O espírito da utopia
Devo confessar que há muita coisa na república de utopia que eu desejaria ver imitada em nossas cidades – coisa que mais desejo do que espero. (Thomas More, Utopia, 2004, p. 131-132)
Buscar entender o espírito da utopia pressupõe, em primeiro lugar, admitir que a própria origem da utopia está vinculada à temporalidade e à historicidade que caracterizam o existir humano; temporalidade e historicidade que, natural e culturalmente, os seres humanos pretendem não somente compreender e vivenciar, mas muitas vezes desejariam ultrapassar. O desejo de superação dessa condição existencial aponta, por um lado, para um certo mal-estar, um desconforto e um descontentamento com um determinado estado de coisas que é dado ao homem pela facticidade, mas também projeta, por outro lado, a configuração de outro estado de coisas, num outro tempo, num outro lugar; um estado de coisas que poderia vir a se efetivar, caso se alterassem completamente as condições factuais iniciais. Assim, as tentativas de determinação e realização histórica do espírito da utopia são elas mesmas os sinais mais evidentes de suas possibilidades, mas também indicam os seus limites. Elas costumam carregar consigo o seu avesso, seu movimento reverso. Entendida desse modo, a utopia somente pode ser considerada uma narrativa do poder ser, daquilo que não está no campo do feito, do fático, mas no campo do que pode ser feito, do poder fazer. Revela modos plurais de compreender, interpretar e, quiçá, também de transformar o mundo. Assim, a radical efetividade da utopia consiste paradoxalmente no fato de que ela nunca venha a se realizar plenamente e que tenha de permanecer, portanto, sempre um projeto, um movimento entre crítica, desejo e esperança.
Quando ouvimos e usamos a palavra ‘utopia’, com seus cognatos, logo nos vem à mente o sentido mais trivial que lhe é dado pelo senso comum. Ou ela é interpretada em chave positiva, indicando a possibilidade de realização de algo que ainda não está dado; ou é considerada negativamente, indicando a impossibilidade daquilo que ela mesma apresenta como possibilidade. Paz, bem-estar e felicidade são geralmente palavras que fazem parte do contexto semântico positivo, enquanto inalcançável e impossível são expressões que constituem o contexto semântico negativo. Como podemos perceber, trata-se de duas esferas linguísticas e de dois âmbitos de ação completamente diversos, muitas vezes antagônicos. Por isso, um dualismo tão banal certamente não poderia encerrar toda a complexidade que a própria ambiguidade do conceito de utopia evoca. Seu aparecimento, seja no âmbito da literatura, da ciência, da política ou da religião, parece sugerir que o tema, antes da adesão fácil, exige uma análise criteriosa e uma reflexão mais demorada. Assim, pensar o sentido e o espírito da utopia implica ter de fazer ao menos uma consideração sobre sua dimensão conceitual associada ao seu conteúdo sociopolítico, de modo que aspectos antropológicos, éticos e epistemológicos possam confluir e levar a uma compreensão que rompe com os limites do pensar cotidiano sobre o tema. Dessa análise emerge o que se poderia chamar de lógica interna e paradoxal da própria utopia, que, ao buscar efetivar-se, não raras vezes, se transforma exatamente em seu contrário, se consideramos que ela mesma muitas vezes produz a distopia como aquela condição que, de algum modo, lhe seria oposta.
Sejamos claros de saída, a utopia tem sempre em vista uma crítica social que geralmente se apresenta de maneira fantasiosa, com traços saudosistas ou futuristas, fazendo reviver uma suposta condição ideal de convivência humana projetada para um futuro que está por chegar. Passado e futuro na utopia encontram-se. Assim, ela começa por descrever e destacar os aspectos negativos de uma determinada sociedade ou cultura, sua estrutura e seu modo de vida no contexto de uma organização social, política e econômica, para depois desenhar e projetar o quadro de uma sociedade ideal, onde as mazelas do mundo vivido possam ser superadas e seja possível encontrar a felicidade. No quadro da utopia, um novo mundo sempre é possível. Quando não conseguimos compreender a dinâmica interna que faz com que a utopia se veja transformada em seu contrário, então talvez sejamos levados a simplesmente ter de aceitar tão somente a sua impossibilidade. Por isso, pensar como se desenvolve essa lógica interna, que, para muitos intérpretes, permanece muitas vezes clandestina e não se mostra, e buscar apresentar algumas breves pistas para uma reflexão sobre o tema, constitui o objetivo desta modesta contribuição, que, quem sabe, pode levar-nos a pensar juntos e buscar um novo sentido para o renascimento das utopias.
