Utopia – O dom de Thomas More para a Inglaterra (e para o mundo)
Adeus por enquanto. Que
você possa continuar a prosperar,
sempre criando, executando e completando
novos planos que trarão longa vida
para a comunidade, e imortalidade para você.
Adeus, doutíssimo e gentilíssimo More,
Ornamento supremo da sua
Inglaterra e deste seu mundo.Jerome de Busleyden, Último parágrafo de uma carta para Thomas More, De Mechlin, Flandres,1516.
Thomas More mal havia acabado de escrever o livro que seria conhecido como Utopia[1], quando seu bom amigo Desidério Erasmo passou a difundir a novidade, enviando cópias da primeira edição em latim[2] para os seus amigos mais próximos e pedindo resenhas ou cartas de recomendação. A resposta foi surpreendentemente favorável, e três ou quatro dessas cartas foram incluídas nas três primeiras edições. Na carta mencionada acima, o próspero Fleming Jerome de Busleyden, estadista e conselheiro da corte de Carlos I, rei da Espanha, não poupa palavras, ao parabenizar More pela ideia de que a abolição da propriedade privada melhoraria a situação de todas as sociedades ao tornar os homens menos ambiciosos e cruéis[3], e que o mundo estaria muito melhor se todos decidissem seguir imediatamente os exemplos expostos em Utopia. Ler a carta de Busleyden pode não nos convencer totalmente de que ele era realmente contra a propriedade privada como tal (afinal de contas, o que isso quer dizer?), mas ele certamente defendeu a ideia de que a ausência de propriedade privada em uma sociedade reforça a importância do “bem comum” e diminui os quatro vícios principais do homem, ou seja, a ambição, a luxúria, a inveja e a injustiça que causam “[…] disputas mentais, conflitos marciais e guerras piores do que as civis”. As primeiras impressões de Busleyden em relação a Utopia parecem bastante premonitórias quanto às interpretações futuras da sua intenção declarada de mudar a sociedade e melhorar a situação da humanidade. Este é o legado mais evidente de Utopia, cujos resultados de suas aplicações políticas mais práticas têm sido considerados extremamente controversos na atualidade.
Utopia foi escrito nos meses após o verão de 1515 e publicado em dezembro de 1516. Nos quinhentos anos desde seu lançamento, o livro percorreu o mundo em vários idiomas. Ele inspirou pessoas de todos os tipos e serviu, através dos mais diversos motivos e temas, como modelo ou diretriz para reformas sociais e revoluções políticas. Quem quer que tenha lido Utopia é tocado, não só pela primeira vez, mas a cada releitura, por uma sensação de urgência inquieta, à medida que a história dessa estranha sociedade se desdobra de tal maneira que ninguém pode dizer se é uma história real, uma invenção fantasiosa ou um mito edênico. Muitos terminam a leitura com a ideia de que se essa sociedade não existe realmente, certamente poderia servir como um modelo imaginário para construir uma nova sociedade de baixo para cima e de cima para baixo. De algum modo, tanto para o tempo quando o livro foi escrito quanto para o momento presente, a sociedade e cultura utopianas fazem algum sentido em muitos dos aspectos apresentados.
É evidente que Thomas More era um homem de imaginação, assim como um erudito por seus próprios méritos. Ele conhecia os fundamentos históricos que poderiam servir de base para escrever um livro como Utopia. Como um homem renascentista, possuía um conhecimento profundo do que era preciso saber naquela época, incluindo os filósofos clássicos, as novas formas de raciocínio científico e os temas de debate intelectual. De modo geral, havia uma motivação disseminada entre os pensadores renascentistas de que o homem devia ser moral e eticamente responsável por suas ações. Isso só poderia ser o resultado de uma preparação intuitiva contra os tempos terríveis que viriam, com cismas religiosas, aumento na desigualdade social, e as consequências políticas, econômicas e culturais das descobertas do Novo Mundo e da aurora do capitalismo. Em Utopia, a imaginação de More traça um padrão social que vai apenas um passo além das possibilidades sociais humanas que haviam sido anteriormente previstas por um ou outro filósofo ou santo[4]. Nele encontramos virtudes cristãs, ética estoica e epicurista, argumentos escolásticos e antiescolásticos, A República de Platão e a Política de Aristóteles. O livro ocasionalmente soa como um diálogo platônico, como se lembrasse o leitor de que More estava totalmente envolvido na conversação com seus contemporâneos a partir de uma posição que demonstra claramente que era tanto um erudito quanto um homem prático e político.
