dos amigos de seu pai, disse, e engoliu rapidamente dois ou três fótons que passavam por ali.
Maria Luísa não tinha gostado da referência aos amigos de seu pai, mas limitou-se a dizer:
– Puxa, que apetite!
– Ah, menina, continuou o Píon, devo aproveitar. Daqui a pouco, quando a expansão do Universo inteiro começar pra valer, os Fótons vão perder suas forças. Vão ficar praticamente sem energia. O professor Friedmann chama isso de desvio-para-o-vermelho, e é uma doença muito perigosa e contagiosa! Um outro russo, o doutor Gamow, encontrou um antídoto, mas o pessoal de Chicago – sabe-se lá por quê – proibiu o seu uso.
Maria Luísa não estava nada interessada nos hábitos alimentares do Píon. Ela queria era escutar a conversa que devia estar acontecendo no escritório. Mas estava muito difícil reconhecer os ambientes. Parecia que tudo tinha saído do seu verdadeiro lugar!
– Minha filha, continuou o Píon, como se uma vez mais tivesse lido o pensamento dela, essa história de lugar aqui é muito esquisita mesmo. O meu amigo Dílaton uma vez saiu de casa e, como não havia estradas nem placas de orientação, foi andando, assim meio sem direção. Mas a geometria do lugar era tão confusa que ele se perdeu e durante um longo tempo não foi encontrado. Só depois de muita procura foi visto, semimorto, numa praia tão isolada que nem nos mapas havia. Foi necessária uma dose maciça de fótons para ele voltar à vida. Ele disse que, sem saber como, uma imensa onda gravitacional – dessas que só se vê em filme – o tinha girado de cabeça pra baixo e chacoalhado tanto com ele que por todo aquele tempo ficou desacordado. Quando finalmente deu por si, não sabia onde estava nem o que tinha ido fazer ali. O lugar era realmente tenebroso. Uns bandos passavam para cima e para baixo, agredindo os outros, brigando, tentando mostrar quem mandava ali. Era terra-de-ninguém, como se diz. “Só que estava cheia de alguéns”, disse-me o Dílaton.
Maria Luísa não queria mais falar daquilo. Para começar ele parecia confundir geometria com geografia. Mas na verdade ela estava ficando com medo. O Píon percebeu e não insistiu no assunto.
Ela queria era encontrar o escritório e estava angustiada porque não conseguia. “Talvez devesse voltar pra trás”, pensou, “e recomeçar lá do meu quarto.” Mas essa história de voltar para trás era com o doutor Rosen.
– Se você quiser eu posso tentar falar com meus amigos, disse o Píon. Eu conheço umas pessoas – muito ligadas em mim, acrescentou (Maria Luísa reparou que ele tinha falado em mim e não a mim) – que adoram essa história de voltar para trás. São os Káons. Se você quiser podemos ir lá falar com eles.
Maria Luísa não sabia o que fazer. Estava tudo tão confuso! Aquilo ali parecia um caos. “Alguém deve acabar com isso!”, disse para si mesma, imitando dona Heloísa. Mas botar ordem nas coisas não é mesmo tarefa fácil. Muitos já tinham pensado num modo simples e rápido de fazer isso…
– …mas você sabe, não é? Ensinar às coisas é muito difícil. Elas esquecem logo!, falou o Píon, de um jeito tão esquisito que ela não conseguiu saber se era de brincadeira.
– Não sei, não, disse agressivamente, num tom de quem estava muito aborrecida. E, percebendo que ele estava brincando, retrucou: Em verdade, as coisas nunca esquecem. Afinal, elas não são responsáveis por nada!
Ela ia dizer mais quando se lembrou que o pai costumava afirmar: “As coisas procuram sempre seu lugar no mundo”, como se soubessem o que têm que fazer.
O Píon começou uma nova frase de efeito:
– Sim, pois o princípio variacional…
Maria Luísa cortou a frase pelo meio:
– Não quero mais saber disso, viu? O que eu quero é saber se afinal de contas o professor Friedmann tinha razão sobre aquela história de que o mundo começou há pouco tempo, como dizem alguns cosmólogos.
