Os sonhos atribulados de Maria Luisa – parte 3
Capítulo 4: O jogo de amarelinha
Maria Luísa nunca gostou muito dos jogos em que se precisava correr. Muito menos esse de pular num pé só e saltar de quadradinho em quadradinho.
– E não gosto mesmo. Para ir de um lugar para outro, eu sei muito bem que tenho que passar por todos os lugares que estão no meio!, falou, assim que Pedro Paulo resolveu que era hora de pular amarelinha.
O dia estava sendo muito confuso. O visto no passaporte de seu pai tinha sido negado, de modo que ele não poderia ir à tal conferência com a qual estava tão entusiasmado… A nova teoria da gravitação em que ele vinha trabalhando há anos tinha chegado a um ponto em que lhe parecia suficientemente madura para vir a público. Seus dois principais colaboradores também participavam da excitação. Em consequência da negativa do visto, doutor Luís estava muito mal-humorado.
Maria Luísa sabia que a melhor coisa a fazer nessas horas era tratar de sair de perto. Brincar com Pedro Paulo seria a solução natural. O chato é que ele vivia insistindo nessas brincadeirinhas de criança! Como se ela não fosse quase adulta! Afastou-se um pouco e ficou vendo seu irmão brincar sozinho.
“Visto assim de longe é uma brincadeirinha muito esquisita. Duvido que alguma coisa que não fosse esse bobo poderia estar pulando desse jeito, só para ir de um lugar para outro”, pensou.
– Nem diga isso, menina. Se você soubesse o que os físicos nos obrigam a fazer…
A voz lhe era vagamente familiar. Maria Luísa se virou para o lugar de onde ela vinha e se espantou. Era o seu velho conhecido, o Píon Carregado.
– Ah, começou Maria Luísa, vejo que o senhor conseguiu se livrar do tal Mago Magnético!, falou em um tom meio debochado.
– Nem lembre, mocinha. Foi um momento terrível! Mas felizmente alguém nos ajudou, desligando o campo e desfazendo, pelo menos por enquanto, o encantamento da atração irresistível que temos por ele.
Maria Luísa não entendeu bem o que ele quis dizer com isso. Mas como não estava muito interessada, não fez nenhum comentário.
– Voltando ao que falávamos, eu poderia dizer que você não tem a menor ideia de como as coisas andam pulando por aí. Lá onde eu moro, por exemplo, em Microlândia, tudo vive pulando de um lado para o outro. Ninguém anda assim, direitinho como você. Nós saímos de um lugar e aparecemos em outro… sem que ninguém perceba. Como um fantasma.
Maria Luísa reparou que a roupa dele tinha mudado. Ela nunca tinha entendido por que eles tinham se vestido como cavaleiros, se sempre andavam a pé. Mas já nem adiantava lembrar. A figura dele era mais esquisita do que antes, o que quase fez Maria Luísa rir: o Píon estava vestido de um modo bem mais estranho, completamente envolvido por uma gaze, um tecido transparente, que mais parecia um véu de noiva.
Dessa vez ela não se conteve e perguntou:
– Mas que roupa esquisita! Por que vocês estão vestidos assim?
Falou no plural porque, embora não visse ninguém além dele, ela já estava desconfiada de que ele nunca andava sozinho, mas sempre em grupos. “Parece que eles fazem parte de uma mesma turma. Onde um vai, os outros vão atrás”, pensou. Mas ela não tinha certeza se aquele séquito era também da família dos Píons. “São tão grudados uns nos outros que não dá nem para distinguir…”
– Ah, minha filha!, retrucou o Píon com um ar meio desanimado, fazendo gestos de desagrado com aquela roupa. Isso é uma exigência do doutor Dirac. Com aquela mania de quem nasceu no interior, ele tem uma verdadeira paixão pelo mar.
O doutor Dirac não pertencia ao grupo dos amigos do doutor Luís, e sim a um outro clube. Nascera na Inglaterra, num lugar totalmente cercado por montanhas, e desde a infância gostava demais de ver o oceano e do contato físico com a água. Sua família fazia parte da nobreza e tinha até batizado um pequeno lago que cercava uma de suas propriedades, a Vila dos Dois Estados, com o pomposo nome de mar de Dirac. Uma vez, atravessando o “mar” em uma pequena canoa, Dirac se debruçou tanto que quase caiu n’água. Foi um deus-nos-acuda! Se não fosse por seu amigo Feynman, que o segurou praticamente pelo pé, teria tido sérios problemas.
