Os sonhos atribulados de Maria Luisa – parte 2
Capítulo 2: Um sonho muito rápido
– Puxa que agitação! É igual a quando papai vai viajar e temos que preparar tudo depressa. Nessas horas, mamãe fica reclamando que ele é muito desorganizado, nunca sabe onde estão suas roupas, sua pasta, seus livros. Um dia ele até esqueceu de levar as folhas transparentes que tinha passado o fim de semana inteiro preparando para sua conferência! Mamãe vive dizendo para ele que é preciso pôr ordem nas coisas. Daí ele ri e fala baixinho, para que ninguém ouça: “A ordem não precisa ser imposta. Ela sai naturalmente do caos!”
Maria Luísa falava meio sem prestar atenção no que dizia. Estava muito curiosa vendo as coisas passarem tão depressa na sua frente e não percebera que já estava de novo sozinha no quarto. A luz tinha sido apagada, a mãe já tinha saído, mas ela insistia em continuar o diálogo faz-de-conta, fazendo longos gestos, como para mostrar de que maneira essa desordem do pai se manifestava. Quando ficava muito tempo sozinha, antes de pegar no sono, isso era muito comum. Houve até um dia em que sua mãe entrou no quarto sem que ela percebesse, e Maria Luísa continuou falando e falando, num longo diálogo com ela mesma. Dona Heloísa, que adorava a filha mas não sabia como eliminar sua ansiedade, ficava muito impressionada nesses momentos. A tal ponto que resolveu imediatamente que já era hora de “consultar um especialista, um psicólogo… Essa coisa de falar sozinha, fazer xixi na cama e que-tais já passou da conta!”
Mas a história da desordem do pai não lhe interessava mais: os movimentos rápidos que iam de um lado para o outro do quarto, para cima e para baixo, revelando um verdadeiro caos, atraíam agora a sua atenção. A essa altura Maria Luísa já havia se desligado completamente do que estava falando.
“Curioso! Eu juraria que não estou sozinha aqui…”, pensou, tropeçando num monte de pequenas bolas coloridas, em três cores: vermelho, verde e branco.
– Desculpe, disse, sem se dar conta de que as bolinhas não podiam ouvi-la.
– Não tem de quê, ouviu nitidamente.
– Quem são vocês?, indagou, sem muito espanto.
– Nós somos uma mistura de queijo fundido com energia etérea. Mas pode nos chamar de Quarks.
E, como se tivessem apreciado enormemente sua própria resposta, começaram freneticamente a rir.
– Ah, disse ela, eu sei quem são vocês. Papai me explicou que tudo que existe é feito de átomos e que os átomos são feitos de três tipos de partículas: prótons, nêutrons e elétrons. E, por sua vez, estes também são feitos de particulinhas menores ainda, os Quarks! Então, se vocês são realmente os Quarks, são vocês que formam tudo que existe!
Embora apenas parcialmente correto, esse conhecimento científico tão profundo, vindo da parte de uma criança – ou melhor, de uma quase-adolescente – espantou tanto os Quarks que, por um breve momento, eles interromperam a sua agitação, examinando aquela criatura tão esperta. Passado rapidamente o encantamento, eles voltaram a se agitar, correndo de um lado para o outro, batendo nas paredes, no teto, no chão, ricocheteando, para de novo voltar a bater nas paredes e assim sucessivamente. Essa movimentação, silenciosamente admirada por Maria Luísa, durou um longo período, até que, sem que ela soubesse por quê, os Quarks resolveram interromper sua dança frenética.
– Já é hora de descansar, alguém disse.
Eles então pararam. Ficaram estáticos, sem mexer absolutamente nada, mergulhando no que Maria Luísa pensou ser o sono mais profundo que jamais existiu na Terra.
– Vai ver esse sono tão quieto assim só existe lá longe, no fim do Universo, disse ela, meio sem saber bem o que isso significava, apenas repetindo o que ouvira seu pai dizer.
Um outro motivo de curiosidade (e que, sabe-se lá por quê, não a espantara logo) era que os Quarks vestiam uma indumentária muito estranha, que mais parecia a de um cavaleiro a postos para cavalgar. Aquelas bolinhas estarem vestidas como se fossem gente já seria de espantar. Mas por que cargas d’água estavam eles preparados para uma cavalgada? E o que lhes poderia servir de montaria?
