Wanderley Guilherme dos Santos
Cosmos & Contexto presta homenagem póstuma ao grande brasileiro e intelectual humanista Wanderley Guilherme dos Santos falecido em 26 de outubro de 2019.
Quando convidei Wanderley para participar de nosso Simpósio RENASCIMENTO DAS UTOPIAS ele veio conversar comigo em minha sala no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Ele me disse então, que se aceitasse o convite seria para falar não da utopia, mas sim da contra utopia. E me explicou longamente o que pretendia com esse termo.
Encantei-me imediatamente com sua fala. Mais do que falar no Simpósio eu lhe pedi que abrisse com essa ideia nosso Encontro.
Impedido na véspera de poder participar presencialmente de nosso Simpósio, por razões de saúde, enviou seu belíssimo texto que reproduzimos abaixo.
Por: Mario Novello
O apogeu da contra-utopia
Utopia é um conceito nebuloso, ao mesmo tempo ambíguo e vago, ou seja, deficiente em compreensão e em extensão. Condenado à controvérsia, portanto. E não apenas epistemológica, mas ontologicamente também: algo que, embora não exista, mas pode existir, devia existir ou existirá, o que convida a debates sobre mundos possíveis (pode), deontológicos (devia) ou de probabilidade (existirá). Essa diferença frequentemente se dilui nos formuladores de utopias do mesmo modo que em alguns analistas. Provavelmente porque eventuais coincidências entre descrições utópicas no passado, de certo modo materializadas em momentos posteriores, induzam o juízo de que o evento atestaria, mais do que uma coincidência, a capacidade preditiva do autor. Difícil discriminar o que tenha sido clarividência ou acaso da imaginação, embora não seja ilegítimo admitir, em princípio, a hipótese de que os fabulistas busquem deliberadamente modelar um mundo que não contradiga princípios elementares da razão científica; capazes de vir a existir, portanto, acoplando o deontológico ao probabilístico.
Li há muito, em Arthur Clarke, (Perfis do Futuro) uma defesa da literatura de ficção científica com a tese de que a invenção de algo, se não contraria a natureza nem os princípios lógicos, depende apenas de soluções tecnológicas. Não estou aqui tomando posição no debate sobre as relações entre utopias e ficção científica, apenas tentando entender a razão pela qual se toma fábulas deontológicas ou existenciais como estrita especulação. Já um grego antigo, cujo nome desafortunadamente eu esqueci, reconhecera que, se algo é possível (restrição modal de Arthur Clarke), ou aconteceu ou acontecerá. Para deixar inconcluso o debate, acrescento outro ângulo ao par premonição versus coincidência: as invenções frustradas de dezenas, talvez centenas, de candidatos a arquitetos tecnológicos correspondem a previsões imperitas ou a concomitâncias que ainda estão por acontecer?
A confusão entre registros de existência, imperativos ou de probabilidade é igualmente aguda nas fabulações distópicas ou contra utópicas. Com um agravante: nem sempre contra utopias buscam condenar o presente, mas ao contrário, torná-lo preferível ao estado resultante de obsessiva busca da perfeição. A nuance é importante porque condiciona a avaliação implícita do real contingente. A distopia estaria condenando ou glorificando o status quo? Ou, simetricamente, utopias sempre prometem alternativas satisfatórias ao presente? Ainda mais: quando se pressupõe uma intenção deontológica positiva no autor, é este o efeito automático no leitor? Exemplificando: há relativo consenso sobre a natureza deontológica positiva dos modelos apresentados em Olhando para trás (1888), de Edward Bellamy, A Cidade do Sol (1623), de Tomaso Campanela, e Magnésia, a ilha descrita por Platão no diálogo As Leis (+-340AC). Contudo, ainda que se abstraiam preconceitos arcaicos tais como racismo e misoginia, as três utopias são ao mesmo tempo magníficos exemplares de um inferno mítico.
A férrea observação de normas, bem como a existência delas para tudo a que os seres humanos dispõem como escolha – dormir, casar, comer, ler, estudar, passear e tudo o mais – constitui, na realidade, e nos três exemplos, o pesadelo de um mundo regido pela radicalização do princípio da razão suficiente. Tudo que acontece tem uma, e só uma (daí o radicalismo) razão para acontecer. Consequentemente, alcançar determinados objetivos obriga, necessariamente, à provisão de sua causa suficiente, embutida em temporalidades, protocolos e condutas, que não podem ser senão as contidas nos regulamentos. Conforme resumido em Platão: 1) Existem padrões morais absolutos; 2) Tais padrões podem ser incorporados, mesmo imperfeitamente, em um código legal; 3) A maioria dos habitantes de uma cidade ideal é inocente em filosofia, portanto, nunca devem os habitantes pensar em agir por iniciativa própria, seja para modificar os ideais morais ou o código de leis que os expressam, devendo total e incondicional obediência às leis e códigos doados pelo legislador. Claro, há sempre prevista a figura do iluminado, que pode ser um coletivo, a traduzir o ideal em práticas acessíveis aos comuns. Importante embora, não é o que desejo sublinhar aqui. Enfatizo, como essencial, a asfixia resultante de qualquer concepção obcecada pelo princípio da razão suficiente, seja ético, político, de justiça ou científico. É esta a raiz comum a utopias e distopias e o que as torna incomensurável à ficção novelística. Por definição, toda história romanesca poderia ser diferente: a cadela Baleia podia não ter morrido, em Vidas Secas de Graciliano Ramos. Um leitor achará que essa morte foi um desnecessário toque sentimental à história, já trágica o suficiente; outro, ao contrário, estima que a morte de Baleia inaugura novo horizonte passional na história.
Não é incomum a transfiguração de utopias em contra utopias, e vice-versa, na recepção do texto ou no entendimento futuro dele. A disciplina férrea de utopias e distopias é impotente na relação com o leitor. Também ocorre a interpolação de, digamos, sub utopias ou sub distopias na utopia ou distopia principal. Estou tomando distopia como sinônimo de contra utopia e de anti utopia, contrariando a severidade dos especialistas, alguns bastante ciosos da nomenclatura apropriada. Em Erewhon (1872), Samuel Buttler apresenta uma fabulação crítica das ideias e instituições predominantes em seu tempo, com leve sátira às teses darwinistas (A Origem das Espécies havia sido publicada com fulminante sucesso em 1859), sem abandonar a determinação cética em relação aos dogmas religiosos herdados. A conciliação de disposições dissemelhantes resulta em singular composição, cujo estilo literário e cuidado artesanal e lógico de Erewhon estão ausente de obras mais célebres. Por exemplo, o par Olhando para trás, de Bellamy, e Notícias de Lugar Nenhum (1890), de William Morris, quase sempre discutido em conjunto, entendendo-se que Morris inventou um socialismo romântico e alegre em contraposição ao socialismo despótico de Bellamy, me desagradam literária e substantivamente. Fazem parte da tradição utópica anglo-saxã, mas não portam reflexões duradouras ou estimulantes. Em minha opinião, a leitura de Buttler é agradável pelo estilo e provocadora pelas teses de ambição teórica. Eis um exemplo da liberdade deste leitor face aos arabescos da imaginação dos autores citados.
Na superfície, Erewhon se apresenta como um exercício em que, assim como no nome, o sentido está no contrário do que significa para nós (no where – lugar nenhum). Nele, descreve-se a organização e costumes de uma comunidade em que prevalecem princípios e costumes opostos ao da sociedade inglesa de meados do século XIX. Punir e repelir quem está doente, por exemplo, é prática consagrada em Erewhon, o oposto do comandado pela moral social de nosso tempo e, sem dúvida, também no tempo de Butler; isto é, se ignoramos, por culturalmente invisível, o tratamento dispensado pelos ingleses aos nativos das colônias que iam fundando. Nas teorias justificando hábitos e crenças que surpreendem o viajante, Mr. John Higgs, encontra-se o talento de Samuel Butler para descobrir racionalidade e sensatez no que é estranho e contrário à normalidade do cotidiano, não só inglês, mas ao genericamente humano. Nem todas as teorias possuem a mesma engenhosidade, mas o efeito conjunto me parece narrativamente convincente, sem graves imperícias ficcionais ou lógicas. Apresento uma leitura possível do núcleo lógico de Erewhon.
No capítulo 24, continuação do Livro das Máquinas, Mr. Higgs prossegue na tradução de antiquíssimo tratado que descobriu em Erewhon, no qual se expõe enfática defesa do postulado de que às mesmas causas correspondem os mesmo efeitos. Nada ofensivo, aliás, à premissas do mundo clássico, pré-quântico, válido para as teorias educacionais da época (as de Wilhelm von Humbolt, por exemplo) assim como as reflexões políticas (as de John Stuart Mill, por exemplo). Aplicado à sucessão temporal, o tratado discorre sobre os perfis do futuro que se seguirão aos perfis do presente. O futuro não é algo arbitrário; ao contrário, futuros semelhantes devem seguir-se a presentes iguais. Todo cultivo agrícola depende da infalibilidade desse postulado: “O futuro deve algo como uma loteria para os que acreditam que as mesmas combinações precedem ora um conjunto de resultados, ora outro. Se sua crença é sincera, eles devem viver especulando sobre o que pode acontecer antes que trabalhando para que aconteça algo.” Mesmo quando não se conhecem as razões pelas quais certas combinações produzem certos efeitos, a certeza implícita do postulado garante que uns se seguirão às outras. O princípio é evocado durante a explicação de como a consciência humana surgiu de circunstâncias em que ela ainda não existia, embora não se conheçam exatamente os mecanismos dessa evolução. Assim, se a teoria da seleção natural e da adaptabilidade da vida às condições objetivas existentes é verdadeira, então, nem por se ignorar os caminhos seguidos pela evolução criadora da consciência humana, cabe negar que um embrião humano, lá em remotíssimo passado, não tenha vindo a dispor individualmente dela em sua evolução milenar. A individualização da consciência humana constitui o marcador diferencial da espécie em relação à fauna e à flora, as quais, na concepção do historiador da ciência de Erewhon, dispõem coletivamente de uma faculdade, entre o instinto e a consciência, que os faz agir mecanicamente ajustados ao princípio de que às mesmas causas correspondem os mesmos efeitos. A individualidade de cada ser humano atualiza o princípio por diferenças de escolha em universo finito de alternativas.