– Você sabe, o mar de Dirac é muito perigoso, e quem mergulha nele dificilmente volta à terra. Ademais, não se pode andar por ali sozinho, tem sempre que ir junto com alguém. O mais aconselhável é levar meu anti-irmão, alguém assim, quase igualzinho a mim… Você nem acredita no que pode acontecer comigo se eu quiser entrar lá sozinho…
Fez um pequeno silêncio, como que para ver o efeito daquilo sobre ela.
– Em verdade, o ideal seria trazer alguém mais forte do que nós dois para nos ajudar a sair do mar quando quisermos, porque sozinho é im-pos-sí-vel… Isso quem diz não sou eu, porque graças a Deus nunca tive tal experiência, continuou o Píon, mas o professor inglês, doutor Dirac. Os ingleses são muito orgulhosos – um hábito que vem da época em que dominavam os mares, o mundo todo, infelizmente um tempo que não volta mais…, falou em tom melancólico.
Maria Luísa ia retrucar e dizer que esse tempo passado podia voltar sim, que bastava entrar numa daquelas curvas do tempo de que falava seu pai, porém se lembrou de um olhar carrancudo que o doutor Rosen lhe havia dirigido e desistiu. Ademais, ela não tinha entendido bem o que o Píon tinha querido dizer quando falou do anti-irmão. Ela ia se preparar para perguntar, mas ele não lhe deu tempo.
– Assim, continuou, cada vez que o professor Dirac sai a passear, é quase certo ele viajar horas e horas para chegar até a Vila dos Dois Estados; e, como sempre, vamos com ele. Você sabe, não é queridinha, nós é que cuidamos dele, disse com orgulho. Quando chegamos lá ele pumba!, tenta nos jogar no mar. Sai sempre uma confusão medonha! Eu pulo para um lado, o Antipíon pula para outro! Aliás o Antipíon é sempre assim: quando eu faço uma coisa ele faz a inversa; se vou para a direita, ele vai para a esquerda!
Parou um pouco para tomar fôlego e recomeçou sem que ela pudesse dizer nada:
– Mas você sabe, não é? O professor Dirac tem tantos serviçais que fazem isso de jogar a gente lá dentro que, sem que se perceba, num piscar de olhos, o mar fica cheinho. Eles conseguem ocupar todos os lugares disponíveis. Todos os lugares, repetiu. Você acredita nisso?
“Mas então”, pensou ela, “por que será que ele leva todo o mundo para lá se os que ficam de fora não podem mais entrar no mar?” Maria Luísa achou essa brincadeira muito desagradável e triste. Uma vez mais o Píon pareceu ler seu pensamento:
– Mas não se trata de brincadeira. É um ritual.
Maria Luísa não sabia bem o que era um ritual, mas fez um sinal com a cabeça como se tivesse achado a explicação muito convincente.
– Você não entendeu, não?
Essa pergunta deixou a menina envergonhada. Ela não tinha entendido, mas não queria dizer. Sem saber o que fazer, ela ficou assim, com o olhar vago. O Píon não esperou pela resposta e continuou:
– Assim como quando você vai à igreja: lá também tem um ritual. Os físicos são cheios de manias. E principalmente de ordens. Adoram dar ordens! A última que acabei de saber é simplesmente incrível. Veja você…
Ele ia continuar a explicação quando ouviram um barulho esquisito, como um assobio que vinha crescendo ritmadamente. Maria Luísa olhou para o Píon pedindo proteção. Aquilo parecia um exército marchando ritmadamente, os pés batendo no chão com a mesma frequência!
– Ah, disse ele, não se preocupe. Eu sei o que é. São os Fótons, uns grãozinhos desse tamaninho de luz. De meia em meia hora eu sou obrigado a engolir uma dessas bolinhas – outra das ideias do professor Dirac. Ele acha que eu estou sempre sem forças e quer a todo custo que eu fique comendo vitaminas. E você sabe, não é? Cada vez que eu como um desses fótons fico cheio de energia!
Maria Luísa deu um passo para trás quando viu chegar o Fóton. Mais parecia uma bola de fogo! A luminosidade do dia ficou completamente diferente. Sem que ela visse como, o Píon engoliu o Fóton, numa fração de segundos.
“Puxa!”, pensou ela. “Que apetite!”
– Ah, isso não é nada!, continuou o Píon. Você devia ver quando encontro meu anti-irmão. O professor Dirac nem quer ouvir falar disso. Eu e o Antipíon rolamos na terra, nos engalfinhamos… Brigamos tanto que não sobra quase nadinha da gente, só esses Fótons que comemos. Aí sim, você vê o que é luminosidade!