No meio do quarto haviam colocado uma porteira, com duas placas penduradas, na altura dela, escritas em grego. Numa, a da esquerda, lia-se Mésons; na da direita, Bárions.
Maria Luísa ia perguntar o que significava aquilo e por que eles usavam aquela roupa quando ouviu, num tom autoritário e ao mesmo tempo carinhoso (que lembrava um pouco tia Néia):
– Acabou-se o que era doce. A partir de agora, só podemos andar em pares ou em trincas. Os pares para a esquerda e as trincas para a direita.
Ela achou que se tratava de uma brincadeira excitante e perguntou, interessada:
– Posso fazer parte de uma trinca também?
– Depende, disse a mesma voz. Qual é a tua carga?
Isso ela não sabia responder. Já tinha ouvido falar nessa tal de carga. Parecia que não era o peso, a carga que um animal – um jumento, sei lá – leva no dorso, mas carga de outro tipo. Maria Luísa pensou que fosse assim como o seu tipo sanguíneo. Esse ela sabia bem. Tinha ido ao médico na semana anterior e ele tinha dado uma espetadela no seu dedo, que doera o dia todo. Em seguida a enfermeira tinha anotado algumas coisas num bloco e dito ao doutor:
– O grupo sanguíneo da mocinha é O.
– Bom, disse ela, voltando-se na direção de onde partira a voz, eu sou tipo O.
Os Quarks se entreolharam. Um deles, mais velho e com ar já cansado de ter trabalhado muito por esses átomos afora, disse, num tom um pouco angustiado e com enorme desprezo:
– Você quer dizer zero.
– Não, disse Maria Luísa. Não é zero, mas sim O.
Essa última frase sua praticamente não foi ouvida por ninguém. Quando o velho Quark pronunciou a palavra ZERO todos se entreolharam e se encolheram, como se ela tivesse uma doença contagiosa e grave. Passaram então a correr cada vez mais rápido para longe dela, gritando com as mãos voltadas para trás:
– ELA NÃO TEM CARGA! ELA NÃO TEM CARGA!
Maria Luísa correu-lhes atrás, querendo explicar que tinha havido um engano. Mas não conseguiu. Eles já estavam longe, formando pares e trincas, bem grudados uns nos outros. Era completamente inútil tentar distinguir os Quarks entre si. Podia-se afirmar, sem a menor dúvida, que cada conjunto de dois ou três deles havia se tornado uma unidade.
– Essa história de confundir a letra O com o algarismo 0 parece coisa do Gui, disse Maria Luísa num muxoxo.
Aos poucos os grupos de Quarks iam ficando cada vez mais separados uns dos outros. Maria Luísa começou a notar que alguns deles iam se aproximando de novo dela. Até que uma voz diferente da anterior, bem mais calma, parecendo um dos velhos amigos de seu pai, chegou até ela:
– Oi, queridinha. Ouvi dizer que você não tem carga. Mas que agradável surpresa!
Maria Luísa deu um passo para trás. Ela não esperava por uma mudança tão grande e tão rápida de atitude. “O que será que aconteceu? Por que eles mudaram de ideia a meu respeito?”, pensou.
Como se tivesse ouvido perfeitamente bem seu pensamento, um dos conjuntos de Quarks falou:
– Não é nada estranho, mocinha. Eu sou um Méson. Para ser mais preciso, eu sou da família dos Píons Carregados. Mas nos damos bem com nossos primos Sem Carga. Nós morávamos na Moldávia, sem sabermos bem o que fazer para resolver a Grande Crise na Europa, quando, logo depois da Segunda Grande Guerra, o professor Lattes, um jovem físico de seu país, veio nos oferecer uma grande vantagem caso nos mudássemos para cá. Muitos de nós viemos, para “fazer a América”, como se dizia na época.
Maria Luísa tinha ouvido falar vagamente dessas famílias. Seu pai tinha trabalhado algum tempo com esse doutor Lattes (que era, como ele, de origem italiana). Ela até se lembrava dele e de sua mania bem conhecida: tirar os sapatos quando entrava na casa de algum amigo. Uma vez o doutor Lattes tinha vindo na sua casa comer a macarronada da Nona e saído de lá tão contente que havia esquecido de calçar os sapatos de novo!