No capítulo 25, conclusivo, do Livro das Máquinas, a certeza na inviolabilidade do postulado é exemplificada pela rotina agrícola, em apaixonado parágrafo. Eis o trecho central: “Quem cultivaria e semearia a terra se ninguém acreditasse na inevitabilidade do futuro? Quem jogaria água em uma casa em chamas se a ação da água sobre o fogo fosse incerta? (…) O sentimento de tal certeza é uma parte constitutiva da soma das forças atuando sobre os homens e mais poderosamente sobre os melhores deles. Aqueles mais firmemente persuadidos de que o futuro está imutavelmente acorrentado ao presente em que trabalham, cultivarão melhor o seu presente e o lavrarão com o maior de todos os cuidados” (1). E há uma razão para que o postulado seja ilustrado por exemplos tirados à agricultura. A experiência milenar da humanidade no trato da terra propiciou o aprendizado e consolidou a certeza necessária para a continuidade da ação e, por esta, a sobrevivência da espécie. O processo evolutivo intrínseco a tudo que existe obedece á cláusula de que só permanecem as mutações mais favoráveis ao existente e, por isso, a corrente entre o presente e o futuro não se rompe. A solidariedade entre o postulado clássico e os resultados do processo evolutivo tem por garantia a extraordinária força do interesse, ilustrada pelas flores que se alimentam de matéria orgânica, como moscas, por exemplo, cujas pétalas não se fecharão, entretanto, por nada além do que seja digerível – não por uma gota de chuva ou um graveto aleatório. “Curioso! Um ser tão inconsciente possuir percepção tão aguda de seu interesse. Se isso é trabalho do inconsciente, para que serviria a consciência?” (2)
Ao interesse, se junta, evolutivamente, o império da competição. Competição entre batatas, para exemplificar. Ainda no capítulo 23, o primeiro Livro das Máquinas, especula-se sobre a astúcia de uma batata armazenada em escuro depósito parcamente iluminado por réstea de sol atravessando uma janela. Ela envia seus tentáculos nessa direção, engatinhando pelo chão e subindo pela parede até esgueirar-se pela janela. “Que tipo de deliberação sobre o assunto a batata executa quando plantada na terra não sabemos, mas podemos imaginá-la refletindo (…) Farei sombra a esta batata vizinha e dominarei aquela outra; o que posso fazer é o limite do que farei. Aquela batata que é mais forte e melhor colocada do que eu, me suplantará, e àquela que é mais fraca, eu suplantarei” (3). Á objeção de que as ações das batatas são químicas e mecânicas, resultado de luz e calor, o Autor do Livro das Máquinas traduzido por Mr.Higgs indaga se todas as sensações não resultam de operações químicas e mecânicas. “Não haverá uma ação molecular do pensamento, da qual se poderia deduzir uma teoria dinâmica das paixões?”.
Sendo um dos primeiros a refletir sobre as consequências da revolução industrial, sua familiaridade com as maravilhas derivadas do acoplamento entre ciência e tecnologia, contudo, limitava-se ao estado das artes de seu tempo. No capítulo 16, por exemplo, Butler toma como “máquinas avançadas” as máquinas a vapor, as ferrovias (4), que experimentam extraordinário progresso de um modelo a outro, de uma capacidade de desempenho a outra, muito superior. Em estágio de acelerado progresso tecnológico, a força dos interesses em permanente conflito competitivo ilumina os motivos pelos quais as máquinas foram banidas de Erewhon. “Quem pode assegurar que a máquina a vapor não possui uma espécie de consciência? Onde começa e termina a consciência? Não está tudo interconectado com tudo? Não estão as máquinas ligadas à vida animal por uma infinita variedade de caminhos?” (5). Se o postulado de que mesmos antecedentes produzem idênticas consequências, não sabemos se a evolução das máquinas não seguirá o mesmo trajeto da consciência humana, cuja origem e formação também desconhecemos.
A exposição da teoria que justifica o banimento das máquinas em Erewhon ilustra o mencionado fenômeno de antecipação de contingências. Por décadas, o temor a eventual rebelião das máquinas, bem mais furiosa do que a rebelião das massas, que são cegas e irracionais, segundo Ortega y Gasset, testemunhava o caráter fabuloso, isto é, no caso, impossível de existir, assim como o gigante Polifemo das narrativas de Ulysses. A atração pela inundação das utopias por máquinas decorria e decorre da fertilidade imaginativa que elas estimulam. Há liberdade para a invenção de todo tipo de máquina, mantido o compromisso de que estejam além da possibilidade de construí-las. Foguetes e astronaves de vertiginosa velocidade e armas demolidoras de catedrais a um piscar de olhos fazem parte do arsenal bélico comum à ficção científica e às utopias/distopias.
Não obstante, a incômoda ideia de eventual convulsão tecnológica subsistia, acompanhando a mecânica industrial disponível. As máquinas desterradas pelos habitantes de Erewhon correspondem ao estágio da revolução industrial do século XIX. No século XXI, os sábios que reduziam a ignorância de Mr.Higgs estariam provavelmente denunciando os perigos da revolução digital. Em extraordinário ensaio, W. Brian Arthur registra que “estamos presos entre duas forças enormes e inconscientes: nossa mais profunda esperança, como humanos, está depositada na tecnologia, mas nossa confiança mais profunda se encontra na natureza” (6).
Brian Arthur é um engenheiro/economista adepto doe variante do evolucionismo darwinista, assim como Butler, a quem critica em diversas passagens de sua teoria, mas não, o que é curioso, em relação aos capítulos sob o título “Livro das Máquinas”. Otimista quanto à relação entre aquelas duas forças enormes, termina o volume declarando que “Não ter tecnologia é ser não-humano; tecnologia representa grande parte do que nos torna humanos (…) Tecnologia faz parte da ordem profunda das coisas (…) Somos humanos e necessitamos mais do que conforto econômico. Precisamos de desafios, sentido, propósito, alinhamento com a natureza. Onde a tecnologia nos afasta disso, nos traz um tipo de morte. Mas onde o enriquece, afirma a vida. Ela afirma nossa humanidade (7). As omissões do texto não comprometem a concepção básica de Brian Arthur, mas o caminho percorrido tangencia particularidades suficientes para manter vívido o temor pelos prognósticos de especialistas como ele. (7A)
Voltando a Butler. Os capítulos 18 e 19, o “Protocolo de Nascimento” e “O Mundo dos Não Nascidos”, de Erewhon, trazem teorias bastante plausíveis, no contexto da utopia, até mesmo incluindo no capítulo 19, talvez sem deliberação, uma utopia intertextual em que a utopia oficial, se transforma em distopia. O “Mundo dos Não Nascidos” é povoado por entidades etéreas, dotadas de imortalidade e vivendo em circunstâncias paradisíacas. Mas eis que alguns desses entes se entediam e passam a reivindicar autorização (não é claro a quem é dirigido o pedido) para nascer e, eventualmente, são autorizados a convencerem erewhonianos a gerá-los, o que não é tarefa trivial.
Por razões omitidas aqui omitidas, os habitantes do lugar não desejam filhos em hipótese alguma, mas os não-nascidos os infernizam de tal modo, invisível e anonimamente, que o casal escolhido sucumbe ao assédio e os traz a este mundo imperfeito e no qual os agora nascidos conquistam… a mortalidade – espécie de suicídio dos não nascidos. Fica expressamente registrado que a probabilidade de nascimento e as condições da vida mortal que desejam são tão incertas que nenhum, senão os mais tolos dos não nascidos, as aceita; e são desses tolos, e somente deles, que são recrutados os habitantes de Erewhon. (8). Samuel Butler não manifesta consciência de haver transformado sua utopia em inversão distópica da meta utopia “O Mundo dos Não Nascidos”. Nem há qualquer consequência para o que ocorre na, então, subliminar distopia Erewhon. Se acaso se tratasse de uma inversão intencional, haveria uma subversão completa da ficção. Butler, conhecido crítico dos costumes da sociedade inglesa de sua época, que estaria retratada na suposta utopia.
Na realidade, então, o objetivo do autor teria sido o de demonstrar que a única alternativa aceitável à realidade da sociedade existente pairava em mundos imortais, de absoluta abundância e felicidade entre iguais – o que, certamente, consistiria em utopia no sentido vulgar de sonho inconsequente –, enquanto o mundo de Erewhon descreveria o desenlace de qualquer tentativa de alterar de modo substancial a sociedade existente. Contudo, nada na biografia do autor, nem em nenhum de seus outros escritos (e ele escreveu seriamente sobre o poder da teoria evolucionista), suporta tal interpretação. Interpreto, portanto, subversão contida no capítulo 19, “O Mundo dos Não Nascidos”, como tropeço ficcional, configurando um modo especial de construção utópico/distópico com aparente poder virtual.