Ele falava disso como se fosse uma fatalidade, um destino quase inevitável. Maria Luísa pensou ter percebido uma pequena tristeza na sua voz, mas achou melhor não fazer nenhum comentário. Afinal de contas, quem era ela para mudar alguma lei da natureza?
Aquela história toda, claro está, não explicava de forma alguma a roupa que eles usavam, que era afinal o que Maria Luísa tinha perguntado no começo da conversa. Mas ela resolveu não insistir nessa questão. Ela queria mesmo era saber como as coisas se movimentavam lá em Microlândia e resolveu que era melhor voltar à primeira questão da conversa.
– O senhor sabe de alguma coisa, ahn… bom… quero dizer… de alguém, que pula assim como aquele ali?, perguntou, um pouco confusa, apontando Pedro Paulo.
Maria Luísa não sabia bem como tratar o Píon. Embora fosse uma bolinha, ele tinha tudo (ou quase tudo) para ser “uma gente”. Era difícil, mas aos poucos estava começando a se acostumar com aqueles personagens da Microlândia, um mundo tão diferente do dela.
– Minha menina, esses físicos… Outro dia mesmo tivemos que pular duas montanhas enormes. O dobro do meu tamanho! E tudo porque não me comportei bem, segundo o professor Dirac, e saí do porão onde ele tinha me deixado. Ele me disse: “Fique aí quietinho no seu estado fundamental!” Mas se você visse o que era aquilo… Não dava para me mexer, de tão apertado! Sem o menor conforto. Parecia que eu estava preso! Aí resolvi pular o muro. Me vesti de cavaleiro andante e…
Antes que ele continuasse, viu que Pedro Paulo tinha chegado perto.
– É hora de ir embora!, disse, apressado.
Maria Luísa não gostou nada daquilo. “Sempre que vem outra pessoa esses Píons vão embora! Parece que nunca podemos ficar juntos. Desse jeito vão acabar pensando que eu estou inventando histórias.”
Pedro Paulo passou como se ela nem existisse. Estava treinando corrida e se foi, rua afora. Nem bem ele se afastou, Maria Luísa escutou de novo a mesma voz, continuando a conversa como se aquela interrupção não tivesse acontecido.
– Mas eu não me queixo. Pior é o que fazem com os Fótons: não podem parar nem um instantinho para descansar! O doutor Einstein, que se encarrega deles há muito tempo, diz que eles têm que correr sempre. E mais: com a mesma velocidade. Não podem nem mudar de ritmo, veja só! “Vocês não podem parar nunca!”, ele disse, aos berros, enquanto os Fótons tremiam cada vez que passavam perto dele. Terrível, não é mesmo? Mas voltando ao que você perguntou: eu, por exemplo, só ando aos pulinhos. Lá em casa a escada só tem degraus pares. Os ímpares nem colocamos. Temos que andar sempre pulando, como se fôssemos cangurus. Aliás, é por isso que usamos essa roupa.
Maria Luísa não entendeu nada. Não havia a menor relação entre a roupa que eles usavam e os saltinhos.
Chegando mais perto, ela pôde ver que a roupa deles não era feita de gaze, como parecia de longe, mas sim de fios finíssimos, que envolviam completamente o Píon. Os fios eram nada mais que pedacinhos dos Fótons, que, como uma aranha, pareciam bordar uma teia em volta dos Píons. Ela pensou por um momento que eles tinham sido capturados e estavam presos na tal teia! Ou será que eram eles mesmos, os Píons, que estavam tecendo aquele emaranhado? Ela reparou, espantada e sem esconder uma certa repugnância, que eles às vezes cuspiam o próprio Fóton que tinham engolido. Pior: voltavam depois a engoli-los! Maria Luísa não gostou nada daquilo. “Que coisa feia!”, pensou.
Ela tinha praticamente esquecido da história do mar quando o Píon acrescentou:
– Você deve pensar que isso não tem nada a ver com o mar – e não tem mesmo. Nós somos complementares.
Maria Luísa fez um sinal com a cabeça como se estivesse entendendo e pensou: “Eu acho que eles são é malucos. Não tem lógica o que eles dizem! Ou vai ver a lógica dessa tal de Microlândia é tão diferente que a gente não pode nem entender o que eles estão falando, muito menos o que estão fazendo.”
Como se tivesse ouvido isso também, o Píon começou a declamar, como numa poesia surrealista:
Claro está,
você não pode entender isso com a sua lógica.
Se você pudesse, eu não teria que
dar pulinhos para andar.
Para cada ideia sua
eu devo pular dois degraus da escada.
Se você me entender
eu devo andar por caminhos feitos só de buracos.