O Píon ia retrucar perguntando se mais de dez bilhões de anos era pouco tempo para ela, mas, dado o estado agressivo de Maria Luísa, resolveu ficar calado. Ademais, ela dissera alguns cosmólogos num tom bastante especial, para caracterizar bem que havia outros que não usavam essa simplificação que muitos colegas de seu pai faziam, quando se referiam ao Universo como tendo um começo.
O Píon disse, como quem quer evitar qualquer briga:
– Estão dizendo que o professor Friedmann não tinha mesmo razão. Quem me falou isso foi o Dílaton, aquele meu amigo.
Maria Luísa estava começando a pensar que o Píon gostava mesmo era de uma fofoca.
– Papai vai ficar furioso quando souber do jeito como você fala dessas coisas, ameaçou.
Mas o tempo ia passando e nada de chegar ao escritório. De repente Maria Luísa ouviu passos na escada e se assustou. Lembrou então que sua mãe chamara a doutora Mafalda para vir conversar com ela. Podia jurar que era a doutora quem estava subindo as escadas. Foi engatinhando para o outro lado do corredor quando se deu conta de que alguém do lado de lá puxava com violência o tapete. Como não viu ninguém, achou que era mais uma brincadeira do Píon. Mas logo em seguida sentiu que da outra direção puxavam também.
O Píon Carregado, que estava quietinho grudado na parede, com uns olhos grandes que não acabavam mais de medo, disse:
– É o professor Kasner. Ele tem mania de desarrumar tudo! Não pode ver nada assim certinho que quer logo mudar tudo de lugar!
Maria Luísa já tinha ouvido seu pai falar dele. Parece que uma vez, quando ele era muito jovem e arrogante, tinha brigado com muita gente querendo impor uma versão diferente daquela que o doutor Friedmann contara sobre o nascimento do mundo!
– Essa história de o Universo se expandir uniformemente em qualquer direção, feito um balão de soprar, não é nada bom! disse o doutor Kasner. O mundo inteiro não pode ter sido criado assim, de modo tão… simples.
O Píon continuava:
– O professor Kasner diz que o Universo em que vivemos devia ter sido criado – se criado foi… Nunca se sabe, não é mesmo? – bem mais complicado e cheio de irregularidades. Que só depois de muita confusão, e com o auxílio dos De Neutrino (que trabalharam um tempão fazendo desaparecer todas as desigualdades) é que a história que o professor Friedmann conta pode ser considerada de verdade! Diga-se de passagem, eu não concordo nada com isso. Parece até que o doutor Kasner quer mesmo é tomar o lugar dele…
Essa última frase foi dita propositadamente baixinho, para ver a reação dela.
– Eu, por mim, acho que o professor Kasner tem razão.
Quem falava era o De Neutrino, que havia algum tempo estava por ali ouvindo a conversa e que, tendo percebido que os Píons falavam abertamente com Maria Luísa, sem nenhum medo, resolvera que também podia se dirigir a ela.
– Eu já disse e repito para quem quiser ouvir: se precisarem de mim é só me chamar! Estou sempre preparado para consertar qualquer coisa. Vocês podem perguntar a qualquer um… Antigamente, há muito tempo, eu vivia sozinho, não me dava com ninguém. Mas hoje em dia eu penso que um pouco de diversão é muito bem-vinda. Por exemplo, essa ideia de usar sapatos cheios de furinhos que o professor Kasner me deu é muito boa. Eu estava cansado de andar por aí sem nenhuma interação, pulando de um lado para outro, correndo feito um louco, como os Fótons. Ninguém nem me via! Eu estava livre, mas sozinho! Agora, com essa viscosidade ruguenta nos sapatos novos, estou andando bem mais devagar. Posso até parar de vez em quando e conversar um pouquinho com as gentes. Estou pensando até mesmo em ampliar meu círculo de amizades. Estou aprendendo a viver, menina!