Em mais de uma passagem Mr.Higgs refere-se às narrativas que ouviu ou leu como “mitologias” (9). Permanece obscuro se o autor da classificação é o próprio Mr. Higgs ou se os relatos são assim considerados pelos erewhonianos. Na verdade, há sólida razão para acreditar que a sabedoria erewhoniana está longe das aparentes bizarrias de que Mr. Higgs nos dá conta. De forma clara, ele nos informa que “Nenhum erewhoniano acredita que o mundo é tão sombrio (para ele, Mr. Higgs) com tem sido pintado aqui, sendo uma de suas peculiaridades (dos erewhonianos) a de que muito frequentemente não acreditam nas coisas que declaram como indisputáveis” (10). Ao que parece, é uma suspeita radical sobre a solidez de seu próprio sistema de crenças que sustenta o combinado de ontologia cum epistemologia a que denominam de “hipotética”. Segundo Mr. Higgs, eles argumentam que ensinar às crianças meramente a natureza das coisas que existem no mundo a seu redor, e com as quais deverá se entender ao longo da vida, não lhes transmitiria senão concepção estreita e insípida do universo, o qual, é enfatizado, contém todo tipo de coisas que não são encontradas nele agora. Abrir seus olhos para essas possibilidades, e prepara-las para toda sorte de emergência, esse é o objetivo do sistema de “hipotéticos” (11). Um eco, talvez, no século XIX, da reflexão grega sobre a eventual materialização de algo, desde que seja possível. A natureza profética ou preditiva de utopias e distopias, seja para recomendar, as primeiras, como ideal regulador, sejam para alarme, as segundas, acrescenta características que as distingue da pura sátira convencional. Não se trata de comentário peregrino sem tensão dramática. Utopia e distopia são dramas em registro não realista.
A breve exposição de alguns capítulos de Erewhon ilustra importantes diferenças entre a parcimônia tecnológica de Butler, sem trazer mirabolantes invenções para resolver problemas ficcionais, e, por exemplo, o premonitório cartão de crédito como substituto do dinheiro, em Bellamy. Ou o romantismo de William Morris em que a abolição da propriedade torna obsoletos juízes e cortes, que serviam apenas para proteção dos proprietários, sociedade, onde “não há punição a ser evitada ou lei a ser superada, é o remorso que se segue a eventual transgressão” (12)
Mr. Higgs relata a condenação de um jovem de 23 anos, acusado de trabalhar sendo portador de uma enfermidade pulmonar, especialmente por se tratar de reincidência criminosa. Anteriormente já condenado por bronquite, estivera na prisão outras quatorze ocasiões, todas em razão de doenças de maior ou menor caráter delituoso; “de fato, não seria exagero afirmar que vc. passou a maior parte da vida na prisão”. A justificativa da sentença de prisão perpétua com trabalhos pesados é longa, ocupando metade das páginas do capítulo 11, “Alguns Julgamentos Erewonhianos”, e se encerra com a seguinte consideração: “Você pode dizer que ser criminoso é sua infelicidade; respondo que ser infeliz é que é o seu crime” (13).
Dispensar a política (capítulo 13 (?) de News) é simples quando os conflitos se extinguem por dogma, ou melhor, como resultado de uma divisão do trabalho em que cada um se ocupa segundo a inclinação natural e, por isso, todas as ocupações, inclusive as menos nobres, provocam certo prazer de criação, que torna o trabalho um hábito (cap.15, News). A crucial questão da divisão social do trabalho é dada por irrelevante, vista a liberdade de cada qual seguir sua inclinação ocupacional. Tal como em Looking Backward, de Bellamy, está dito que os problemas de produção e de distribuição se pautam pela regra – de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade (14). Desde Platão, a distribuição dos ônus do trabalho compõe capítulos essenciais na fabulação utópica, buscando-se no sistema educacional prevenir conflitos futuros. A ligeireza de Bellamy e Morris no tratamento do tema é especialmente reprovável por tratarem de fábulas situadas depois da revolução industrial, quando o processo de divisão social do trabalho se acentua vertiginosamente, ao contrário das utopias pretéritas, elaboradas em universo exclusivamente agrário.
Até aqui, não distinguimos claramente utopia de distopia, embora eu tenha sugerido interpretar a “utopia oficial” de Samuel Butler, Erewhon, como sendo, na realidade, uma derivação decadente, distópica, do que seria a verdadeira utopia, narrada nos capítulos “Protocolos de Nascimento” e “O Livro dos Não Nascidos”. Controverso, por certo. Outra proposição controversa apontaria o cenário de fundo como uma diferença crucial entre a fabulação utópica e o pesadelo contra utópico. Em geral, as utopias especulam sobre a reorganização de um mundo agrário, com reduzido número de ocupações urbanas, artesanais. As distopias, contra utopias ou anti utopias são, em geral, condenações dramáticas da sociedade industrial, seus costumes, fórmulas políticas e resultados existenciais.
Finalmente, uma terceira proposição controversa refere-se à estrutura dos argumentos: utopias, em geral, compreendem descrições literárias de suas características topográficas, sociais e políticas, mas sem atributos dinâmicos; não há explicação pormenorizada de sua gênese. Ademais, raramente são mencionados os processos de reprodução do mundo utópico, a propriedade dos dispositivos que evitem decadência ou conflito, externo ou interno. Daí a associação, no imaginário popular, entre utopia e paraíso, mesmo quando certas características utópicas promovam restrições severas ao que seria considerado pela audiência como uma condição natural ou benéfica. As contra utopias, em giro radicalmente oposto, se ocupam de processos mórbidos, de lógicas tortuosas, de associações imprevistas que, a partir do mundo não utópico existente, aporta em paisagens e sociedades em ato de reprodução de si próprias. Se a utopia nega o existente pelo imaginário, a contra utopia condena o existente pelo desenlace de seu excesso. De onde seu apelo em momentos de crise profunda.
Ossificar os critérios acima expostos, contudo, comprometeria a apreciação da polissemia ficcional das utopias e distopias, flexibilidade suficiente para admitirem interpretações de longínquos parentescos. Em “A praise of pain – Thomas More’s anti-utopianism”, Giulia Sissa instala Tomas Moro em controvérsia sobre a autenticidade da “voz autoral”, e sugerindo que Erasmo, não Morus, perfila as teses da fabulação, enquanto Guido Giglioni o classifica, em “From Thomas More to Thomas Smith – utopian and anti-utopian understandings of economic change in sixteenth-century England”, como um visionário malthusiano buscando solução para o fantasma da fome (15).
Acredito que propor uma categorização exaustiva de utopia e distopia tornou-se imprudente em face do extraordinário censo promovido por Gregory Claeys, com 39 páginas de bibliografia, de um total de 542(13). Trata-se de erudito levantamento e exposição crítica do que o autor considera distopia, que se apressa a mencionar tratar-se de algo completamente distinto de ficção científica, e nisto se contrapõe a outro especialista, Frederic Jameson, que as considera subgêneros da ficção científica (14). Infelizmente, não dispus de tempo suficiente para a devida apreciação dos trabalhos de Claeys e Jameson). No entretempo, admitirei como plausível o juízo de que utopias predominam no longo período histórico anterior à revolução industrial, ainda quando algumas (p. ex., Magnésia e Cidade do Sol, ou mesmo Looking Backward) alcancem a sensibilidade contemporânea mais como distopias, enquanto distopias explícitas são claramente rebentos das sociedades pós revolução industrial. Nem as revoluções inglesa e americana, e nem a francesa, expressam qualquer temor tecnológico ou premonição de tiranias burocráticas.
O capitalismo industrial, ativado pela competição sem limites em busca do lucro, inaugura vertiginoso processo de divisão social do trabalho, com base em miríade de ocupações diferenciadas, ora complementares, ora em conflito – capital e trabalho em quantidade e especialização competitiva – resultando em burocracia e poder estatal sem paralelo no mundo agrário. Do tríptico francês – liberdade, igualdade, fraternidade –, horizonte realista de utopias arcaicas, sobra uma frágil liberdade, assediada pela associação do egoísmo à desigualdade, substitutos das outras duas bandeiras, agora aparentemente utópicas. Se Adam Smith elaborou um sistema utópico (inexistente em meados do século XVIII) que se materializou plenamente no século XX, não seria inoportuno considerar o Leviatã, do século XVII de Thomas Hobbes, a embrionária distopia a florescer no mesmo século XX.
Tornar flutuante a fronteira entre o utópico/distópico e a realidade científica ou social corresponde a transformações no estatuto epistemológico de elaborações racionais, fazendo de especulações imaginárias os parentes próximos de relatórios de pesquisa, do mesmo modo que respeitáveis sistemas de crenças são transferidos para o museu de ideias obsoletas, vide o flogístico ou o céu das estrelas fixas, este orientando as descobertas marítimas dos séculos XV e XVI.