Utopia é sobre uma sociedade até então inimaginável, cheia de novidades nos costumes, estruturas econômicas e organização política, e com resoluções e comportamentos éticos e morais expostos claramente. Além disso, em nenhum momento o livro evoca tons milenaristas ou salvacionistas, e essa talvez tenha sido uma das suas virtudes mais apreciadas no seu próprio tempo. É de fato surpreendente que sentimentos religiosos sejam expostos como questão de crença pessoal e que ninguém seja forçado a acreditar em algo contra as próprias convicções[5]. Os próprios utopianos são retratados como um povo pio. A maioria deles supostamente acreditava em um Deus semelhante ao Deus cristão, enquanto alguns acreditavam em deuses da natureza, como o sol, a lua, ou os planetas, ou mesmo em espíritos animistas, já que acreditavam que animais têm alma (embora um pouco inferior a uma alma humana) e que os espíritos dos mortos vêm habitar entre os vivos. Suas igrejas não apresentam imagens de quaisquer divindades, de modo que todos possam participar de rituais juntos e realizar livremente suas orações e adorar seus respectivos deuses. Os sacerdotes formam uma categoria especial de cidadãos e têm o dever de instruir os jovens e executar vários tipos de rituais, com música, dança e todo tipo de orações e exortações. No todo, a cultura utopiana mantém um surpreendente nível de tolerância religiosa que era muito incomum naqueles dias e impiedosamente trágico nos anos futuros.
Utopia foi lido, analisado e interpretado tantas vezes, de maneiras diferentes e às vezes complementares e por um número tão grande de leitores e estudiosos que dificilmente valeria a pena tentar acrescentar algo digno de uma leitura desarmada. Ainda assim, como um leitor de Utopia da região do Atlântico Sul onde a ilha estaria situada, e com uma apreciação efusiva pelo que acredito que tenha sido uma inspiração intelectual para More, como veremos a seguir, acredito que posso lançar uma luz sulista diferente para reforçar a grandeza de Utopia e suas amplas repercussões e consequências ao encantar e desafiar o mundo. Utopia foi tão importante não só para reformadores sociais e revolucionários políticos no mundo inteiro, como também, acredito, especialmente para os ingleses como cultura e indivíduos, embora esteja ciente de que isso não seja mencionado na literatura e estudos sobre Utopia. De qualquer modo, este é meu sentimento enquanto me empenho em suspender minhas noções anteriores e mergulhar no presente da Inglaterra para sintonizar com sua história vibrante e o momento inaugural da sua modernidade.
Já foi sugerido que More escreveu Utopia como sua resposta ainda indecisa ao convite do Rei Henrique VIII para que se tornasse um dos seus conselheiros particulares. Aos 37 anos de idade, Thomas More já era um homem de letras consumado, reconhecido e admirado por outros eruditos renascentistas na Europa, assim como uma figura pública respeitada na Inglaterra. Ele poderia ascender mais na sua carreira, como de fato ocorreu, e poderia ir mais alto nos seus próprios tempos, como um homem de ideias, um filósofo em um tipo de república. O Rei Henrique VIII, 13 anos mais jovem que More, deve ter ficado impressionado com o ímpeto do livro e com algumas de suas ideias, que não estavam distantes demais do que poderia ser feito politicamente pelo próprio rei, se as circunstâncias houvessem permitido[6].