Maria Luísa ficou muito espantada com aquelas confissões inesperadas e tão íntimas. “Gozado! Eu sempre ouvi dizer que os De Neutrino eram esnobes e não queriam falar com ninguém”, refletiu.
Alheio àquelas fofocas todas, o doutor Kasner continuava a expor suas mudanças para quem quisesse ouvir.
– Vamos começar por mudar a estrutura de toda a construção. Para isso é preciso esquecer essa história de que deve ter havido uma inchação geral e igual para tudo quanto é lado. Comecemos aumentando o tamanho das coisas e expandindo o espaço todo, sim! Mas de modo di-fe-ren-te: de um jeito distinto para cada direção! Depois, sim, e à medida que o mundo inteiro for se expandindo, essa inchação geral pode começar a parecer mais e mais igual e acabar, depois de um longo, muito longo, tempo, ficando realmente igualzinha – como o doutor Friedmann quer: “inchação do mesmo modo em todas as três direções do espaço!”
E continuou:
– Podemos mesmo chamar os De Neutrino para fazerem isso. E para mostrar como isso aconteceu, vamos imitar essa fase agora mesmo, começando por expandir a casa do doutor Luís.
Embora tal ideia pudesse ser levada a sério, faltava dar as razões pelas quais ele queria que o mundo tivesse começado desse jeito. Mas isso ele não quis dizer. Nem nenhum dos presentes achou conveniente perguntar – afinal o doutor Friedmann podia estar por perto, e ninguém queria que uma nova briga se iniciasse.
Depois de um certo tempo, Maria Luísa compreendeu que era precisamente o doutor Kasner puxando um dos lados da casa que ela tinha sentido. “Mas se ele continuar puxando de um lado só desse jeito vai acabar esticando o meu pé!”, pensou.
Teve um sobressalto e despertou. Era Pedro Paulo quem puxava seu pé:
– Acorda, dorminhoca! Papai está chamando. O professor Friedmann vai embora e nós vamos levá-lo ao aeroporto.
Ela pulou imediatamente da cama: adorava ir ao aeroporto!
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Ao longo da década de 90, os cosmólogos começaram a empreender o exame do que se poderia chamar “modos de criação do Universo”. Isso significa simplesmente a possibilidade de exame dos mecanismos que deram origem à atual fase de expansão que o Universo vem sofrendo há mais de dez bilhões de anos. O modelo proposto pelo cientista russo Aleksandr Friedmann — no qual o Universo teria tido um começo — foi, assim, ultrapassado.
Algumas modificações propostas ao cenário de Friedmann têm sido recebidas com grande interesse. Dentre elas, uma alteração notável está relacionada à possibilidade de a expansão do Universo não ser completamente isotrópica. Isso significa que a expansão do Universo não teria as mesmas características nas diferentes direções do espaço. Dentre os diferentes cenários idealizados para representar uma tal situação, particularmente relevante por sua simplicidade e propriedades especiais foi aquele concebido pelo cientista E. Kasner.
Ao longo dos anos 60, surgiu uma questão interessante, que até hoje não possui uma resposta totalmente convincente: supondo a existência daquela fase não-isotrópica do tipo Kasner, quais teriam sidos os mecanismos fisicos através dos quais o Universo teria passado dessa configuração ao Universo de Friedmann? A proposta mais atraente apela ao papel que os neutrinos possivelmente teriam desempenhado nessa tarefa.
- Desvio-para-o-vermelho: é o fenômeno no qual os fótons perdem energia devido à expansão do Universo. Isso significa que quanto maior o volume do Universo, menor a energia dos fótons que existem livres no Universo.
Capítulo 7:
Uma noite muito, muito escura (Quando Maria Luísa se detém à borda de um buraco negro e quase cai lá dentro)
Bastou dizer que era hora de acordar para um sono imenso tomar conta de Maria Luísa. Ela sabia que aquela voz ao longe era a mãe, que, do andar de baixo, já estava pronta para subir as escadas apressando as crianças: “Estou subindo, ouviram?” Só que, naquele dia, mais do que nunca parecia que uma força esquisita, maior que qualquer outra, a prendia na cama. Maior até do que a visão da mãe chegando quase no topo da escada.