Mas nesse instante o que mais atraía o pensamento de Maria Luísa era saber qual teria sido a vantagem que o doutor Lattes lhes tinha oferecido. Ela estava se preparando para perguntar isso de um modo sutil, para não parecer enxerida, metendo-se na vida dos outros, quando um dos Píons se antecipou uma vez mais:
– Isso, claro está, era um negócio entre nós dois.
Maria Luísa não entendeu se ele se referia a ela ou ao doutor Lattes.
– Que tipo de negócio?, continuou, como se o fato de ele ter lido seu pensamento outra vez fosse perfeitamente normal. (“Sei lá!”, pensou ela. “Papai diz que o que vale no nosso mundo pode não valer nesses outros mundos. Pode ser que essa história de ler o pensamento uns dos outros seja coisa corriqueira lá entre os Píons. Como posso saber?”)
Mas essa pergunta não chegou sequer a ser ouvida. Os Píons estavam sendo violentamente arrastados para trás.
– É o Mago Magnético! É o Mago Magnético!, exclamaram em uníssono. (Pelo menos foi o que Maria Luísa entendeu.) As vozes agora não conseguiam esconder um grande medo. Ela não sentia nada, não via nenhum mago.
– Muito menos magnético, resmungou.
Ela tentou segurar alguns Píons, para mostrar que não ia deixar que lhes ocorresse nenhum mal, mas não conseguiu. Parecia que eles tinham uma enorme atração pelo campo de forças que o Mago criava à sua volta.
Então eles começaram a girar em volta dela, de um modo muito particular, arrastados por uma força irresistível. Os Píons Carregados cantavam em tom solene, como se estivessem participando de uma grande cerimônia, instalados bem no meio do púlpito de uma igreja:
Ela não tem carga elétrica, mas nos atrai.
Ela não tem carga magnética, mas nos puxa.
Que será? Que será?
– Eu acho que sei!, gritou Maria Luísa, excitada, pronta para falar de uma das maravilhas da natureza que ela havia aprendido com seu pai. É porque eu tenho massa! Vocês estão sentindo a atração da gravitação!
Mas ninguém lhe deu atenção.
Acordou assustada. Tinha, mais uma vez, caído da cama. “Se pelo menos eu não tivesse peso! Eu poderia flutuar e nunca mais ia cair no chão. Mas parece que ninguém escapa dessa tal de gravidade! Bom, pelo menos é o que papai fala…”, pensou ela.
Comentários 2
Uma das conquistas mais importantes dos físicos foi a redução de todos os fenômenos da natureza a processos envolvendo somente quatro forças básicas. Essas podem ser classificadas segundo sua intensidade ou seu alcance. Por grau decrescente de intensidade: nucleares fortes; nucleares fracas; eletromagnéticas; gravitacionais.
As duas últimas forças são ditas “de longo alcance”, ou melhor, de alcance infinito, posto que atingem qualquer corpo, por mais afastado que esteja da origem da força. A sua intensidade varia com a distância: quanto mais distante está um corpo do centro de forças, mais fraca é a ação do campo sobre ele. As forças nucleares são de muito curto alcance, isto é, só se fazem sentir a uma distância extremamente pequena, ao nível subatômico. Elas se subdividem em forte e fraca. Enquanto a primeira é responsável pela estabilidade da matéria, a segunda é responsável pela desintegração ou decaimento da mesma.
As forças gravitacionais (aquelas que nos impedem de voar) são universais, isto é, não existe nenhuma forma de energia ou matéria que não sinta essa força. Por outro lado, para que um dado corpo sinta a interação eletromagnética, é necessário que ele tenha carga elétrica. Dizemos então que essa força não é universal.
- Carga elétrica: propriedade de certas partículas que permite sentir o efeito de atração ou repulsão de uma força elétrica ou magnética. Um corpo sem carga não é afetado por nenhum campo eletromagnético, independentemente de sua intensidade.