1 Utopia: um mundo duplo, perdido e recuperado
Numa narrativa fantástica, que traz significativamente o belo título O sonho de um homem ridículo, o grande escritor russo Fiódor Dostoiévski, ao buscar compreender o destino do homem e da cultura de seu tempo, reapresenta, em 1877, o tema da utopia.[1] Certa noite, enquanto pensa e prepara a melhor forma para se suicidar, porque se sente um homem ridículo, fracassado e indiferente ao mundo, um “moderno progressista russo” e “petersburguês sórdido”, sem se dar conta, adormece e sonha que apanha um revólver, aponta-o para o peito e puxa o gatilho. Pronto. Então, com a ajuda de um companheiro anônimo, ele inicia uma viagem pelo cosmos, até encontrar um outro mundo, uma outra terra. Conta-nos o narrador:
Estávamos voando por espaços escuros e desconhecidos. Fazia tempo que já não via as constelações familiares ao olho. Sabia que há nos espaços celestes certas estrelas cujos raios só alcançam a terra depois de milhares e milhões de anos. Talvez já tivéssemos voado por esses espaços. Esperava algo tomado por uma melancolia terrível, que me torturava o coração. E de repente uma espécie de sentimento familiar e sumamente invocatório me sacudiu: de repente eu vi o nosso sol! Sabia que não podia ser o nosso sol, que gerou a nossa terra, e que estávamos a uma distância infinita do nosso sol, mas por algum motivo reconheci, com todo o meu ser, que esse era um sol exatamente igual ao nosso, uma repetição e um duplo dele. Um sentimento doce, invocatório, começou em êxtase a ressoar na minha alma: força motriz do universo, desse mesmo universo que me deu à luz, pulsou no meu coração e o ressuscitou, e eu pude sentir a vida, a vida de antes, pela primeira vez desde a minha sepultura. (p. 107).
A utopia do escritor russo não só é um tributo às narrativas fantásticas e aos relatos de viagens das utopias renascentistas e modernas, mas também se alimenta da nova visão de homem e de mundo, construída pelas modernas teorias cosmológicas. Para ela convergem tanto a literatura quanto a ciência – e, considerada em seu conjunto, a novela também acentua o valor da religião no processo de construção da utopia, revelando assim aquele messianismo próprio dos projetos utópicos. Dostoiévski aproveita-se do topos literário da viagem à lua – presente não somente na aventura do paladino Astolfo, narrada por Ludovico Ariosto em seu Orlando furioso, além de outras múltiplas fontes literárias da antiguidade clássica, desde o diálogo Ikaromenippos de Menipo e a narrativa da expedição dos marinheiros das Histórias verdadeiras de Luciano, bem como as estórias de Cyrano de Bergerac sobre as viagens imaginárias à lua e ao redor do sol, escritas na segunda metade do século XVII – e certamente também não desconhece a aventura de Duracotus, o viajante lunar que o astrônomo Johannes Kepler havia colocado em órbita em seu Somnium (Sonho), uma novela de caráter claramente autobiográfico, escrita já em 1608, mas que viria a ser publicada postumamente, no ano de 1634, quando estavam em plena discussão e julgamento não só a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico e a ideia do universo infinito e a pluralidade dos mundos de Giordano Bruno, mas especialmente as concepções cosmológicas de Galileu Galilei. Além disso, o romancista russo faz confluir em sua utopia não só os elementos herdados da tradição literária que se ocupou amplamente do assunto e os elementos próprios do pensamento científico moderno, filtrados pelo crivo iluminista, mas também os ideais que constituíam as bases para a construção de uma sociedade de bem-estar e de felicidade, motivos essenciais para os movimentos revolucionários do século XIX. Aqui, literatura, ciência, religião e política encontram-se perfeitamente amalgamados.