– Acho que a cama não quer me deixar levantar, disse Maria Luísa com seu jeito brincalhão, dirigindo-se a seu irmão. Como ela não ouviu nenhum resmungo ao lado, como de costume, arriscou abrir só um olho para o irmão. Quando olhou para a cama ao lado não viu nada.
“Ué!”, pensou. “Será que no mundo todo só eu ainda não levantei?” Aos poucos, porém, pareceu distinguir gritos de Pedro Paulo. Maria Luísa procurou se erguer, mas quando se pôs de pé sentiu que seu corpo era puxado para baixo tão fortemente que dava até para acreditar que suas pernas fossem se separar do resto!
– Cruz credo!, fez, como tia Néia, o sinal da cruz. É o próprio demo que está me puxando!
Maria Luísa viu um imenso buraco aberto à sua frente, como um poço grande, sem fundo aparente. Como essa história de poço-sem-fundo era coisa de criança ou de economista – o que, segundo seu pai, dava no mesmo –, ela tentou se inclinar mais para ver se conseguia enxergar alguma coisa. Mas o tal buraco era muito preto mesmo. Tão preto que poderia perfeitamente ser o tal buraco negro de que seu pai vivia falando: uma estrela danada de forte, que puxava tudo à sua volta para dentro de si. Maria Luísa ficou com medo de que seu irmão tivesse sido engolido pelo buraco.
– Preciso tirar ele de lá!, disse.
A ideia de que ela tinha trazido aquele buraco para dentro de casa com seus sonhos atribulados começou a assustar Maria Luísa. Um enorme sentimento de culpa a invadiu. “Quando mamãe chegar aqui em cima e vir Pedro Paulo lá dentro do Buraco Negro, vai brigar tanto comigo que vou até querer desaparecer lá dentro também!”
Enquanto pensava isso (e, claro está, não raciocinava corretamente, pois ninguém podia ver Pedrinho de dentro do tal Buraco Negro), Maria Luísa viu uma fila inteirinha de bolinhas entrando nele. De longe pareciam seus conhecidos, os Píons Carregados. Mas alguns eram bem diferentes dos que ela já havia visto. Eram muito maiores e mais gordos. “Vai ver estão comendo Fótons demais”, pensou ela, sorrindo.
Foi chegando perto e percebeu nitidamente um choro convulsivo. Parecia mesmo com o Píon Carregado, mas era uma mulher, disso ela não tinha a menor dúvida. Ou, pelo menos, se vestia como uma. “Deve ser a mãe do Píon, pela idade que aparenta”, refletiu.
– O que aconteceu?, perguntou, inclinando-se para chegar à altura dela.
Como não ouviu nenhuma resposta, achou que ela não tinha entendido e repetiu a pergunta. Essa cena se repetiu por quatro vezes até que, vindo de trás dela, ouviu a voz já bem conhecida:
– Não adianta falar. Ela não entende nada do que você diz.
Era o Píon mais uma vez. Maria Luísa ia perguntar por quê, então, ele entendia, mas ele já continuava:
– Eu também não entendo nada do que você fala…
Aquilo não fazia sentido. Eles haviam conversado, e muito!
– Você está mentindo!, acusou-o. Nós nos entendemos sim!
Como se não fosse com ele, o Píon continuou:
– …embora eu responda sempre às suas perguntas. Aliás, é muito fácil respondê-las. Você devia era ver as perguntas do professor Chandrasekhar! Ele sim sabe fazer perguntas. Uma ocasião ele fez três perguntas de uma só vez. Eu e meus amigos levamos quase o dia inteiro para responder. Tivemos que pedir ajuda a nossos vizinhos, a família De Neutrino, que são bons respondedores (e em consequência disso estão sempre se metendo em confusão).