- Quarks: são os constituintes elementares de uma grande classe de partículas subatômicas. Eles não se encontram livres na natureza, mas sim confinados no interior da matéria, formando sempre pares (os chamados mésons, como os píons) ou trincas (os chamados bárions, como o próton ou o nêutron).
- Píon: partícula subatômica, descoberta pelo físico brasileiro Cesar Lattes. Formada por um par de quarks, é altamente instável e desintegra-se em outras partículas. Existem três tipos de píons: os carregados (possuindo carga elétrica positiva ou negativa) e os neutros, que não possuem carga. Os píons carregados têm uma vida média de 10-8 segundos (ou 0,00000001 segundos) e se desintegram em múon e neutrino (ver Lépton), enquanto o píon sem carga decai em dois fótons em 10-6 segundos.
- Próton: partícula estável que, juntamente com o nêutron, compõe o núcleo central dos átomos. Tem carga elétrica positiva.
- Nêutron: partícula não-estável que, juntamente com o próton, compõe o núcleo central dos átomos. Desintegra-se em três outras partículas, a saber, próton, elétron e neutrino.
- Elétron: partícula estável de carga elétrica negativa que se estrutura em volta do núcleo dos átomos em número equivalente ao dos prótons ali existentes, tornando o átomo eletricamente neutro.
Capítulo 3: A extraordinária multiplicação de sapatos!
O pai de Maria Luísa ainda não havia descido de seu quarto e o doutor Rindler – um de seus amigos – já havia chegado. O professor Elbaz viria de Lyon naquele dia para uma conferência sobre a criação do mundo no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, e eles haviam combinado de buscá-lo juntos no aeroporto. Enquanto esperava que o doutor Luís descesse, o doutor Rindler conseguiu a proeza de conversar quase seriamente com dona Heloísa sobre o trabalho que eles faziam. Veja você o diálogo dos dois:
– Como a senhora deve saber, depois que os físicos descobriram que, em circunstâncias muito especiais, a ausência de qualquer forma de matéria ou energia em uma região (o que a gente chama simplificadamente de vazio) pode depender de quem o está observando, o seu marido volta e meia pensa nessa questão. Ele está interessado em descobrir o vazio absoluto, o Grande Vácuo, como ele costuma dizer! Um vácuo tão completo que todos aqueles que o observam têm dele a mesma impressão!
– Como assim?, espantou-se dona Heloísa. E pode existir um… vazio… diferente?
– Pois é disso mesmo que se trata, continuou o doutor Rindler, contente com o interesse que ela parecia demonstrar. Por exemplo, digamos que eu olhe dentro de uma caixa e veja que ali não tem nada, não tem nenhuma matéria – digamos nenhum elétron. Uma outra pessoa, em diferente estado de movimento, muito acelerada, pode encontrar… uma grande quantidade de elétrons ali dentro!
– Então, repetiu lentamente dona Heloísa, quer dizer que uma pessoa pode olhar dentro de uma caixa e não ver nada e uma outra, só porque está em movimento, olha… e pode… ver alguma coisa?
Essa frase foi acompanhada de um gesto com as duas mãos abertas à frente. Ela olhou para os meninos e apontou a salada como quem pergunta se eles queriam mais.
– E não é só isso, ele continuava.
Mas a essa altura, lembrando-se da hora da escola, dona Heloísa já estava tratando de colocar a comida no prato da filha, virando-se na direção dela como quem explicitamente já mudara completamente de interesse.
Maria Luísa tinha ouvido essa explicação e mais ainda – porque o doutor Rindler nem tinha reparado que a mãe já se desligara da conversa e continuava a falar sobre o tal de vácuo absoluto e outras coisas ainda mais estranhas que acontecem quando se está no mundo da microfísica, lá no interior dos átomos. Depois da história do vazio, ele começou a falar da diferença que existe entre o lado esquerdo e o direito! Do modo pelo qual, do outro lado do espelho, algumas propriedades das coisas podem mudar e de como o doutor Fermi (um outro amigo do pai de Maria Luísa) tinha mostrado que, no microcosmos, quando uns átomos estão se preparando para se transformar em outros átomos, coisas inesperadas acontecem. Dentre essas, a que mais atraía o doutor Rindler era precisamente esse fato de que a física do lado de lá do espelho possa ser diferente da física do lado de cá!