E, por fim, se você disser que me entende
eu devo passar a morar em casas que tenham moradores
só nos andares ímpares.
Esses versos não faziam o menor sentido. Maria Luísa virou-se para o Píon, que estava recitando, e disse em tom de declaração de princípios:
– Eu acho que vocês são todos doidos.
Felizmente, eles não estavam mais prestando atenção nela, mas sim se engalfinhando. Uma ala inteira de Píons tinha se encontrado com Antipíons recém-saídos do mar de Dirac. Como resultado, eles se destruíam. Isso era acompanhado de uma explosão da qual saía um montão de Fótons, gerando uma luz formidável que parecia encher o mundo todo.
Maria Luísa ia gritar, tentando ainda salvar alguns dos Píons, quando percebeu que era o sol que entrava pela janela da frente e vinha bater direto no seu rosto.
– Que clarão!, disse, com aquela voz de quem dormiu um longo sono.
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- Auto-interação: as partículas carregadas, tais como o píon e o elétron, por exemplo, podem interagir consigo próprias através do campo eletromagnético. Um modo simples de visualizar tal processo é através da imagem pela qual um elétron (ou qualquer partícula carregada) pode emitir um fóton e reabsorvê-lo. Um tal fóton — que dessa forma fica preso à partícula carregada — é chamado de virtual, para distingui-lo dos fotons reais, que existem livremente na natureza.
- Mar de Dirac: configuração ideal na qual todos os estados de energia negativa de qualquer partícula estariam ocupados. Assim, como uma partícula (ou anti) não pode ocupar um estado já ocupado por outra, proíbe-se a partícula de atingir aqueles estados de energia negativa, que não são observados na natureza.
Capítulo 5: O bolo da tia Néia
A cama parecia desconfortável. Uma manga tinha acabado de cair da árvore, fazendo um barulho curioso no zinco que cobria o aparelho de ar-condicionado. “Bom,” pensou Maria Luísa “mamãe vai reclamar de novo que papai não recolheu as mangas que caíram na varanda anteontem à noite. E ele não vai mesmo parar de escrever aquelas letras pequenininhas no quadro-negro lá do escritório pra fazer isso.”
Ela estava começando a se preparar para levantar da cama quando achou que alguma coisa muito estranha estava acontecendo. Num primeiro momento pensou que fosse ainda por ter se levantado no meio da noite, mas aos poucos foi compreendendo que o mundo todo estava muito diferente da véspera. A sensação era que o pé havia crescido muito rapidamente! Então Maria Luísa viu que a perna também crescera, assim como o corpo todo – e talvez, pensou logo, tudo o que estivesse lá dentro dela também estivesse sendo esticado: o coração, os pulmões, o fígado e o resto! “Puxa!”, pensou. “Se isso continuar desse jeito não vou caber no meu quarto…” Mas então começou a notar que isso não estava acontecendo: o quarto também parecia crescer na mesma proporção! Por fim ela se deu conta de que tudo começava a crescer tão depressa que não sabia mais onde aquilo ia parar.
“Parece até um daqueles bolos maravilhosos de tia Néia!”, lembrou, fazendo um gesto de quem tem verdadeira paixão por eles. “Mas é estranho”, pensou. “Isso não pode ser verdade. Nem todas as coisas devem estar crescendo do mesmo jeito, porque senão eu não iria perceber diferença alguma.”
Ficou contente com esse raciocínio tão… cientificamente correto.
– Papai vai ficar orgulhoso!, chegou a dizer.
Olhou com muita atenção ao redor para ver se encontrava alguma diferença naquela “inchação” geral e reparou que num canto do quarto havia umas duas ou três coisas que custavam mais que o resto a crescer.
“Elas devem ser feitas de um material diferente”, Maria Luísa pensou. Lembrou logo que tinha visto num programa do colégio a história de uma tal de antimatéria. Tinha prestado muita atenção e repetido o que aprendera para seu pai, quando ele chegou, à noite. “Ah! Talvez essas coisas sejam feitas de antimatéria!” Ela se entusiasmou com a ideia. Já estava até pensando que ia ficar famosa por ter sido a primeira a ver uma porção tão grande de antimatéria, mas logo ficou envergonhada. “Que coisa! Já estou ficando com a mania deles lá, querendo prêmios e essas coisas…”
De repente, sem que soubesse como, Maria Luísa foi atirada violentamente para o lado. Felizmente bateu numa espécie de cerca de borracha. Reparou, então, que do outro lado tinha uma menina muito parecida com ela, só que vestida ao avesso. Os cachinhos do cabelo giravam na direção oposta. Mas não era como se estivesse em frente a um espelho, porque a outra se mexia e fazia coisas independentemente dela. Ou seja, era outra pessoa!