Ele falava olhando para o Buraco Negro, como quem sabe muito bem o perigo de chegar perto dele. Continuou:
– O professor Dirac tem uma antipatia terrível por eles. Tanta, que pediu a vários de seus amigos para não deixarem os De Neutrino participarem de nenhuma reunião conosco! Foi preciso que o professor Chandra interferisse para tirar alguns dos Neutrinos que tinham caído no interior de uma estrela…
Maria Luísa não entendeu nada. O que é que os Neutrinos estariam fazendo numa estrela? Mas resolveu não fazer mais uma pergunta.
Como se tivesse se apiedado da cara de espanto que Maria Luísa fazia, o Píon Carregado resolveu responder à primeira pergunta:
– Ela está chorando, falou apontando, porque seu filho teve prisão perpétua decretada lá no Buraco Negro. Os cientistas dizem – não sei se é verdade –, que, mais grave ainda, lá dentro ele vai perder toda a sua identidade. Vão transformá-lo em três coisas: massa, carga e rotação. Isso é muito pouco para uma pessoa, você não acha?
Maria Luísa achava um absurdo. Uma verdadeira violação dos direitos… (ela hesitou)… humanos.
– Quem decretou isso?, perguntou.
O Píon olhou para os lados e sussurrou, com medo da reação dela:
– Os físicos amigos de seu pai.
Em seguida, rapidamente, para desviar a atenção dela, apontou para a placa de rua onde estava escrito:
Rua Horizonte de Eventos
Mais abaixo uma placa menor esclarecia:
Sistema de mão única
Uma coisa ela tinha entendido: ninguém, nem mesmo os Píons, podia deixar o Buraco Negro. Parece que os físicos haviam instalado um sistema capaz de impedir quem lá entrasse de sair. Mas a razão de tanto mistério ninguém sabia. Ou, pelo menos, não era divulgada. Parecia até segredo militar.
– O nome da rua é bonito, disse Maria Luísa.
Mas aquela conversa tinha distraído sua atenção. Era preciso não esquecer a razão principal de ela estar ali: encontrar seu irmão. Ia pensando nisso quando quase esbarrou numa figura imensa. Era o doutor Salim, um velho amigo de seu pai. Recuperando-se rapidamente do susto, explicou a ele sua apreensão com o irmão.
Maria Luísa gostava muito do doutor Salim; quando era pequena, ele costumava brincar muito com ela. O doutor Salim refletiu durante um bom tempo para, quase num sussurro, confidenciar:
– Olha, minha filha, eu ouvi alguém dizer que é possível sair de dentro do Buraco Negro. Mas o preço a pagar é muito alto.
Maria Luísa ficou angustiada. Ela tinha saído tão depressa que não tinha trazido nem um tostão. Onde ela iria arranjar dinheiro? Mas quando disse isso para o doutor Salim ele começou a rir. Num vozeirão ainda maior que o de costume, explicou:
– Não, menina, na natureza não se paga nada com dinheiro. Isso foram os homens – ou, para ser mais preciso, as mulheres – que inventaram! Na natureza você paga tudo com trabalho.
Maria Luísa não entendeu. “Ué”, pensou, “mas o trabalho das gentes não é para ganhar dinheiro?” Mas como não estava querendo discutir com ele, e sim resolver o caso de Pedro Paulo, perguntou:
– E o que devemos fazer?
– Bom, começou ele, a ideia mais simples é fazer um túnel. Para isso, a primeira coisa é pedir a ajuda de alguns de teus amigos. Os Píons, por exemplo. Eles são verdadeiros especialistas em túneis.
Essa parte era fácil. Qualquer lugar a que ela ia esbarrava com os tais Píons. “Puxa!”, dizia. “Parece até que a coisa que mais existe nesse nosso mundo são esses Píons!” Com efeito, bastou que ela se virasse para trás para encontrá-los, bem como todo aquele séquito que carregavam. Explicou a situação para quem lhe parecia ser o líder e acrescentou:
– O doutor Salim acha que seria até bom vocês pedirem ajuda aos seus vizinhos, os Neutrinos.