Mas há ainda um outro elemento decisivo de matriz metafísica e religiosa na constituição da narrativa fantástica de Dostoiévski: o mito do paraíso terrestre. “De repente”, diz o protagonista da estória,
[…] eu estava nessa outra terra sob a luz radiante de um dia ensolarado e encantador como o paraíso […] Tudo era exatamente como na nossa terra, mas parecia que por toda a parte rebrilhava uma espécie de festa e um triunfo grandioso, santo, enfim alcançado […] Essa era a terra não profanada pelo pecado original, nela vivia uma gente sem pecado, viviam no mesmo paraíso em que viveram, como rezam as lendas de toda a humanidade, os nossos antepassados pecadores, apenas com a diferença de que aqui a terra inteira era em cada canto um único e mesmo paraíso.[2]
Como podemos perceber, a utopia de Dostoiévski está bem situada literária e culturalmente. Insere-se naquela tradição mitológica que sonha com a recuperação de um mundo primevo perdido; uma recuperação que agora vem projetada com o auxílio do moderno pensamento científico, mas que permanece sempre vinculada ao ideal da terra sem males, da terra feliz; uma outra terra sem a presença incômoda e terrível do sofrimento e da dor. Uma terra cujos habitantes “[…] não desejavam nada e eram serenos, não ansiavam pelo conhecimento da vida como nós ansiamos por tomar consciência dela, porque a sua vida era plena”. E para defender a ideia ética de um amor universal, tema central para a vida naquela sociedade utópica, o narrador mostra-se, ele mesmo, estupefato, incapaz de compreender o valor da experiência humana numa sociedade que não se deixa orientar unicamente pelos valores do conhecimento racional em geral e da racionalidade científica de modo muito particular. Como sentencia o narrador: a sabedoria dos habitantes daquela outra terra
[…] era mais profunda e mais elevada que a da nossa ciência; uma vez que a nossa ciência busca explicar o que é a vida, ela mesma anseia por tomar consciência da vida para ensinar os outros a viver; ao passo que eles, mesmo sem ciência, sabiam como viver, e isso eu entendi, mas não conseguia entender a sua sabedoria.
A descoberta de um novo modo de relação dos seres humanos com a natureza e com eles mesmos dá o tom da sociedade feliz, embora seja a presença questionadora e indagadora do próprio visitante um elemento que parece ameaçar a destruição daquele paraíso terrestre.
Ou seja, o modelo clássico da narrativa utópica encontra em Dostoiévski um de seus melhores exemplares em dois cenários opostos e complementares: no primeiro, aparece a descrição e a crítica da sociedade desigual e cruel, um mundo triste e sombrio por onde vaga e perambula um ser humano indiferente a tudo, completamente perdido e em busca do suicídio, pois ali a vida não faz mais sentido; no segundo, revela-se um mundo invertido, o reverso do primeiro: aquele possível refúgio imaginário para um mundo sem coração, uma saída para o jardim das delícias de um paraíso recuperado, onde é possível uma outra vida. Pode parecer muito simples, mas essa é a estrutura que constitui a construção da utopia. Conceitos e valores em constante movimento e tensão, num mundo em permanente transformação; projeto de uma vida feliz num mundo melhor. Rebrilha assim a perspectiva de um aperfeiçoamento humano, moral e social, onde a vida possa ser vivida em toda sua plenitude. Que o grande escritor russo encontre na mitologia judaico-cristã e espiritualista o lugar ideal e no amor ao próximo o grande conceito ético para a nova sociedade não diz muito de sua originalidade, enquanto criador de novos mundos culturalmente possíveis como saída para a condição da miséria humana narrada em seus romances, porque sua própria narrativa assume radicalmente a tradição cultural na qual se inscrevem os conceitos, os valores e as práticas nas quais ele mesmo como escritor encontra sua formação. Sua novidade, no entanto, está em fazer sua utopia acompanhar o movimento histórico de um mundo que sonha com seu inverso, de um mundo perdido que se quer ver, de algum modo, recuperado, após o advento da moderna mentalidade científica iluminista fundada na razão.
2 Utopia: um mundo pequeno e fechado?
Com as considerações que fizemos sobre a narrativa fantástica de Dostoiévski, percebemos que, ao tratar da questão da utopia, é impossível não referir sua origem como um poderoso gênero literário capaz de elaborar uma radical crítica social e, ao mesmo tempo, desenhar com traços soberbos uma sociedade ideal. Como já anunciamos, a utopia como gênero literário remonta à Antiguidade clássica, embora tenha conhecido ampla difusão especialmente a partir do século 16 e suas primeiras referências estejam fortemente vinculadas ao mundo da Renascença, graças à obra de Thomas More, cuja “Utopia” apareceu em 1516. Sem contar as inúmeras narrativas utópicas presentes nas mais diversas culturas do mundo antigo, que se estendem da descrição metafórica do Jardim do Éden, recuperado pelo autor russo, até a nossa Terra sem Males de matriz indígena. Se buscamos exemplares circunscritos somente à tradição ocidental, algumas referências básicas impõe-se: a República de Platão, as Metamorfoses de Ovídio, a História verdadeira de Luciano, a Cidade de Deus de Agostinho… textos seminais que conheceram uma afortunada transmissão e recepção, especialmente na mentalidade da Renascença, e que influenciaram profundamente não só a obra de Thomas More, mas também a Nova Atlântida de Francis Bacon, a Cidade do Sol de Tommaso Campanella, a Cristianópolis de Johannes Valentinus Andreae e muitas outras que, como dissemos, seria enfadonho listar aqui, uma vez que as utopias constituem uma parte importante da história da literatura, da ciência, da religião e da política.