Maria Luísa sentiu uma enorme vontade de correr para ela, mas lembrou a tempo que, como tinha aprendido no programa do colégio, quando porções de matéria e antimatéria se encontram elas se atraem irresistivelmente, se juntam… e explodem! E ela jurava que aquela Maria Luísa do lado de lá da cerca era de antimatéria! Lembrou-se do que acontecera com o Píon Carregado quando ele tinha encontrado o Antipíon e ficou cheia de medo. Parou, segurando a cerca de borracha, examinando com cuidado a sua antigêmea.
Depois do espanto inicial, começou a achar gozada aquela história de poder existir uma outra Maria Luísa igual a ela, só que de antimatéria. “Se ela tiver as idéias opostas às minhas, aposto que não vai passar de ano. Pelo menos em redação. Minha professora disse que eu tenho ideias muito boas e certinhas. Isso quer dizer que as ideias dela devem ser muito más e erradinhas.” Mas a simples hipótese de que uma ideia poderia ser má causou-lhe uma estranha sensação. “Talvez uma ideia sozinha não possa fazer mal algum”, pensou. “Bem, pelo menos não se eu tomar conta dela.”
– Não sei, não. Lá em Microlândia nós temos muitas ideias que não servem para nada! Mas nós sabemos como elas devem ser tratadas!
Era seu velho conhecido, o Píon Carregado, que, instalado em cima da cerca, fazendo quase acrobacia para se equilibrar e sem olhar para ela, parecia refletir em voz alta.
– Ah, e eu que pensava que vocês tivessem desaparecido de vez!
– Assim é, minha filha… Nós somos como fênix: renascemos a todo momento…
Maria Luísa apontou para a sua anti e perguntou:
– O que você pensa dela?
Aquela era uma pergunta cheia de recados. Ai do Píon se ele demonstrasse um mínimo de simpatia pela outra!
– Não sei, respondeu ele diplomaticamente. Nós fomos treinados para nos afastarmos o mais possível de nossos anti. Mas parece que isso não funciona para gente, como você. Pelo menos foi o que ouvi da boca do próprio doutor Freud.
E, depois de uma pequena pausa, continuou:
– Uma vez eu fugi do laboratório do professor Dirac e fui tentar conversar com o Antipíon. Pois não é que eles haviam posto dois vigias para andarem atrás de mim! Nem consegui chegar perto dele. E ainda disseram que era para minha proteção! “Nós sabemos onde você pode andar”, disse o professor Dirac enquanto os vigias me levavam pelo braço.
“Igualzinho à mamãe”, pensou Maria Luísa.
– Me senti um prisioneiro. Até um par de algemas quiseram me botar. Porém eu gritei tanto que eles afinal só me seguraram. Mas isso não foi nada grave; só levei um susto. E devo confessar, minha filha, que aprendi a lição. Nunca mais fui visitar o Antipíon. Mas você devia ver era o que aconteceu com o anti-irmão do Elétron, o Anti-elétron… Cá entre nós, que ninguém nos ouça, eu até que gostei de ele ter tido essa experiência. É tão cheio de frescuras! Imagina você que até o nome ele quis que mudasse! Não gostou de Anti-elétron, disse que parecia coisa de segunda categoria, assim meio que sem importância. Veja só! Bom, tanto fez que acabaram mudando mesmo o nome, para Pósitron. Ele a-do-rou, disse que parecia deus grego… Bem, mas deixa pra lá. Não vale a pena falar tanto dele. Voltando ao que eu dizia…
Maria Luísa já nem lembrava mais do que eles estavam falando. Já conhecia bem o Píon, mas nunca tinha visto ele assim, tão falante. “Vai ver aconteceu alguma coisa com ele”, pensou. Ela estava tendo dificuldade para entender tanta conversa fiada…
– …aí, não é mesmo? Bom, mas eu não sei bem como tudo começou… e nessas coisas você nunca sabe quem tem razão. Mas ouvi dizer, quando eu era bem menorzinho…
Maria Luísa quase riu. Ele já era tão pequeno… Imagina ainda menor! Uma vez mais ele leu seu pensamento:
– Bom, menina, na Microlândia existem muito menores do que eu, disse, fazendo um gesto de quem não tinha gostado daquela observação. E continuou: Como eu estava dizendo, o doutor Dirac uma vez furou o céu. Foi um deus-nos-acuda! Corre daqui, corre dali, resolveram que alguém ia ter que ficar segurando uma cordinha o tempo todo para evitar que o céu inteiro se abrisse. Uma catástrofe, minha filha!