O século XX propiciou experiências científicas, pseudocientíficas e de organização social, suficientes para enriquecer o conjunto de relatos distópicos que ultrapassam o cânone da disciplina. Só em moldura distópica ganham profundidade premonitória textos como “Relato perante a Academia”, em que Kafka apresenta um macaco narrando sua transformação em ser humano. A transformação seria comprovada pela aquisição de características pouco apreciáveis, embora sejam humanas, demasiadamente humanas. São relatos em registro realista de eventos absolutamente peculiares, como as “Investigações de um Cão”, ainda de Kafka, em que o canino, vivendo como a espécie humana viveu durante milênios (com repercussão na Utopia de Morus e no Contrato Social, de Rousseau), perseguido pela fome e pela ameaça de desaparecimento por inanição, explora as causas pelas quais, irregularmente, o alimento caia do céu, não sabendo se por acaso ou por deliberação de quem o joga. Ignorante da legislação que rege o mundo, o cão termina por acreditar que a causa dispensadora de alimento se encontra nos pulos e cabriolas que executa, dependendo da arte e técnica de seu desempenho a eficácia do espetáculo e a abundância da dádiva. Nada diferente da feitiçaria dos povos iletrados, ou dos ritos de colheita, ao atribuir a erros na execução do rito o eventual fracasso do plano.
A experiência socialista de tipo soviético, localizada na Rússia e em outros países europeus, assim como os autoritarismos que se seguiram à descolonização na África e no mundo árabe, descortinam significativas variantes dos conceitos tradicionais de distopia. “O Castelo”, de Kafka, é paradigmático da inacessibilidade do poder, que se reproduz em “Sofia Petrovna”, da russa Lydia Chukvoskaya, escrito em 1939/1940, publicado pela primeira vez em inglês em 1967, e em russo, finalmente, em 1988. Em “A Fila”, da egípcia Basma Abdel Aziz, de 2013, os participantes nunca ultrapassam a entrada de um distópico Portão para apresentar suas reclamações (na realidade, de tão longa não se conhece quem esteja à frente do Portão), assim como nunca tem fim a escavação de enorme buraco para os fundamentos do que será imenso palácio no futuro, “O Poço”, do russo Andrey Platonov, escrito durante os anos trinta, mas também só publicado em 1999. O ângulo macabro de Kafka, expresso em “Metamorfose”, e também em “Um artista da fome”, tem continuação no excelente autor iraquiano, Hassan Blasim, cujos extraordinários relatos, em registro economicamente realistas, compõem a coletânea “A Exibição de Cadáveres e outras histórias do Iraque” (18).
O gênero ficcional a ser atribuído a esses escritos depende da moldura utópica/distópica que os compreende, de outro modo não valeriam mais do que como exercícios formais, e aí os critérios de avaliação seriam inteiramente distintos. Também me parece inadequado interpretá-los como transposição imediata, mais próxima da caricatura, dos eventos correntes nas sociedades dos autores. Transposições diretas costumam transmitir soluções mecânicas pouco convincentes, mesmo no universo ficcional criado. A novela “O Comitê” (1981), de outro egípcio, Sonallah Ibrahim, narrando a angústia de um acusado que desconhece o crime cometido, estaria neste conjunto, não obstante a avaliação de Roger Allen, segundo o qual Ibrahim “pode ser considerado um verdadeiro par de Franz Kafka” (19).
A moldura distópica comum à literatura contemporânea (século XX e XXI) consiste na redução a zero do valor da dignidade do indivíduo, de seu desamparo diante de regras e intempéries, absolutas, as primeiras, e traiçoeiras, as segundas, e na substituição do problema da fome pelo problema do emprego. É a perda do emprego que está na origem do pesadelo de Sofia Petrovna, e que a leva à loucura, do abandono à inércia do artista da fome, de Kafka, o mesmo fantasma que mantém Voshchev, personagem de Platonov, cavando um buraco que percebe jamais terá fim, ou Tatarsky que, em “Homo Sapiens” (1999), de Victor Pelevin, transformado de desempregado caixeiro de loja em bem sucedido homem de publicidade, no retorcido capitalismo da Russia atual (20), e cujo sucesso decorre da eficiência com que persuade o homem comum de que a realidade em que vive é totalmente diferente, excepcionalmente melhor, do que daquela em que ele efetivamente vive. A duvidosa separação entre publicidade e propaganda, ambas eficientes na substituição da sensibilidade ingênua das pessoas comuns do mundo material pelo mundo do consumo possível, torna-se bem mais evidente do que nas dificílimas teorias semiológicas da academia, notadamente francesa. É do mundo contemporâneo que se está tratando em textos que, se se ignora a moldura distópica, adquirem feição de meros divertimentos surrealistas.
Nada proíbe considerar o estado material da sociedade como grávido de uma distopia. Ao contrário das utopias e distopias clássicas, seccionadas da realidade vigente, a moldura distópica coabita o espaço contemporâneo da sociedade, a ela aderida e em processo de engorda. A operação diária da sociedade provê o alimento de que se aproveita a moldura distópica, em amadurecimento até o momento em que ultrapassa a condição de particular conteúdo da realidade e se transfigura no continente dela. De então, segue-se a bruta necessidade de encaixe dos personagens nas arruelas dos mecanismos sociais, sustentando o encaixe de outros figurantes sem nome, quem sabe apenas números, contribuições indispensáveis ao desempenho da grande máquina – a Integral, de Zamyatin – todavia não mais externa à comunidade, mas o resultado final da transformação distópica da comunidade, ela mesma. O valor de cada qual decorre da eficiência com que contribui para a estabilidade da própria máquina, condição para que continue a não ser outra coisa senão uma arruela no mecanismo geral. Chamemo-lo Mercado. Sua sobrevivência particular depende da reprodução exemplar da totalidade. Neste universo, só a eficiência garante a sobrevivência e, como diz Zamyatin, “A poesia, hoje, não, não se resume a imprudentes gemidos de rouxinóis, poesia é serviço para o governo, poesia é utilidade” (21).
A Integral de Zamyatin é a integral da sociedade de massas contemporânea especialmente depois do naufrágio da experiência socialista sob a forma dos sovietes e apparatchiks russos. Ideologicamente, a Integral soviética resultava de voluntária cooperação universal entre os habitantes daquele universo, guiados por valores estritamente altruístas, justificativa da premissa de que o preço do paraíso, da felicidade geral, seria o abandono do livre arbítrio individual (22).
A hegemonia do capitalismo vencedor tem surpreendido a humanidade pela demonstração de que não era a competição com o autoritarismo soviético a razão de instabilidade no mundo dito ocidental, com a maior crise em quase um século, iniciada em 2008, há menos de 20 anos do desparecimento do sistema socialista. E mais: a liberdade civil e política que eventualmente acompanhem a acumulação da riqueza capitalista estão a serviço da integral da livre iniciativa, em que cada membro da comunidade é livre para escolher a arruela de sua preferência, sem garantia, contudo, de que a encontrará, ou de que estará apto ao encaixe. O semelhante é um competidor, não um coadjuvante, pois nunca se está seguro de que não ocupará a única arruela disponível no momento. Se um desencaixado (desempregado) resistirá até o próximo imprevisto (no caso, nova onda de multiplicação das arruelas) é problema de sua responsabilidade pessoal, não devendo contar com amparo público durante o estágio desocupado, de duração imprevisível. O entusiasmo com a supremacia da Integral capitalista penetrou a esfera das relações privadas primárias, havendo suspeitas de que as tradicionais virtudes de solidariedade e simpatia são na realidade hábitos nocivos, inclusive para os que são beneficiários delas (23).
O ajuste de austeridade inaugurado no mundo capitalista pós crise de 2008 apresenta a característica comum de todos os países, cada qual a seu modo, desarticularem o sistema de proteção social construído depois da segunda guerra mundial. O desaparecimento da Integral soviética, máquina externa à sociedade, liberou a expansão ilimitada da Integral Mercado, assentada exatamente no mesmo critério: a eficiência na reprodução da máquina, condição para a sobrevivência das arruelas. O denominador comum à Integral socialista e capitalista consiste na inviabilidade de alternativa endógena, evolucionária, conforme dos evangelistas de ambas Integrais.
A Integral capitalista replica o universo hobbesiano, sem a tirania do poder político ilimitado. Com instâncias autorizadas a vetar desígnios dos governantes, intromissões indevidas nas relações entre cidadãos, cabe manter o governo como garantidor em última instância das regras de competição e o livro exercício da autonomia individual na busca de satisfação material sem limites, desde que obedientes às regras que beneficiam igualmente a terceiros. São as externalidades positivas ou o trickle-down dos cursos introdutórios de Economia.
É curioso que os especialistas não tenham identificado na Integral capitalista um jogo – o dilema do prisioneiro em escala gigantesca – em que os resultados da competição são inferiores ao pretendido por cada um dos participantes. O valor consagrado pela Integral consiste no sucesso na acumulação material, prova da competência e, assim reza a ideologia, do bom cumprimento da obrigação de assegurar a sobrevivência da Integral. O bom cidadão é o cidadão bem sucedido.
Ora, o dilema do prisioneiro é um jogo no qual a opção por competir sem cooperar produz, inevitavelmente, consequências de segunda expectativa, ainda quando um dos jogadores escolha cooperar. Nem ele ou os demais obtém resultados melhores do que obteriam se todos cooperassem. Sem cooperação universal, o sub-ótimo é insuperável, ao contrário do Péssimo de Rousseau, em que o progresso de cada um é impossível sem concomitante progresso dos demais jogadores (24).