Contudo, consideradas as mais variadas propostas utópicas e sem nenhuma pretensão de indicar integralmente suas características, é preciso destacar um elemento comum que as constituem. Da Atlântida de Platão a Utopia de More, da Lemúria e do continente perdido de Mu a 3001: a odisseia final de Arthur Clarke, as utopias valorizam o contrafático, ao negar sua própria condição de não se situar em lugar algum. Sua condição contrafática consiste em negar que não existam. Elas têm, portanto, um lugar num tempo e numa cultura. Têm inclusive uma geografia preferencial. A utopia, em geral, está situada numa ilha distante. Constitui um mundo fechado, mesmo quando, nas versões mais recentes e adaptadas ao contexto cultural do nosso tempo, essa ilha pode assumir dimensões planetárias. Isso indica que as narrativas utópicas são sempre possíveis no interior de um quadro conceitual bem definido e de uma mentalidade cosmológica que lhe servem de parâmetro.
Em sua bela e magistral, História das terras e dos lugares lendários, Umberto Eco nos fascina com uma importante reconstrução dos caminhos percorridos pela imaginação humana em busca da utopia.[3] Em seu livro, Eco vincula às descrições de sociedades ideais produzidas em tempos e culturas diversas, uma ampla gama de imagens iconográficas e cartográficas que atestam a realidade das ilusões construídas como mundos possíveis, quase sempre e reiteradamente localizados geograficamente numa ilha. Por isso, para compreender melhor o espírito da utopia, talvez seja necessário investigar essa questão e perguntar por que a utopia, na maioria das vezes, está associada a uma ilha. É bem verdade que nas representações cartográficas, até mesmo os grandes continentes cercados por mares e oceanos poderiam ser descritos como ilhas, pois a rigor nada mais seriam que grandes ilhas.[4] No entanto, destacar a relação entre a utopia e a ilha não me parece algo simples e trivial, exatamente porque fala da concepção conceitual e cosmológica sempre pressuposta, mesmo quando não explicitamente apresentada, que funda os desenhos dos projetos utópicos. Isso, portanto, poderia levar-nos a perguntar também se é possível uma mudança na forma de compreensão da utopia, quando se considera uma mudança conceitual na compreensão do cosmos. Seriam as utopias um produto intrínseco de uma cosmovisão que se orienta por referências a um mundo fechado? Nesse caso, teria o alvorecer da moderna concepção de cosmos, fundada especialmente na imagem da revolução copernicana, por exemplo, na busca desenfreada de novos mundos (terrestres e celestes), transformado o modo de compreender a utopia? E quais seriam as consequências de um projeto que pensasse a utopia como uma sociedade aberta?