Ela ficou imaginando a cena, boquiaberta com o que estava ouvindo. “O céu se abrir? O que é que iria aparecer? O lado de lá?”, pensou. Mas antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa, ele já continuava:
– Agora imagina se foi ele que ficou segurando! Eu, hein, ele era Sir. Tinha muita influência no Ministério e parece que foi professor de muita gente famosa… e essas relações a gente não esquece, não é mesmo? Acabaram arranjando um outro coitado para fazer isso. Sobrou para o pobre do Monopolo Magnético! Veja você, a que foi reduzido o famoso Monopolo Magnético!
Ela se lembrava de ter ouvido essa palavra algum dia e ia perguntar se ele não tinha um mago na família, mas desistiu.
– Ele já tinha um passado muito confuso, continuou o Píon, a começar por se esconder lá no começo da expansão do Universo. Mas pior mesmo foi que ele levou junto toda a sua família. Dizem que era uma família tão grande – como não se faz mais hoje em dia, não é mesmo? – que dava para encher o mundo inteiro só com eles. Mas eles desapareceram, ninguém sabe por quê. Não deixaram endereço, nem vestígio algum. Bem que os amigos de seu pai procuraram por eles, um tempão, mas desistiram. Dizem que o professor Dirac ficou tão furioso com essa história que, quando finalmente conseguiu descobrir unzinho da família Monopolo, segurou-o forte e amarrou uma cordinha no pescoço dele. Até hoje ele anda assim…
– Que maldade!, disse Maria Luísa.
– Pois não é?
Ela estava ficando horrorizada com as maldades que eles faziam. “Será que os amigos de papai fazem assim também?” Como ela adorava seu pai, sempre arranjava uma desculpa. “Vai ver eles não fazem porque querem, mas estão a serviço de alguém.” De quem? Ela sabia que o pai trabalhava para o governo. Mas ele dizia que o pessoal de Chicago não e que eles tinham mais dinheiro e mais fama.
– Sempre pensei que o governo de um país fosse a coisa mais poderosa que existia…, falou.
– Queridinha, é melhor nem tocar nesse assunto. Você vai ficar horrorizada com certas coisas dos adultos.
Maria Luísa não gostou. Ela já era uma adulta, ora essa! Mas o Píon continuava a contar sua história. Então ela reparou que ele às vezes ficava de costas para ela. Quando percebeu que isso era porque ele ora se dirigia a ela, ora à outra Maria Luísa, sua antigêmea, tomou um susto. Não estava gostando nada daquilo. Sem querer, parecia que uma pontinha de ciúme estava tomando conta dela.
– Vou dar um pulinho lá na cozinha, disse para tentar esconder a emoção que estava sentindo. Mas foi só ela sair da sala e tudo começar de novo a inchar, inchar… Ela voltou correndo.
– O que está acontecendo?, perguntou, aflita.
– É o doutor Dílaton, disse o Píon. Ele é o responsável por tudo isso. Ele e aquela sua mulherzinha, a dona Constante Cosmológica…
Com efeito, ao lado da outra entrada da sala havia se instalado, com ares de dono, o doutor Dílaton, distribuindo senhas para a noite do circo.
O circo era simplesmente incrível! Dava gosto assistir! Mas, de qualquer forma, Maria Luísa ia reclamar daquela invasão de sua casa. Nisso ouviu o Dílaton anunciar, com voz de trombone rachado:
– Minhas senhoras e meus senhores, vamos apresentar agora os participantes principais da nossa maravilhoooosa história desta noite… Fez uma pausa para pegar fôlego e gritou a plenos pulmões: …“A verdadeira história do mundo!”
Fez uma outra pausa e arrematou:
– Desta fase grandioooooosa de expansãaaaaao do Universo em que vivemos!
Um homenzinho entrou, trazendo uma placa em metal que parecia ouro de verdade, com os dizeres:
A Inflação do Mundo
(Ópera fictícia em três atos)
O Píon cutucou Maria Luísa e cochichou:
– Olha só o pessoal de Chicago! Só porque têm muito poder e conseguem impor sua verdade pensam que estão inventando o mundo! Mal sabem eles que tudo isso aí não vale nada.
Maria Luísa ia perguntar por que ele dizia aquilo, mas teve sua atenção desviada para a agitação que ocorria no desfile. Atrás da placa de ouro desfilavam os personagens principais, separados uns dos outros por placas com ilustrações muito curiosas, em letras tão pequenas que ela quase não conseguia ler. Girando em volta de todos vinham os Fótons, que pareciam se dar com todo mundo.
