A Cosmologia segue os passos do filósofo Karl Marx
Artigo publicado no Jornal do Brasil em 29/11/2018
De tempos em tempos, acontece uma revolução na ciência, alterando suas perspectivas e sua descrição do mundo. Tal mudança decorre da própria atividade cientifica, mas sua verdadeira natureza e o seu alcance serão compreendidos somente mais adiante quando a base que sustenta a estrutura da nova formulação da lei física, em geral de natureza filosófica, é apreendida. Foi assim que percebemos as críticas profundas ao sistema da mecânica newtoniana que controlava a descrição dos processos e fenômenos por mais de quatro séculos, efetuadas por Poincaré e Einstein na teoria da Relatividade Especial.
Foi assim também quando a teoria da Relatividade Geral de Einstein alterou profundamente a descrição do movimento dos planetas, estrelas, galáxias e do próprio universo entendido como uma unidade global. E, para citar um outro exemplo notável, isso também ocorreu quando da descoberta da teoria quântica que permitiu penetrar no mundo microscópico e descrever não somente os átomos, mas seus constituintes elementares, as partículas fundamentais. Alguns conceitos da teoria quântica nos parecem estranhos ainda hoje, cem anos depois do seu surgimento. Isso se deve à dificuldade de penetrar nos meandros filosóficos onde essas teorias se sustentam e que não reconhecemos no cotidiano.
Pois uma nova revolução está em andamento com a sistematização da análise da dependência cósmica das leis físicas. Dito de modo simplista, os cientistas estão pondo em dúvida a extrapolação das leis físicas terrestres ao universo. Seriam elas válidas em qualquer parte no espaço-tempo, para além de nossa via láctea, no universo profundo, no território das centenas de bilhões de outras galáxias que observamos? Essa alteração se daria em especial naquelas regiões de campos gravitacionais extraordinariamente fortes. No entanto, como existe um só universo, não é possível programar uma experiência de caráter global, mas somente realizar observações.
A hipótese de trabalho que conduziu à aceitação da extensão ilimitada das leis físicas terrestres a todo o cosmos associou o universo a um sistema rígido, fechado, completo. Essa orientação se baseou na conjectura de que, ao examinar as leis físicas nos laboratórios terrestre, os cientistas estariam desvendando a estrutura das leis cósmicas, válidas para todo o universo.
Imaginar que as leis da física são eternas e imutáveis, dadas por um decálogo cósmico é ter uma visão a-histórica dos processos no universo. Somente introduzindo a dependência cósmica das interações é possível retirar qualquer resquício de irracionalidade na descrição dos fenômenos na natureza e afirmar a força do modo científico de pensar o cosmos. A extensão do alcance de aplicação das leis físicas para além da região onde elas foram efetivamente observadas é um modo natural de iniciar a descrição cientifica do desconhecido. No entanto, seu uso absoluto resultou ser tão impositivo e foi usado de modo tão amplo que inibiu qualquer forma de crítica, mesmo naqueles territórios onde essa extensão das leis não possuía nenhuma confirmação observacional.
Essa extensão ilimitada, essa forma de limitar o pensamento, levou à subordinação a leis rígidas, fixas, imutáveis e cuja origem estaria para todo o sempre inacessível. Uma tal amplidão de uso da lei física está nas origens de sustentação formal do nefasto pensamento único que controla e corrói a sociedade nos dias atuais, uma utilização indevida da prática científica.
Nós só reconhecemos uma só ciência: a ciência da história, afirmaram Marx e Engels em A ideologia alemã. Essa sentença deve ser entendida, no interior da atividade científica, exibindo as origens de sua refundação na Cosmologia – a ciência histórica por excelência. No primeiro momento, os físicos não consideraram aquela afirmação de Marx e Engels seriamente porque a quase totalidade dos cientistas acreditava que aqueles filósofos estavam se referindo às questões humanas, o território natural da historicidade. A Física, a ciência da natureza, sempre foi associada a uma prática que lida com processos que não se submetem à evolução e transformação que aquela asserção sub-repticiamente remete.
Isso cria múltiplos impedimentos de compreensão como por exemplo, entre outros, por que existe somente matéria no universo e não antimatéria? Onde foi parar a antimatéria?
Para contornar e responder a esse tipo de dificuldades um movimento renovador estimulado por cientistas como os ingleses Paul Dirac e Fred Hoyle, o russo Andrei Sakharov, o brasileiro Cesar Lattes, o indiano Jayant Narlikar e outros alterou profundamente a visão tradicional e a hipotética rigidez das propriedades do universo ao instaurar o exame da possível variação temporal das leis físicas com a evolução do universo. Isso induziu a geração de argumentos sólidos segundo os quais a afirmação daqueles filósofos pode efetivamente ser aplicada à natureza nas dimensões cósmicas, enfatizando o caráter histórico da Cosmologia. Pode-se então afirmar que as leis físicas terrestres ao serem extrapoladas para o universo adquirem uma dependência com o tempo cósmico global. Ou seja, as leis da natureza, isto é, as leis cósmicas estão em permanente mutação.
Seguindo essa orientação, somos levados a concluir que o universo é inacabado e constitui um processo contínuo de formação, criação e destruição. Assim como esse universo se autocriou a partir de um vazio quântico, quando ele se autodestruir só sobrará o vazio que dará origem a um novo universo.
O reconhecimento da historicidade da natureza através da dependência das leis físicas com o tempo cósmico, leva a Cosmologia a trazer para o centro da explicação da evolução do universo o pensamento de Marx.