O líder dos Píons olhou com um certo ar de desprezo e disse, com uma voz que revelava claramente sua autoconfiança:
– Agora virou moda todo o mundo chamar os De Neutrino. Só porque eles podem passar através de vocês, humanos, pensam que só eles sabem como escapar de uma prisão! Pois saibam todos…
Interrompeu-se para respirar. Parecia mesmo muito emocionado, quando dizia isso. Fez um gesto bem teatral.
– …que nós, os Píons Carregados, e nossos primos-irmãos, os Píons Sem Carga, conseguimos escapar de qualquer prisão. De qualquer uma, ouviram bem?
Essa última frase foi dita quase aos berros.
Maria Luísa ficou com medo. Mas logo em seguida o Píon virou-se para ela e, num tom absolutamente calmo e relaxado, acrescentou:
– Você pode confiar no meu povo.
Dito isso, dirigiu-se para a entrada do Buraco Negro. A cena que se seguiu mais parecia um filme, de uma grandiosidade de fazer inveja a cineastas de grande imaginação. De dentro do Buraco Negro começou a aparecer uma enorme quantidade de Píons, todos enlameados. “Deve estar chovendo muito do lado de lá”, pensou Maria Luísa. Não paravam mais de chegar. Ela reparou que eles vinham andando de um modo diferente dos que já estavam do lado de fora. Cambaleavam como se estivessem doentes.
O doutor Salim amparou um deles e pediu a Maria Luísa para pegar um termômetro na sua mala. Ela passou o instrumento para ele, que começou logo a medir a temperatura dos Píons que saíam. Não deu outra: estavam todos com febre. Um febrão, na verdade.
– Foi alguma coisa que eles comeram lá dentro. Precisamos abaixar essa temperatura rapidamente, comentou, apressado. Nem bem disse isso, começou a jogar um imenso balde de gelo sobre eles.
Então, na confusão que se seguiu, Maria Luísa escorregou numa poça d’água e splash! – caiu dentro do Buraco Negro!! Ela se debateu por alguns longuíssimos minutos.
– Parece até que o tempo aqui não passa!, exclamou.
Mas a essa altura as coisas estavam acontecendo tão rapidamente e o ar estava tão cheio de uma fumaça descolorida que ninguém conseguia mais ver nada.
– Uma neblina dessas, de fazer inveja aos ingleses, isso sim parece um verdadeiro Buraco Negro, alguém lá longe falou.
A roupa de Maria Luísa havia se emaranhado nos Píons de tal modo que eles a iam arrastando para fora, pelo túnel que tinham construído. E ela trazia seu irmão preso pelos cabelos.
– Gozado!, disse em voz baixa. Eu pensava que no Buraco Negro todos ficavam carecas!
De onde ela tinha tirado essa ideia tão esdrúxula, ninguém nunca soube.
Ao longe, embora cada vez parecessem mais perto, os responsáveis pela vigilância do Buraco Negro – os Cavaleiros Clássicos – vinham correndo atrás deles. Mas eram muito mal treinados e não sabiam sequer pular a cerca que os envolvia. Esbarravam na placa que indicava a rua Horizonte de Eventos e caíam ao chão.
Os Píons, por outro lado, eram verdadeiros especialistas. Treinados pelo doutor Dirac, eles pulavam com perfeição. “Só agora entendi de verdade o porquê daquela roupa de cavaleiros que eles usavam quando os vi pela primeira vez!”, pensou Maria Luísa. “Eles treinam sempre esses pulos enormes!”
Quando ela finalmente chegou do lado de fora, trazendo o irmão, resolveu dar uma olhadela para trás. Era um verdadeiro campo de batalha. Os Cavaleiros Clássicos esbravejavam, excitadíssimos, os punhos fechados, gritando palavras terríveis, de dar medo!
Os Píons, pelo menos os que conseguiam escapar, estavam extenuados. Ela parou para agradecer-lhes, mas eles nem se importaram muito. Ademais, não pareciam nada contentes.
– Ah, minha filha!, disse um deles. Se você soubesse o que ainda temos que fazer para contentar o professor Dirac… Ainda temos que preparar essa festa! E você sabe como isso dá trabalho, não é?