– Menos com os De Neutrino, disse o Píon.
A primeira ala a aparecer era muito agitada. Trazia uma placa um pouco maior que as outras, que, ainda com um certo esforço, Maria Luísa conseguiu ler:
Quase todos Léptons
Ela reconheceu os De Neutrino. Em seguida, na mesma ala, muito agasalhados vinham os Elétrons, reclamando sempre: “Puxa, que calor”, diziam.
Maria Luísa se irritou com essa reclamação.
– Mas então por que será que eles não tiram essa roupa toda e ficam logo nus?, disse em voz bem alta. Ela reparou que os Elétrons tinham em volta deles a mesma teia que os Píons carregados.
– Vai ver que eles têm os mesmos hábitos alimentares dos Píons Carregados…, sussurrou, acompanhando essa exclamação por um gesto de nojo, ao se lembrar da falta de modos dos Píons, cuspindo e engolindo os mesmos Fótons várias vezes.
Os De Neutrino vinham todos muito bem vestidos. Mas dava para perceber que havia três ramos na família deles que não trocavam absolutamente nenhuma palavra entre si. O Píon esclareceu:
– Esses De Neutrino se tomam por grandes senhores. Eles têm uma linhagem muito antiga e só se casam dentro de cada ramo. Ali, apontou, aparecem os ramos do Elétron e do Múon, um primo meu afastado. Existe um outro tronco mais recente, os Taus, mas esses não vieram para o desfile. Vão assistir a tudo pela televisão mais tarde; bem mais tarde.
Lembrando-se de um comentário de seu pai, Maria Luísa pensou que se tratava de uma religião. O Píon nem precisou que ela falasse para esclarecer:
– Não, não é nenhuma religião. Bem, achou conveniente acrescentar, pelo menos não no sentido convencional, minha filha.
Ela considerou essa observação um pouco ofensiva, mas não teve tempo de reclamar. Já estava passando outra ala com uma placa que dizia:
Quase todos Bárions
Só que não vinha ninguém atrás dessa placa. Parecia que os bárions não queriam entrar em cena. Ela se levantou na ponta dos pés e viu, lá longe, o Próton e o Nêutron. Mas parecia que eles estavam brigando… e o De Neutrino e o Elétron tentavam separá-los. O resultado da confusão era que eles estavam demorando tanto a chegar que Maria Luísa teve um momento de irritação.
– Começa sem eles!, gritou.
A plateia inteira olhou espantada para ela. Ela queria desaparecer de tanta vergonha… Para salvar a situação e livrar a menina do constrangimento, o Píon tomou o microfone e disse:
– Não é preciso se preocupar. Estará tudo resolvido muito em breve. O Nêutron vai entrar sozinho e o Próton vai vir de mãos dadas com o De Neutrino e o Elétron. Ninguém vai nem desconfiar que eles não são um só… desde que os três respeitem o acordo e não se separem! Fez uma pequena pausa e prosseguiu: De qualquer maneira, trata-se somente de encenação. Aliás, acrescentou, agora com voz bem solene, tudo isso aqui é só encenação, nada é de verdade.
A plateia ficou muito agitada. Todos ali eram físicos, e alguns tinham vindo de longe só para ver a entrada triunfal dos principais personagens do mundo! E certamente estavam levando aquela representação muito a sério!
Maria Luísa saiu de fininho e foi perguntar ao Píon se aquilo que ele dissera era verdade mesmo.
– Eu não tenho a menor culpa se eles estavam levando esse espetáculo a sério. Todos foram avisados de que se tratava de uma representação. E você sabe, não é queridinha? Uma representação não é o fato. É só isso mesmo: uma representação, um mapa. E um mapa não é o território.
Ela não entendeu do que ele estava falando.
– Ademais, queridinha, não é a primeira (nem vai ser a última) vez que isso acontece… Mas não se preocupe. Algum dia um deles vai vir nos perguntar diretamente – a nós, fundadores de fato da Microlândia – e nós vamos contar toda a verdade, viu? O mal, continuou a falar, agora em voz bem alta e muito perto do microfone, olhando de um lado para outro da plateia, é que eles demoram a fazer isso. Preferem aquela vidinha de fofoca lá da Academia. É bem verdade que eles se divertem e ganham muito dinheiro, porém é só um passatempo. Mas não se preocupe, no final tudo se acerta e eles vão dar importância a nós, os verdadeiros trabalhadores…
Essa última frase tinha sido dita em forma de discurso inflamado. A plateia estava completamente muda.