Há trinta ou quarenta anos, a redescoberta de conflitos sociais do tipo “dilema do prisioneiro” estimulou a pesquisa lógica sobre eventuais soluções do dilema sem a necessidade de intervenção de um poder externo ao jogo, isto é, uma autoridade política. Tratava-se da justificativa da Integral capitalista de radical liberalismo, em que a livre inciativa surgiria com poder e criatividade suficiente para superar a aparente inevitabilidade da insatisfação democrática (25). Em pequeno e brilhante volume de cento e noventa páginas (modesta extensão para livros de ciências sociais), Robert Axelrod dá conta de exercício computacional (que denomina de “torneio”) sobre escolha racional, submetida a pequeno conjunto de regras. No estudo se apresenta possível demonstração da teoria que sobre como a cooperação pode evoluir naturalmente da interação entre jogadores racionais (26).
A proposta de Axelrod consiste na milenar troca do “toma lá, dá cá” (tit for tat), no qual um movimento cooperativo provoca movimento correspondente no presumido contendor, levando o primeiro a repetir a escolha pela cooperação, cada qual obtendo reiterada boa vontade do outro, e assim sucessivamente. Em derivações com base em trabalhos do biólogo evolucionista John Maynard-Smith, Axelrod demonstra que, ao longo de variável número de iterações “toma lá, dá cá”, populações de tamanhos igualmente díspares escaparão ao dilema do prisioneiro. Estaria comprovado que assim, teriam alcançado nível superior de bem estar sem necessidade de intervenção externa. Adiciona-se, no volume, uma narrativa histórica sobre eventos reais durante a Primeira Guerra Mundial em que soldados inimigos em fronteiras próximas, quando a opção racional maximizadora, seria atirar no inimigo, tanto os aliados, quanto os alemães permitiam que os soldados “inimigos” levassem suas vidas, normalmente, nem atirando nem preocupados com ataques do lado contrário.
À teoria do “tit for tat”, Axelrod acrescenta a hipótese de que, no caso, a estratégia “toma lá, dá cá” era uma estratégia estável, ou seja, não haveria outra estratégia capaz de invadi-la. Por definição, uma estratégia é capaz de invadir outra se consegue produzir recompensas superiores às do membro típico da população cuja estratégia foi invadida. Sem examinar com rigor o que significaria membro típico da população (modal? mediano? médio?), a teoria é elegante e plausível. A priori, contudo, parece bastante irrealista supor que os combatentes, tendo um companheiro atingido por bala traiçoeira, esperassem por outras que viessem a persuadir os inimigos que era pior continuarem a atirar sem expectativa de reação à altura, do que cessar também a fuzilaria. A cooperação deveria ser simétrica ou a cooperação não ocorreria. O volume trás, em seu capítulo 4, interessantes exemplos em que, por circunstâncias específicas a cada um, estabeleceu-se uma trégua entre os combatentes, a despeito da inexistência de ordens para tanto, trégua respeitada até que oficiais superiores interviessem, obrigando à retomada das hostilidades. Exemplos apetitosos para a tese de que a intervenção externa a contratos livremente estabelecidos entre indivíduos autônomos (circunstancialmente, no caso) produz ineficiências operacionais.
Registre-se que a exposição simplificou consideravelmente os argumentos de Robert Axelrod, bem como reduziu drasticamente as implicações do modelo. A redução, contudo, não compromete a observação crítica que me parece relevante e que não depende da fidelidade na apresentação da teoria em sua integralidade. Refiro-me ao primeiro movimento cooperativo, a saber, quem evita disparar o primeiro tiro? Sem uma resposta cooperativa passiva a um movimento conflitivo não há desenvolvimento benigno para que uma estratégia de cooperação invada e conquiste uma população em que, nesta, predomina a estratégia egoísta, maximizadora.
O “toma lá, dá cá” não opera exclusivamente no caso do toma lá cooperação, mas igualmente no do toma lá conflito, e, em ambos, o dá cá será da mesma natureza. Apenas quando há uma resposta cooperativa a um estímulo conflitivo surge a possibilidade de que o segundo movimento reciproque a cooperação. Ainda assim, cumpriria especificar em que condições o jogador conflitivo deixaria de aproveitar a oportunidade que lhe é oferecida para adquirir vantagem em relação ao cooperador voluntário. Formalmente, aquele que coopera sem estímulo prévio para tanto se arrisca a desempenhar o papel de “tolo”, aquele que oferece vantagens sem receber nada em troca. Ao responder cooperativamente a um movimento maximizador, um jogador deve estar consciente de que, eventualmente, deverá repetir a “tolice” até obter resposta equivalente do opositor. E, sabendo-se que o opositor se aproveitará da boa vontade do oponente para maximizar seus ganhos, será razoável esperar que, em algum momento, o jogador não cooperativo se convença de que um retorno cooperativo produzirá ganhos superiores aos que obtém, mantendo-se arredio? O livro de Axelrod oferece narrativas de momentos reais, históricos, diferentes uns dos outros, em que um movimento cooperativo foi bem sucedido. A existência de iniciativas de tal natureza é fenômeno comum na Integral capitalista, restrita a nichos ou deliberação limitada de alguns. Não é oferecido, todavia, no volume, as razões lógicas pelas quais tais movimentos se produziriam de maneira sistemática, isso é, não aleatória, e com finito número de variáveis intervenientes.
A Integral capitalista é povoada por jogadores egoístas, socialmente louvados e invejados precisamente por sua capacidade de conquistar sucesso em condições de inóspita competição. A transformação de tal Integral em Integral cooperativa não resultará de iniciativas localizadas, mas da invasão de estratégia oposta à estratégia da competição, o que requer grandes números ou que seja introduzida mediante revolução, isto é, extenso rompimento dos contratos existentes. A domesticação da Integral capitalista pela brilhante elite política inglesa, narrada por Michael Young em sua gênese histórica e consequências, até a crise de valores 2037, com a surpreendente reviravolta nas aspirações da elite. A meticulosa investigação histórica efetuada pelo Autor está exposta no volume O Alvorecer da Meritocracia (27).
Depois do fantástico feito de transformar uma sociedade profundamente conservadora, em que a tradição é respeitada como evangelho religioso e o ceticismo prevalece como defesa contra desapontamentos, os modernos, em 2037, parecem solidamente assentados em evidências para esclarecer a natureza de mudanças sociais bem sucedidas. Sustentam que a mudança social decorre de modificações econômicas, pressionadas pela competição, sobretudo internacional, e tendo a educação por alavanca fundamental. O gatilho de todo o desenrolar do projeto inspirou-se na psicologia humana: “antes que a sociedade moderna atingisse a maturidade, a ambição teve de ser empurrada sempre adiante e para cima, e a ideologia do povo ajustada conforme as necessidades da nova idade científica” – é o que nos assevera o cronista Michael Young, homônimo do sociólogo Michael Young (28) . Durante a transição, a sociologia, bem como políticos e burocratas estatais de soberba mentalidade, pode recensear as causas do sucesso da transformação inglesa. Ei-las: 1) mudança social (progresso) é função positiva da associação entre poder e inteligência; 2) o mérito das pessoas deriva da operação conjugada da inteligência com o esforço; 3) eficácia do princípio da aspiração (ambição) compensatória: quanto maior a frustração (econômica e social) dos pais, maior a aspiração relativa aos filhos (29). A história inglesa dos últimos duzentos anos, aproximadamente, foi constituída pelos episódios que a teriam conduzido do estado feudal ao estado científico. Primeiro, as origens.
O mundo feudal, agrário, de asfixiante estagnação tecnológica, não exigia acentuada diferenciação na capacidade produtiva das pessoas e, em seus primeiros séculos, os proprietários das terras e plantações tratavam do solo e das colheitas ao lado de seus servos. Com baixa produtividade do trabalho e constante ameaça da fome, não havia lazer derivado da propriedade, embora algum lucro, em épocas fartas, sempre houvesse. A acumulação da riqueza trazendo a possibilidade do emprego de mais gente – trabalhadores desde sempre e falidos ex-proprietários – reacendeu o drama da morte, da imortalidade, cuja superação os bem afortunados encontraram no princípio da hereditariedade. A herança é o princípio estabilizador da sociedade agrária, instilando moderação e responsabilidade (contra o desperdício e a malversação de bens e recursos) e, fundamentalmente, garantindo a continuidade (30). Adequado a um modo de produção que acorrenta o trabalhador ao solo, a agricultura proíbe a mobilidade horizontal sob a ameaça de fracasso na produção e, consequentemente, perigando a reprodução da família e da descendência. “O solo gera castas, a máquina produz classes” (31). Buscando a continuidade e preservação da riqueza, a economia agrária consagra o nepotismo.
Com a expansão da indústria, o nepotismo feudal impunha limitações à eficiência. Embora crucial, a capacidade dos filhos em conduzir os negócios gerados pelos pais não era garantia universal. Muitos primogênitos revelavam-se desastrados agentes econômicos com prejuízo não só para sua família, mas para o bem estar geral da comunidade. O poder social e político da aristocracia agrária, escorado na permanência da ideologia consagradora do princípio da herança, manteve a produtividade econômica estagnada, agora não apenas na agricultura, mas igualmente na administração dos negócios da indústria, ainda regidos pelo mesmo princípio. Em meio do século XX a tradição continuava sobrevalorizada e a continuidade reverenciada. “Para cada mudança devia haver um precedente” era a premissa que tolhia o progresso e admirava a mesmice. (32). A escola, contudo, daria nascimento à modernidade.