Isso era, com efeito, estranho. E sem a menor dúvida toda essa explicação que Maria Luísa não compreendia bem tinha mexido, e muito, com a cabeça dela; de tal modo que até a hora de ir dormir ainda estava pensando nas estranhezas contadas pelo doutor Rindler. No dia seguinte ela acordou bem cedo, lembrando que acabara de ter mais um sonho curioso.
Maria Luísa precisava se apressar para ir ao médico. Sua mãe já a tinha chamado duas vezes, mas ela ainda estava na beirinha da cama olhando… o seu pé! Pensava no sonho gozado que acabara de ter, parecido com as histórias estranhas que o doutor Rindler contara na véspera. Ela na verdade nem sabia ao certo se o sonho tinha acabado. De uns tempos para cá tinha uns sonhos tão estranhos, tão reais que ela não sabia mais distinguir quando ainda estava no sonho ou quando já tinha saído dele.
“Sonho ou não,” pensou ela “o que eu queria hoje era um pedaço de bolo da tia Néia.” Mas, dadas as repetidas advertências de dona Heloísa, ela começou a se vestir – lentamente, é bem verdade. Botou a meia ainda deitada. O pé direito foi lá no alto enquanto o esquerdo equilibrava tudo ficando parado ao longo da cama, como o resto do corpo. Maria Luísa calçou o sapato sem a menor vontade.
– Agora é a hora do outro pé, disse ritmadamente em voz alta, para ter o que falar enquanto procurava o outro sapato. Olhou debaixo da cama e não o encontrou.
– Ai, ai, ai!, resmungou. Temos aqui um problema. Onde foi parar o sapato do pé direito?
Falava isso olhando pela fresta da porta, na angústia de ver a mãe aparecer a qualquer momento e reclamar mais uma vez. Então lembrou que aquele sapato era novo. Ela o tinha ganhado há somente uma semana e era a primeira vez que ia usá-lo.
– Vai ver ainda está na caixa, disse esticando o braço para pegá-la. Olhou lá dentro. Como a caixa estava na parte escura do quarto, ela não pôde ver direito. Bom, disse, se o Gui aparecesse por aqui, eu ia pedir que ele olhasse. Aposto que ele também não ia ver sapato nenhum.
Mas foi só ela pensar isso e viu aparecer um monte de sapatos. Iguaizinhos. Todos do pé direito.
– Ué?!, falou em voz bem alta para que, se sua mãe estivesse por perto, ouvisse. De onde vieram esses sapatos todos?
Era realmente muito estranho o que estava acontecendo. O quarto começou a se encher de sapatos, todos absolutamente iguais. E só os do pé direito! De repente Maria Luísa teve um estalo e levantou os dois braços para cima como quem tivesse finalmente atinado com o que estava acontecendo.
– Meu Deus, entendi! É exatamente a mesma coisa que aconteceu com o professor Rindler!, disse. Mas eu estou parada!, acrescentou, lembrando-se de uma história esquisitíssima que se passara com ele.
Com efeito, era a história mais estranha que ela já tinha ouvido: um belo dia estava o doutor Rindler se preparando para passear, colocando a coleira no seu cachorrinho Big-Bang, quando sua mulher lhe pediu que levasse também a cesta grande de pães para, ao passar pela lavanderia, trazer a roupa que ela havia deixado lá no dia anterior. A chuva da véspera tinha praticamente inutilizado o carrinho de roupas, que alguém tinha esquecido do lado de fora, na varanda.
O doutor Rindler adorava uma brincadeira. Contava de modo muito engraçado as descobertas dos cientistas. Isso sempre fazia com que as pessoas achassem que ele “não batia bem da bola”, e todos gostavam muito de mexer com ele. Assim, para que ninguém implicasse com ele, o doutor Rindler pensou que devia tratar de esclarecer, na lavanderia, por que estava chegando com uma cesta de pães. “Vou logo explicar o que aconteceu com o carrinho de roupas”, pensou. No entanto, pelo caminho começou a divagar… Na verdade, distraído como só os “cientistas de historinha” podem ser, ele não se deu conta de que tinha errado o caminho e ido parar na padaria.