São razões não só de ordem geográfica, mas também aquelas de ordem da organização social e política que parecem favorecer a escolha da ilha como lugar ideal para a utopia. Modelos governamentais e administrativos que favoreçam a planificação sempre são apresentados com riqueza de detalhes. Por isso, talvez devamos prestar atenção a esse aspecto que desempenha um papel essencial na formação da mentalidade dos utopianos: o insulamento. Embora a diplomacia constitua parte importante na organização e no funcionamento da utopia, o que implica o deslocamento e permite uma certa comunicação com o mundo externo à ilha, o insulamento parece garantir paradoxalmente duas condições para a realização da vida na utopia. Por um lado, o insulamento mostra aos utopianos os limites do seu próprio mundo, trazendo-lhes assim a sensação de segurança e proteção. Por outro, esse mesmo processo de insulamento tende a valorizar o que se poderia chamar, em termos atuais, de cultura local, produzindo o que poderia ser considerado uma clausura cultural. Também não é à toa que os projetos arquitetônicos das utopias são geralmente determinados como se elas fossem fortalezas. Por isso, o insulamento opera não só como um elemento exterior à vida dos utopianos; ele marca profundamente a personalidade de cada um dos indivíduos que vivem no interior dos limites da utopia. Novamente não faltam exemplos para justificar o nosso argumento. E a questão volta-se aqui não só para a compreensão da possibilidade da vida na ilha, mas também para o problema das relações culturais entre diferentes utopias, quando se pressupuser sua existência múltipla. Noutras palavras, como pensar a questão da alteridade na utopia. Aqui cabe então a pergunta: seria possível combinar o insulamento característico da utopia com uma mentalidade cosmopolita que compreenda e aceite a multiculturalidade? De algum modo, talvez valesse a pena relembrar mais uma vez o que nos dizia, a propósito da vida social, aquele grande poeta inglês, John Donne:
Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.[5]
3 Utopia: o mundo do poder
Como bem mostra Ernildo Stein, ao fazer referência a uma das obras magistrais do Renascimento, A anatomia da melancolia de Richard Burton, uma das consequências mais evidentes e mais devastadoras do fracasso dos projetos utópicos é a melancolia.[6] O início do projeto utópico sempre vem acompanhado da crítica, que pode mesmo levar à revolta e ao desejo de promover a mudança, de produzir a revolução. Ao final, no entanto, pode reinar o desencanto, o tédio, o vazio. E isso talvez tenha a ver não só com o processo de insulamento geográfico que acabamos de mencionar, mas também com a condições existenciais da vida política da utopia. Por isso, um aspecto que nos parece importante salientar, para justificar o desenho inteligente das utopias em geral, está exatamente num dos seus elementos constitutivos mais importantes: o poder. A utopia é o mundo do poder, entendido tanto como possibilidade de ser como exercício do poder em suas mais diversas formas de manifestação política, em especial aquela que diz respeito à capacidade de administrar e governar. Nesse sentido, a utopia é um mundo completamente planejado e administrado, o que o faz funcionar de modo exemplar. Aqui se deve considerar não só o exercício do poder, mas também a força e a própria violência para que a utopia se realize. No entanto, embora todo discurso sobre a utopia não possa esquecer de considerar a questão política do poder, o que poderíamos destacar com mais ênfase aqui é a face metafísica do poder que constitui a utopia: o poder enquanto condição de possibilidade.
Penso que, com isso, também ganhamos uma resposta plausível para a questão da relação entre a utopia e a melancolia, pois a melancolia tem sua origem exatamente no reconhecimento da impossibilidade de efetivação do poder ser que a utopia poderia realizar.
Referências bibliográficas
DONNE, John. Devotions Upon Emergent Occasions, and severall steps in my Sicknes. Toronto: Ambassador Books, 1959.
ECO, Umberto. História de terras e lugares lendários. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O sonho de um homem ridículo. In: Duas narrativas fantásticas. 3. ed. Tradução de Vadim Nikitin, São Paulo: Editora 34, 2011.
MORE, Thomas. Utopia. Prefácio João Almino; Tradução de Anah de Mello Franco. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais – UnB, 2004.
STEIN, Ernildo. Órfãos de utopia. A melancolia da esquerda. 3. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2015.
[1] Dostoiévski, Fiódor. O sonho de um homem ridículo. In: Duas narrativas fantásticas. Tradução de Vadim Nikitin. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 91-123.
[2] Ibid., p. 108-109.
[3] Eco, Umberto. História de terras e lugares lendários. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013.
[4] Agradeço à Paula Lopes Gomide pelas prazerosas discussões sobre o tema da utopia, em especial sobre a história da cartografia utópica, e pela excelente indicação do livro: Brotton, Jerry. Uma história do mundo em doze mapas. Tradução de Pedro Maia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
[5] DONNE, John. Devotions Upon Emergent Occasions, and severall steps in my Sicknes. Toronto: Ambassador Books, 1959. p. 108-109: No man is na island,/ Entire of itself;/ Every man is a piece of the continent,/ A part of the main.// If a clod be washed away by the sea,/ Europe is the less,/ As well as if a promontory were:/ As well as if a manor of thy friend’s/ Or of thine own were.//
Any man’s death diminishes me,/ Because I am involved in mankind. And therefore never send to know for whom the bell tolls;/ It tolls for thee. (John Donne)
[6] Stein, Ernildo. Órfãos de utopia. A melancolia da esquerda. 3. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2015.