Os exames para aceitação nas escolas públicas se incumbiram de cancelar a vitaliciedade das reservas de lugares para a aristocracia territorial ou de sangue. O princípio do mérito, cuja fórmula já foi mencionada (mérito= inteligência+esforço) operacionalizava a demanda por igualdade de oportunidades, própria das classes industriais, especialmente dos trabalhadores manuais, aspirando para seus filhos melhores posições na escala econômica e social (outra regularidade anteriormente registrada). A indústria impôs certa diferenciação na capacidade das pessoas que operam máquinas, gerando uma distinção, desconhecida no mundo agrário, entre trabalhadores sem qualificação e aqueles que sabiam como mover as máquinas. A dinâmica impressa pelo progresso tecnológico estabeleceria exigências cada vez maiores, tornando bem mais complexo o leque de ocupações, não só verticalmente, mas horizontalmente também.
Os próprios industriais reconheciam a necessidade de formação de seus filhos conforme a capacidade de aquisição de conhecimentos de cada um, minando por aí, inicialmente, o princípio da primogenitura na herança de riqueza. Primogênitos sem talento converteram-se em ameaça à estabilidade e continuidade dos negócios. A preparação de competente mão de obra para as fábricas conduziu a classe proprietária a adotar com fervor a demanda por igualdade de oportunidades, não sendo raro que filhos de trabalhadores terminassem o primário muito à frente dos pimpolhos bem nascidos (33). Depois de capítulo, “Origens da Moderna Educação”, em que a evolução da estrutura educacional da Inglaterra é parafraseada, cabe avançar para o último da primeira parte, “Da senioridade ao mérito”.
Aspecto atraente do ensaio, quase todas as transformações inglesas, quer em relação à educação, quer relativas às relações patronais e sindicais, são narradas como decorrências logicas de legislação efetivamente aprovada e aplicada na Inglaterra. Algum especialista classificaria a novela como uma espécie de contra-utopia, revelando a que futuro os ingleses se arriscariam, caso as leis fossem implementadas com sucesso. O fracasso das leis teria evitado a materialização da sociedade descrita, enquanto a Inglaterra do tempo do sociólogo Michael Young, não o de seu homônimo cronista, continuasse, muito britanicamente, a agir como se as leis estivessem operando integralmente.
As antigas gerações, contudo, custaram a perceber que a promoção de adultos trabalhadores por mérito, na indústria, era tão necessária quanto a de crianças na escola. Antes que a meritocracia se estabelecesse plenamente, a estratificação por idade como substituto da ordem hereditária terá sido necessária para a estabilidade social, ainda que a custo elevado. Nos locais de trabalho era praticamente impossível transferir alguém da escala escolhida de acordo com a idade que saíra da escola para outra escala em que ocuparia melhor posição. “A educação decidia o ponto de entrada na indústria, e o ponto de entrada decidia onde alguém terminaria” (34). Acumulada a experiência de alguns anos, os industriais afinal entregaram a professores a seleção dos recrutas para as diversas posições nas empresas. Mecanismos de avaliação do progresso cognitivo dos operários fabris propiciava a promoção de carreira e salarial daqueles que, entrados em funções subalternas em virtude da série em que teria abandonado a escola, continuavam a adquirir conhecimentos e capacidade produtiva. “A rendição era essencial para a sobrevivência”, concluíram os capitalistas, embora a citação seja de Zamyatin (35).
Buscando substituir o critério de idade pelo de mérito os jovens encontraram apoio, na outra ponta etária, em idosos que, depois de despedidos de funções que ocupavam, eram obrigados a aceitar colocações interiores à anterior Encontraram entusiasmo nos aposentados, bastante competentes, eram, não obstante, excluídos da produção pelas regras de trabalho vigentes. “O reemprego de aposentados prestou grande serviço, dissociando autoridade de idade” (36). Por fim, a transferência entre escalas de remuneração e prestígio escapou ao arbítrio do empregador, até então vulnerável a preferências pessoais com sacrifício da produtividade, passando a depender de testes de mérito, conforme a fórmula mencionada: inteligência+esforço=mérito.
A reprodução social das estruturas em vigor, e a ideologia pública que as sustentam, cria sua própria oposição e não há como evita-lo. A estratificação por mérito, substituindo o critério de senioridade, foi muito bem vinda até começar a produzir anticorpos. Dois grupos principais constituem a antítese da sociedade meritocrática: 1) a maioria dos que constituem a segunda geração da classe baixa, ou seja, todos os rebentos de pais de classe baixa, com exceção dos espertos que escapam por meio da escada educacional; 2) a minoria constituída pela primeira geração de classe baixa, a saber, os filhos de parentes de classe alta que se revelaram estúpidos na escola, sendo rebaixados para a inferior classe apropriada à sua capacidade (37).
O ressentimento acumulado desses dois grupos resultava do esgotamento e desmoralização do mito da igualdade humana, segundo a qual os desajustes entre a apreciação subjetiva de si próprios e o desconforto da posição ocupada no mundo seriam fruto das injustiças no recrutamento escolar e da desigualdade de oportunidades. Na sociedade do mérito, com a equalização das oportunidades, a elite tem consciência de que os inferiores são inferiores mesmo, daí que alguns de seus membros percam toda simpatia em relação àqueles subordinados, ofendendo-os desnecessariamente. A situação da classe baixa é diferente. Cada um de seus membros sabe que foi testado e teve todas as chances de ascensão. A consciência de justiça entre mérito e posição, sem futuro de progresso, portanto, produz falta de respeito por si próprio e falta de vitalidade com consequências negativas sobre o trabalho e para a harmonia social.
O futuro do conflito, imprevisível, foi abortado, todavia, por cinco particularidades. Primeiro, pela filosofia subliminar da escola. A escola passou a incutir nos estudantes menos inteligentes um substitutivo do mito da igualdade humana: o mito da muscularidade (distinto de masculinidade) disseminando o culto do físico; enquanto os mais inteligentes aprendiam esportes exigentes em destreza mental, os demais eram encaminhados a halterofilismo, boxe, futebol e semelhantes. Em segundo lugar, pela implantação de testes regulares aplicados a esses esportistas, oportunidade para que, comprovado desenvolvimento posterior, justificasse alteração na posição social. Terceiro, a certeza dos menos favorecidos de inteligência de que seus filhos teriam oportunidade de ascender à meritocracia. Quarto lugar, a própria estupidez dos pouco inteligentes; eles eram pouco ambiciosos, inocentes e incapazes de apreciar o grande desenho da sociedade e articular efetivo protesto contra o infundado das injustiças, “porque eles não sabem o que é feito a eles” (38). Contratempos sociais e ineficiências econômicas foram evitados pela sugestão de alternativas de atividade em que os menos dotados seriam convenientemente recompensados, pela persuasão de que, dependendo do próprio progresso, alcançariam melhor posição na estratificação social e, finalmente, pela tranquilidade assegurada pela certeza de que os desafortunados de inteligência e, consequentemente, expropriados de status e renda, não percebem, como tal, a inferioridade a que são destinados.
A quinta iniciativa impedindo que as consequências negativas se materializassem foi a aplicação da seleção científica à indústria, com a implicação de rigorosos ajustamento da capacidade à tarefa desempenhada. O modelo copiava a grande e eficiente organização militar que juntava todos os pascácios nas mesmas tarefas, eliminando a pressão psicológica dos mais rudes diante dos mais inteligentes. Todas as tarefas que as máquinas não podiam desempenhar eram atribuídas a pelotões de broncos. À pergunta sobre quem desenvolvia o trabalho sujo na sociedade era simplesmente respondida: aqueles que gostam desse trabalho, claro. O mito da muscularidade já os preparara para tal (39). Que ideal pode ser sustentado senão o princípio ‘igual status para igual inteligência’?
A contínua sofisticação das máquinas e consequente substituição de operadores por outras máquinas ou por níveis crescentes de qualificação aumentou a quantidade de trabalhadores sem função. No limite, o trabalho manual foi inteiramente dispensado. Temporária divisão entre membros dos sindicatos dos trabalhadores, com alguns conseguindo adequar-se aos requisitos da nova era e a maioria tornando-se dispensável, favoreceu a antecipação de um futuro em que todos seriam redundantes ou inúteis. Daí a retomada de antiga prática de impedir demissões. A substituição do trabalho humano pela máquina liquidou gradativamente os empregos e as profissões intermediárias (secretárias, atendentes, digitadores), todas reduzidas a um mínimo. O self-service difundiu-se extraordinariamente. Quando as condições apoiando a ideia de igualdade entre os humanos desapareceram completamente, o reconhecimento da distinção entre classes instalou-se pacificamente e os sem talento encontraram seu lugar natural: os serviços domésticos foram restabelecidos, com a vantagem de que os serviçais admitiam e até sentiam-se realizados na contribuição ao estatuto de servidão.
Com a destinação escolar e profissional das melhores mentes para as posições nobres no Estado, cada vez mais complexo e demandando um corpo burocrático de alta categoria, os colegiados políticos representativos perderam capacidade legislativa, superados pelas questões da modernidade. Ao fim, o método de seleção dos melhores pelos melhores estabeleceu-se. Finalmente, considerando a maior probabilidade de a maioria dos filhos dos mais brilhantes serem os mais brilhantes, restabeleceu-se o princípio da hereditariedade, poupando as novas gerações do inútil desgaste de comprovar, durante os testes escolares e posteriores, sua condição superior (40).