Maria Luísa estava apavorada. Não por causa disso, mas sim porque, enquanto o Píon discursava, mesmo contra a sua vontade ela ia se aproximando cada vez mais da outra Maria Luísa, que, do lado de lá da cerca, também acompanhava a cena. Ela não queria, mas uma força maior que ela as aproximava cada vez mais… Até que por fim foram chegando tão perto, tão perto, tão perto que… scrshctimbu!!!
Maria Luísa acordou super assustada. O abajur tinha tombado e caído em cima dela. Pedro Paulo se sobressaltou:
– O que aconteceu?, resmungou ainda dormindo.
– Nada. Tropecei num Píon Carregado e quase que caio em cima da outra Maria Luísa e nós nos desintegramos, disse como se estivesse ainda sonhando.
A mãe estava chegando e ouviu essa última frase. Entrou no quarto dizendo:
– Hoje é dia da doutora Mafalda. Trate logo de se arrumar.
Maria Luísa reparou que a voz dela era igual à do doutor Dirac. Por um instante ficou com medo, mas logo acordou de vez, com o abraço carinhoso que a mãe lhe deu.
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Nos anos 30 o astrônomo Edwin Hubble apresentou evidências de que vivemos em um Universo em expansão — o que significa que todo o volume do espaço varia com o tempo. A observação mostrou ainda que essa variação é positiva, isto é, o volume está aumentando com o passar dos tempos: o volume total do espaço foi menor no passado. Em verdade, em um tempo afastado de nós, em nosso passado, de alguns poucos bilhões de anos, esse volume foi extremamente pequeno. Essa é a chamada teoria do Big-Bang.
Podemos concluir daí que nosso Universo teve um momento único de criação? Há duas conotações distintas do termo Big-Bang. No jargão especial dos cosmólogos, ela significa precisamente esse fenômeno segundo o qual nosso Universo teria passado por uma fase extremamente condensada, em nosso passado. Esta é a versão científica, que exprime uma verdade incontestada. Entretanto, ao final dos anos 70 e pela década seguinte, a mídia popularizou uma outra versão, de natureza não-científica: os físicos teriam demonstrado que o Universo teve um momento único de criação.2 Felizmente, na segunda metade dos anos 90 – e por diversas razões que não cabe apresentar aqui – essa maneira simplista de tratar o Universo como tendo um começo tem sido sistematicamente rejeitada pela maioria dos cosmólogos. Eu não diria que ela desapareceu de todo. Mas certamente não tem mais um importante suporte dos cientistas.
- Antimatéria: nome genérico dado à antipartícula de uma dada matéria.
- Constante cosmológica: nome que se dá a uma hipotética força que se manifestaria somente a nível cósmico. Caso existisse, poderia ter dado origem a uma fase quando a expansão do Universo, chamada de inflação, teria sido extremamente acelerada. Não há evidência alguma de sua existência.
- Pósitron: nome dado à antipartícula do elétron. Possui carga elétrica oposta à do eletron, isto é, positiva.
- Dílaton: nome de uma hipotética partícula cuja existência foi sugerida na década de 90 e que poderia ter desempenhado um importante papel na evolução primordial do Universo, possivelmente com comportamento semelhante ao da constante cosmológica. Embora muitos cientistas considerem o dílaton de uma importância fundamental em alguns aspectos da cosmologia, não existe nenhuma evidência de sua existência.
- Neutrino: partícula de pura energia. Até bem pouco tempo acreditava-se que não possuía massa; consequentemente, deveria se movimentar com a velocidade da luz. Participa da desintegração da matéria e tem um importante papel na evolução das estrelas. Sua interação com a matéria é tão pequena que é capaz de atravessar os corpos mais compactos como se fora um fantasma. Pode atravessar até mesmo nosso planeta sem sofrer nenhum desvio em sua trajetória, como se a Terra fosse completamente transparente.
- Monopolo magnético: hipotética partícula cuja existência foi sugerida pelo físico inglês Paul Adrien Maurice Dirac. Teria sido produzida na fase extremamente condensada pela qual o Universo passou, nos primórdios de sua expansão. Não existe evidência observacional de sua existência. Seria para o campo magnético o que o elétron é para o campo elétrico; em outras palavras, seria uma espécie de companheiro dual do elétron.
- Lépton: nome genérico de uma família de partículas que incluem o elétron, o múon e o tau. Cada uma dessas partículas possui um neutrino distinto que lhe está associado, como se fosse uma espécie de par constante. Assim, foram identificados os neutrinos do elétron, do múon e do tau.