“Festa? Que festa?”, pensou Maria Luísa. Prestando atenção, percebeu que realmente uma música tocava lá longe. “Ué! Será que alguém está dando uma festa aqui em casa e eu nem estou sabendo?” Mas logo ela se deu conta de que aqueles sons não eram de uma festa, mas ainda parte do sonho que ela estava tendo. A segunda parte, na verdade.
– Puxa, isso sim que é de espantar! O professor Rosen e o professor Ulpiano, os físicos e os filósofos juntos, vestidos de palhaços! Estou louca para ver mais de perto!, exclamou, correndo na direção deles. Ao entrar correndo pelo portão principal foi logo ouvindo alguém gritar:
– Agora sim, vai começar a festa de verdade!
Mas o que aconteceu ali e por que os amigos de seu pai estavam fantasiados daquele jeito é uma outra longa história.
– Bom, em suma, disse imitando o pai, essa outra parte do sonho eu só vou contar para a doutora Mafalda amanhã.
Pulou da cama e foi correndo dar um grande beijo em seu pai.
Comentários 7
- Buraco Negro: nome que se dá ao estágio final de uma estrela colapsada. O nome tem sua origem na propriedade que a estrela possui de gerar um campo gravitacional tão forte que praticamente nada pode sair de seu interior, nem mesmo a luz. A superfície que separa seu interior de sua região externa tem o nome de horizonte de eventos. Classicamente, toda forma de energia ou matéria somente pode atravessar esse horizonte em direção a seu interior, isto é, de fora para dentro. Efeitos de natureza quântica, no entanto, podem violar essa situação e permitir a evasão de energia de seu interior.
- Assim, o único efeito observável, do lado exterior de um Buraco Negro, deve-se à força gravitacional que produz. Essa força, no caso mais geral, tem somente três quantidades características: a massa do Buraco Negro, sua carga elétrica e sua rotação; todas as demais quantidades que singularizam qualquer corpo, material ou energético, perdem suas especificidades, e o corpo passa a ser identificado somente por essas três características.
- Radiação de um Buraco Negro: embora classicamente um Buraco Negro seja completamente ávido de matéria e energia, absorvendo tudo que lhe está à volta, podem existir efeitos de natureza quântica que permitem a emissão de radiação. Em geral, essa radiação é caracterizada por estar em equilíbrio térmico, a uma temperatura que depende da massa do Buraco Negro.
Um pouco mais sobre alguns dos personagens deste livro
Paul Dirac – um dos mais brilhantes físicos do século xx. Realizou importantes estudos sobre os fundamentos do mundo quântico e em particular sobre a teoria do elétron.
Albert Einstein – físico alemão. Um dos mais relevantes cientistas do século xx. Suas ideias sobre a estrutura e natureza do espaço e do tempo produziram uma verdadeira revolução no pensamento dominante da física.
Kurt Gödel – matemático austríaco. Embora tenha se notabilizado mais por seus estudos de lógica, elaborou um modelo cosmológico, a partir das equações da Relatividade Geral, que representa um Universo em rotação. Nesse seu modelo haveria caminhos que levariam um observador real ao passado.
Cesar Lattes – cientista brasileiro. Descobriu a partícula elementar chamada méson Pi (Píon).
Wolfgang Rindler – elaborou o conceito de “horizonte” para sistemas de referências não-inerciais (isto é, acelerados) e permitiu, com tais estudos, a compreensão da dependência do “vácuo” com o estado de movimento dos observadores.
Nathan Rosen – foi o idealizador, juntamente com Einstein daquilo que conhecemos hoje como “ponte de Rosen”, isto é, uma solução das equações da gravitação permitindo o tunelamento entre regiões do espaço-tempo capaz de possibilitar o que chamamos “volta ao passado”.
Cláudio Ulpiano – filósofo fluminense. Suas fascinantes aulas nos anos 70 e 80 revitalizaram o interesse pela filosofia, tornando-se um dos pontos de referência de seu estudo entre a intelligentzia carioca.