The Rise of the Meritocracy foi publicado em 1958, recebido como sátira à sociedade inglesa da época e premiado na Itália em 1963. O objetivo preciso da sátira me escapa, mas o fantástico misturador que é a passagem do tempo, fez da narrativa uma distopia profética. Aplicando o cronograma de Michael Young, este início do século XXI estaria às portas da grande transformação que ultrapassaria definitivamente os estágios residuais do nepotismo hereditário e da complacência com a senioridade. A extraordinária ruptura na forma de produção material e de todo tipo de serviços parece ir moldando o mundo conforme a radicalização do princípio do mérito, muito embora o suposto mito da igualdade de oportunidades não tenha sido posto à prova na maioria das sociedades atuais e, consequentemente, ainda não tenha adquirido supremacia a tese de que se deve buscar a igualdade de oportunidades tendo em vista a meta do florescimento da desigualdade. Todavia, sintomas existem, sendo oportuna a verificação das tendências apontadas pelos especialistas.
Cinquenta e oito anos depois do aparecimento da sátira de Michael Young, Klaus Schwab, fundador e diretor-executivo do Fórum Econômico Mundial, fez publicar, em 2016, o que pode ser interpretado como um relatório de balanço e perspectivas das profecias de The Rise of the Meritocracy (41). Ainda sob a inspiração utópica, admirando o presente e esperançoso em relação ao futuro, o volume desconhece seu ancestral, mas declara laços de fraternidade com todas as utopias tecnológicas do presente, particularmente em relação ao problema do emprego. Como repetido pela maioria dos teóricos da revolução digital e robótica: a destruição de empregos deverá ser compensada pela criação de novas oportunidades de trabalho.
O número de revoluções industriais ou de idades das máquinas varia com as preferências de cada autor, mas o registro de Shwab contribui para iluminar suas teses. A primeira revolução, entre 1760 e 1840, deveu-se ao tear mecânico, à máquina a vapor e às ferrovias; a segunda, da parte final do século XIX ao início do XX, fundou-se na eletricidade e no motor a combustão, além da produção em massa e na organização em linha do trabalho fabril; a terceira, iniciada pelos anos sessenta do século passado, foi inaugurada pela descoberta e exploração do mundo digital. A quarta, enfim, em pleno desenvolvimento, apoia-se na revolução digital e se manifesta na robótica, na inteligência artificial, na biotecnologia, no armazenamento da energia, na computação quântica, e todas as consequências derivadas das inovações revolucionárias.
As características desta quarta revolução distinguem-na bastante das duas primeiras e, em parte, também da terceira. Aproximadamente 17% da população mundial, por exemplo, não têm acesso à eletricidade, disponível há mais de cem anos, e mesmo metade da população do mundo inteiro ainda está privada da internet. Entretanto, enquanto o tear mecânico da primeira revolução industrial levou quase cento e vinte anos para se expandir, a internet ingressou no fluxo do mundo em menos de uma década. Ademais, as mudanças tecnológicas da quarta revolução industrial não desenham uma curva linear, mas exponencial, na economia, nos negócios, na sociedade e na individualidade, levando ao que o autor considera completa transformação ontológica de todos os sistemas.
A acelerada transformação do mundo gera exigências inéditas de administração da necessária estabilidade institucional que garanta o crescimento econômico. Líderes com capacidade de compreender o que está acontecendo – a magnitude da ruptura com o mundo arcaico e o desenrolar imprevisível das conquistas prometidas – são poucos. Falta, sobretudo, uma narrativa agregando consistência à disparidade de linhas conexas, e ao mesmo tempo autônomas das descobertas científicas e de sua transformação em produtos materiais. Mutatis mutandis, falta um novo Adam Smith, ideólogo competente da quarta, como o original o foi da primeira revolução industrial, capaz de apontar os remédios para a decadência do valor do trabalho e o crescimento da desigualdade. Falta um mecanismo de seleção meritocrática da liderança em todos os setores: economia, governo, administração.
Desde logo, há que reconhecer a tensão do novo tipo de crescimento industrial, e da produção em geral, em que: a) – por drástica redução de custos e acréscimo marginal próximo de zero no aumento na escala de produção, levando consequentemente a maior potencial de consumo, ao mesmo tempo em que: b) – o efeito distributivo da nova economia, privilegiando o capital, constrange os salários e, portanto, deprime o consumo. Essa contradição essencial do modo de produção capitalista foi enfrentada com sucesso, ao longo das revoluções anteriores, com o concurso das pressões sindicais por aumentos na renda do fator trabalho. O recurso sindical desapareceu na economia da quarta revolução industrial, que substitui trabalho por máquina, ainda que empresários e governos, tal como nos retardamentos apontados nas transições da meritocracia de Young, desejassem atender às necessidades do trabalho. A possibilidade de aumento de salário desapareceu junto com o próprio salário, que desapareceu junto com a ocupação.
Acresce inevitável instabilidade consequente ao crescimento da expectativa de vida em face ao duplo processo de redução no número de empregos (passo inicial do desaparecimento de ocupações e das habilidades nelas embutidas) e do aumento de idade para aposentadoria por demanda de trabalhadores ainda hígidos e capazes. Ambos os processos constituem barreiras à transformação da PEA (população economicamente ativa) em PEO (população economicamente ocupada), molduras para conflitos entre empregados e desempregados e entre velhos e novos trabalhadores.
É importante assinalar que o dinamismo industrial não decorre de aumentos na produtividade do trabalho, cujo decréscimo, estabilidade ou descenso é matéria altamente controversa na literatura tecnológica, mas da necessidade das empresas permanecerem na fronteira da inovação. A competição tecnológica é letal e, com frequência, desagua na constituição de “one-take-all-markets”, isto é, mercados com mais de 80 ou 90% apropriados por uma grande firma. São domínios de produção em que não cabem mais de uma, no máximo duas grandes corporações. A marcha para o quase monopólio é irreprimível nesses mercados. A vertiginosa obsolescência tecnológica favorece os conglomerados capazes de absorver a destruição de enorme quantidade de capital fixo, condição indispensável à permanência na competição. Não há futuro de média empresa para gigantes como Google, por exemplo, e é pouco provável a convivência entre dezenas de Googles.
Nessa moldura, a primeira interrogação refere-se à extensão em que a máquina substituirá definitivamente o trabalho humano. Na projeção otimista, como mencionado, e repetindo na mesma escala o ocorrido na primeira e segunda revolução industrial, o novo modo de produção promove a multiplicação de outros postos de trabalho, cuja exigência de destreza não é excessivamente superior à requerida pela economia em desaparecimento. Um bom ensino fundamental prepararia o exército de trabalhadores para as novas funções, daí a grande preocupação da Inglaterra de Michael Young com a escola pública e a igualdade de oportunidades demandada por socialistas como os irmãos Webbs. As estatísticas, contudo, não têm justificado o otimismo de alguns. Existe redução absoluta de lugares de emprego ali onde a máquina substitui a operação humana. Descoberta relevante, todavia, é que o eixo principal da ruptura não se encontra na distinção entre trabalho manual e não manual, mas entre trabalho de rotina e não rotina. É majoritariamente ceifada, em primeiro lugar, a mão de obra ocupada em ocupações rotineiras, manuais ou não manuais.
Somam-se as distinções derivadas da natureza do trabalho. Além da escola fundamental, crescente número de máquinas exige o ensino secundário, o técnico especializado, o universitário. E esta parcela de desempregados não resulta dos altos e baixos da retração e expansão econômica ou do rodízio entre empresas curricularmente semelhantes. Li em algum lugar o comentário de um especialista esclarecendo que um cavalo não substitui o trator quando a fazenda volta a produzir comercialmente. A analogia pode ser cruel, mas grande parte da força de trabalho mundial encontra-se em transição para metafórica equinidade.
O impacto da revolução digital e suas ramificações manifestam-se igualmente nas transformações operadas nos locais de trabalho e nas relações entre empregados e empregadores. No passado, passaram-se alguns anos até que a topografia das indústrias, disposição das máquinas, posição e indumentária dos operários, conexão entre partes produzidas e o produto final, armazenagem e transporte, atingisse o grau de eficiência máxima para o padrão produtivo do ramo industrial. Do mesmo modo, a passagem das corporações profissionais fechadas para o mercado desgovernado e daí para o estabelecimento dos direitos do trabalhador, depois de anos de graves conflitos e criação dos sindicatos, consumiu meio século, com variações nacionais bastante significativas.
É como se o mundo em que muitos se reunissem em espaço único para produzir enorme quantidade da mesma coisa estivesse sendo substituído por um mundo em que indivíduos praticamente isolados, interagindo com uma máquina, produzem diversos bens. Cada operador detém uma habilidade específica e é esta habilidade que o empregador compra pontualmente. Desaparece a necessidade de estabilizar horário, local, fluxo coordenado da produção e, consequentemente, desaparece a necessidade de fixar os trabalhadores responsáveis por essa estabilidade.
Longe de demonstrar consciência e solidariedade social, a aceitação final de legislações de proteção ao trabalho resultou da competição, entre empregadores, por constância da força de trabalho responsável pela estabilidade da produção. Os requisitos tecnológicos da produção determinavam o tipo de trabalhador atendendo a tais exigências. Este não é um comentário no volume de Schwab, mas minha introdução ao tratamento que a utopia da quarta revolução industrial vislumbra para as relações entre o empregador e empregado.