Quando ali chegou, pediu para que lhe dessem a roupa que sua mulher havia deixado na véspera para ser passada. O padeiro, brincalhão, perguntou se ele só queria a roupa. Ao ouvir a resposta afirmativa, disse:
– Bem, assim sendo, vou colocar zero pães na sua cesta, está bem?
Sem atinar, de imediato, com o que tinha acontecido, o doutor Rindler agradeceu e saiu da padaria, crente que tinha feito sua obrigação na lavanderia, e tomou o caminho de volta para casa.
Aos poucos foi apressando o passo mais e mais, até que, sem perceber, começou a misturar suas fantasias científicas com a realidade e se imaginou correndo aceleradamente. Tão acelerado que ultrapassou as velocidades de todos os carros que estavam na rua, chegando mesmo a se movimentar muito próximo da velocidade da luz, “aquela que sempre cria problemas”, como diz Maria Luísa.
De repente, num estalo, se deu conta do seu equívoco. E começou a refletir, lembrando-se do que tinha acontecido. “Se eu ouvi bem, o padeiro disse que tenho zero pães em minha cesta. Então, quantos pães vai haver nela quando eu chegar na lavanderia, correndo desse jeito alucinado?”
A resposta parecia trivial.
– Essa até o Gui responde. É zero, claro!, sussurrou Maria Luísa, com um toque nada sutil de desprezo pelo colega.
Mas aí aconteceu o inesperado: quando o doutor Rindler olhou para a cesta, encontrou-a completamente cheia de pães!!! “Alguma coisa muito especial aconteceu aqui”, pensou ele. “Mas não precisamos nos afobar. Acho que, se aplicarmos as leis da física corretamente, é possível explicarmos isso facilmente. É, em verdade, muito simples, pois acabamos de demonstrar, usando o método direto, o da observação, que o número de pães que carrego nesta cesta depende…”
– … da minha velocidade, ou melhor, da minha aceleração!, exclamou.
Mesmo sendo um professor de física bem conhecido, famoso até no estrangeiro, ninguém nunca acreditou muito nessa história. Alguns, os que se consideravam mais espertos, diziam que eles conheciam bem as brincadeiras do doutor Rindler e que certamente esse episódio era mais uma das suas.
No entanto, ao se lembrar desse caso Maria Luísa começou a chorar:
– A loucura do professor Rindler agora está acontecendo comigo! Que isso se passe lá no tal mundo dos átomos, tudo bem, posso aceitar, porque afinal não vejo nada lá mesmo. Mas aqui, comigo?, gritava, aos soluços.
Ouvindo os gritos, dona Heloísa subiu correndo as escadas e, como que em resposta às dúvidas da filha, foi logo pondo ordem na situação:
– O que é isso, minha filha?! Essas coisas não acontecem na nossa casa!
Como por milagre, foi só dona Heloísa chegar ao quarto para todos os sapatos desaparecerem. A consequência foi que elas estavam muito atrasadas para o médico.
– Ah, esses sonhos esquisitos!, suspirou dona Heloísa, pondo o sapato no pé direito da filha.
Comentários 3
Entre as inesperadas características que podemos encontrar no mundo quântico, uma é particularmente curiosa por não possuir paralelo em nosso cotidiano: a caracterização do que chamamos vazio. Classicamente — segundo o senso comum newtoniano —, a noção de vazio parece ser universal, isto é, se uma região do espaço-tempo está livre de qualquer forma de energia, admitimos como sendo verdade incontestável que essa propriedade será verdadeira para qualquer observador, independentemente de seu estado de repouso ou movimento. Ademais, esse vazio é inerte: não atua de nenhuma forma sobre o mundo.
Do ponto de vista da física quântica, a situação é totalmente distinta: o vazio é definido como adição de opostos que se cancelam, contendo propriedades potencialmente detectáveis e podendo agir sobre o mundo. Dizemos que um campo (quântico) qualquer está no seu estado de vazio quando o número de quanta (isto é, os grãos elementares da condensação de energia desse campo) é zero.
Diferentes observadores podem medir diferentes valores do número de quanta de um dado tipo existente em uma região do espaço-tempo. Isso significa que, contrariamente ao seu equivalente na física clássica, o vazio quântico não tem a característica formal de universalidade.