A rigor, majoritariamente, não haverá mais empregados, mas trabalhadores independentes dispondo de habilidade específica ou de um portfólio de serviços que arquivarão em uma “nuvem humana” (a expressão é de Schwab). Eles serão pontualmente requeridos por empresários, por período, tarefa e pagamento previamente definidos e cujos compromissos mútuos se extinguirão ao fim do serviço prestado. Somem os custos do fator trabalho, que é o significado econômico e político do conceito de “flexibilidade nas relações de trabalho”. Utopicamente, o trabalhador adquire inédita liberdade, escolhendo o que prefere fazer a cada grupo de mensagens requerendo seus serviços, com enorme mobilidade horizontal, não estando aprisionado a contatos por tempo indeterminado. Em resumo, com maior número de graus de liberdade, sofreriam menos estresse e maior satisfação no trabalho. O trecho relevante encontra-se à página 48 do The Fourth Industrial Revolution, no qual se reflete se não haverá da criação de enorme precariado industrial (valha o neologismo). A pergunta fica sem resposta no livro.
O tipo de governo adequado a este novo mundo é bem mais complexo do que os modelos derivados das revoluções industriais pretéritas, justificando os temores explicitados logo ao início do ensaio. Estabilidade é a condição necessária para o desenvolvimento produtivo da revolucionada realidade tecnológica, assim como o foram a separação de poderes e a expansão dos direitos civis e políticos na sociedade industrial. “Os governos, em colaboração com a comunidade de negócios e a sociedade civil, necessitam criar as regras, as limitações e o equilíbrio, para manter a justiça, a competitividade, a equidade, inclusive a propriedade intelectual, a segurança e a confiabilidade (…) Este é o desafio para os governos: deixar a inovação florescer, enquanto minimiza os riscos” (42).
Os riscos advirão das assimetrias de poder. Desigualdades crescentes surgirão entre os que comandam habilidades e controle das novas tecnologias e aqueles usuários passivos que nada entendem da tecnologia utilizada, hiato distinto do que se estabelece entre os trabalhadores que sabem e os que não sabem operá-la no trabalho. Fragmentação, conflitos de diferentes gravidades, alteração na estrutura dos mercados e, segundo a literatura pertinente, redefinição de identidades individuais – não mais através do local de trabalho, língua, grupo étnico, cultura particular –, agora expostas, em um mundo extensamente conectado, tendentes a serem substituídas pela administração de identidades múltiplas.
Algumas dessas identidades são probabilisticamente capazes de conquistar fantástico sucesso de uma hora para outra, como se narra em filmes e livros dos campeões de fundos de garagem, enquanto outros, mesmo os adaptados às novas tecnologias, permanecem estacionados na “nuvem humana”. Empregos da antiga classe média não garantem mais um estilo de vida classe média. Gera-se perigosa modificação do problema de Tocqueville em que as aspirações cresciam a ritmo superior ao crescimento da renda, com as aspirações crescendo linearmente ao crescimento da extensão da conectividade do sujeito. “É a emergência da sociedade “eu-centrada” (a expressão é de Schwab). Contrariamente ao passado, a noção de pertencimento a uma comunidade é definida mais por projetos pessoais, valores e interesses individuais do que pelo espaço da comunidade, o trabalho ou a família” (43).
Em minha leitura crítica, trata-se da contradição entre grandes “grupos de cada um por si” em competição com os bons “samaritanos produtores de bens coletivos”. “Existe grande preocupação com a possibilidade de que, com o aprofundamento da quarta revolução industrial e nossas relações individuais e coletivas com a tecnologia, isso possa afetar nossa habilidade e capacidade de sentir empatia pelo semelhante” (44). Ou seja, que a grande utopia tecno-meritocrática em que renda é estritamente função do desempenho, R= (f)desempenho, reminiscente de Mérito= Inteligência+Esforço, termine magicamente por se revelar como instável e hostil contra utopia, não chega a surpreender aos já advertidos por The Rise of the Meritocracy. No ensaio de Michael Young, tudo volta a ser como antes, reiniciando, talvez, outro ciclo de eterno retorno ao hobbesianismo social, embutido nas aparentes etapas de extraordinário progresso material.
É este o apogeu da contra utopia: o avesso de uma utopia que promete isolamento, competição e falta de empatia a seus habitantes.
NOTAS
A data da edição original dos livros está indicada entre parênteses; as citações remetem à edição que utilizei.
1 – Samuel Butler, Erewhon, London, Penguin Classics, 1985, p. 217.
2 – Butler, ob.cit., capítulo “O primeiro livro das máquinas”, p. 209.
3 – Butler, ob. cit., p. 201.
4 – Butler, ob. cit., pp. 149/50.
5 – Butler, ob. cit., p. 199.
6 – W. Brian Arthur, The Nature of Technology, New York, Free Press, 2009, p.11.
7 – W. Brian Arthur, ob. cit., p.216.
7A) – Constante analogia com organismos, recursos frequentes a tópicos biológicos e justa admiração do progresso tecnológico empurra Brian Arthur para declarações limítrofes da adição de consciência a “máquinas inteligentes”. Não as reproduzo para não estender este texto além do razoável. Remeto às páginas da edição que utilizei para as passagens relevantes: 2, 16, 21, 189, 206-208, 215. Vale registrar que a teoria sobre o nascimento e evolução das tecnologias apresentada em The Nature of Technology é a mais consistente e elegante que conheço.
8 – Butler, ob. cit., p. 169.
9 – Butler, ob. cit., ps. 166 e 174 para exemplos.
10 – Butler, ob. cit., p. 174.
11 – Butler, ob. cit., pp. 184-185.
12 – Cf. William Morris, News from Nowhere (1890), caps. 11 e 12. No capítulo 13 se afirma, literalmente, que se vive bem com a política “porque não temos nenhuma”. No capítulo 15, enfim, a divisão do trabalho se resolve pelo prazer subjetivo que os trabalhadores sentem com sua atividade, inclusive os que se ocupam com os dejetos humanos, porque terminam por apreciar o hábito de fazê-lo. Como em Bellamy, citado na nota 14, a inclinação natural das pessoas se encarrega de distribui-las pelas diversas ocupações, não constituindo jamais um problema nas respectivas sociedades.
13– Butler, ob. cit., p. 117.
14 – Edward Bellamy, Looking Backwards, New York, Dover Thrift Edition, 1996, ps.32 e 45.
15 – Os textos são os capítulos primeiro e quarto de Han van Ruler e Giulia Sissa (eds.), Utopia 1516-2016 – More’s Eccentric Essays and its Activist Aftermath, Amsterdam, Amsterdam University Press, 2017.
16 – Gregory Claeys, Dystopia – A Natural History, Oxford, Oxford University Press, 2017.
17 – Frederic Jameson, Archaelogies of the Future, London, Verso, 2005.
18 – Lydia Chukovskaya, Sofia Petrovna, Illinois, Northwester University Press, 1994; Basma Abdel Aziz, The Queue, London, Melville House, 2016; Andrey Platanov, The Foundation Pit,NY, New York Review Books, 2009; Hassan Blasim, The Corpse Exhibition and other stories of Iraq, New York, Penguin Books, 2014.
19 – Sonallah Ibrahim, N.Y., Syracuse University Press, The Committee, 1981, p. 160. O mundo árabe tem propiciado o aparecimento de volumosa literatura distópica que ainda não pude consultar senão modestamente.
20 – Victor Pelevin, Homo Zapiens, N.Y., Penguin Books, 2006. O livro é dedicado à Memória da Classe Média.
21 – Yevgeny Zamyatin, We (escrito em 1920/21, publicado pela primeira vez em inglês, em 1924), N.Y., Penguin Classics, p. 67.
22 – Cf. We, record 11.
23 – Paul Bloom, Against Empathy – The case for rational compassion, London, The Bodley Head, 2016.
24 – Wanderley Guilherme dos Santos, RJ, Editora Rocco, 2007, pp. 81-87.
25 – Expus a mecânica constitutiva da “insatisfação poliárquica” em “Poliarquia em 3D”, Dados – Revista de Ciências Sociais, 1998, vol. 41, 2, pp. 207-280.
26 – Robert Axelrod, The Evolution of Cooperation, N.Y., Basic Books, 1984.
27 – Michael Young, The Rise of Meritocracy, England, Pelican Books, 1958.
28 – Young, ob. cit., pp. 126/127.
29 – Young, ob. cit., pp. 14, 94, 100.
30 – Young, ob. cit., p.24.
31 – Young, ob. cit., p. 24.
32 – Young, ob. cit., p. 27.
33 – Reproduzi trechos de alguns capítulos com intuito de revelar por onde caminhou a narrativa do Autor.
34 – Faço colagens dos textos, mas algumas citações expressam a essência da descrição.
35 – Cf. Zamyatin, ob. cit., Record 11, pp. 59-63.
36 – Young, ob. cit., p. 92.
37 – Young, ob. cit., p. 97.
38 – Young, ob. cit., p. 111.
39 – Cf. a opinião de William Morris sobre o mesmo assunto, citada anteriormente.
40 – Este é um sumário apressado do restabelecimento dos princípios de hereditariedade e senioridade.
41 – Klaus Schwab, The Fourth Industrial Revolution, Geneve, World Economic Forum, 2016. Farei uma apresentação de algumas das teses de Schwab sem referência precisa às páginas do ensaio.
42 – Schwab, ob. cit., pp. 70/71.
43 – Schwab, ob. cit., p. 94.
44 – Schwab, ob. cit., p. 100.