No final das contas, o que acredito ser o mais importante pressuposto comunicado pelo livro Utopia a Henrique VIII, ainda que subliminar e vago, um pressuposto posto em prática de um modo desfavorável ao destino final de More, foi que o mundo social humano – sociedade e cultura – não é uma entidade eterna, criada por Deus, natural e inamovível, mas antes uma construção humana, um artefato social, em suma, um empreendimento construído pelo homem. Consequentemente, se a sociedade é um produto humano, ela pode ser mudada pelo homem como ele achar melhor. Deus não se incomodaria se um homem tentasse intencionalmente mudar o que ele estivera fazendo inconscientemente o tempo todo, certamente para a contínua decepção divina. Pois a cidade de Deus não era mais uma Forma Platônica que as cidades dos homens tentavam copiar da melhor maneira possível, embora haja ecos dessa ideia agostiniana em Utopia. A cidade de Deus agora está ainda mais distante, e a cidade do homem não pode mais ser uma cópia imperfeita dela; é apenas um artefato a ser trabalhado independente da visão de Deus. Em outras palavras, o mundo estava efetivamente movendo-se de Agostinho para Aquino.
Como seu estilo e suas propostas não eram religiosos ou milenaristas, Utopia destacou-se como o primeiro modelo social secular a ser estudado e analisado, e talvez copiado pelo menos em alguns dos seus costumes sociais, econômicos e políticos. Costumes como o divórcio, a criação de crianças, a partilha do trabalho, a vida modesta e disciplina ética. Como Skinner e outros comentadores observaram, Utopia é um livro no estilo renascentista, mas traz algo diferente, um tanto incomum para as maneiras do período, algo tão único que só podia ser o resultado de uma imaginação que derivava inspiração de outras fontes culturais.
1 A composição de Utopia
More certamente escreveu Utopia movido por uma inspiração. Mas publicou-o primeiramente como uma declaração de intenção para sua futura vida pública. Ele pretendia que o livro fosse lido por seus amigos eruditos na Europa continental, para que pudessem saber o tipo de empreendimento que estava prestes a iniciar. O livro foi lançado entre seus compatriotas, para que pudessem fixar nas suas mentes o que o reino da Inglaterra, em constante renovação, estava prestes a se tornar, visto que ele seria governado por pessoas que pensavam claramente sobre o que uma sociedade deveria ser, caso existisse determinação, clareza de pensamento e fortuna. Deixem a Inglaterra pronta para ação, e caso o mundo precise, a Inglaterra estará ponta para assumir seu lugar de comando.
Quando Utopia foi gerado na mente de More, a Europa estava apenas começando a entrar em contato com as incríveis notícias do Novo Mundo e a perceber que não era o centro do universo ou da humanidade (já que a África e a Ásia eram consideradas bastidores da Europa). Subitamente havia novas culturas, novas políticas a serem confrontadas com aquelas conhecidas pela Europa durante sua longa história da civilização. Em casa, entidades políticas estavam vivenciando os primeiros distúrbios dos tempos modernos, causados pelas mudanças econômicas e sociais impostas às suas populações, especialmente deslocando dezenas de milhares do campo para vilas e cidades. Com a lei dos cercamentos de terras, a própria Londres e outras cidades da Inglaterra presenciavam enforcamentos diários por vadiagem e furto[7].
Em 1515, More foi designado por Henrique VIII a encontrar-se com um embaixador espanhol em Flandres para discutir uma importante questão comercial entre os dois países. Era um membro da guilda de comerciantes, e portanto possuía informações profissionais sobre as questões comerciais da época. Ele foi até Bruges, onde suas primeiras conversas com o embaixador espanhol aparentemente não chegaram a uma conclusão. Então decidiu fazer uma pausa, indo até a Antuérpia e visitando seu bom amigo Peter Giles, que também era amigo de Erasmo. Ali ele foi apresentado a um aventureiro português, se podemos usar essa expressão, que acabara de chegar de uma viagem de cinco anos até as terras recém-descobertas no Atlântico Sul e que anteriormente encantara Giles com algumas histórias incríveis sobre os diferentes lugares onde estivera e as estranhas e surpreendentes sociedades e políticas que encontrara e onde experimentara viver.
More conheceu Rafael Hitlodeu na praça da Igreja de Notre Dame e de lá foram até a casa onde estava hospedado e tiveram uma longa e agradável conversa durante o dia inteiro. A conversa fluiu extremamente bem, tanto em relação à narrativa de Hitlodeu sobre seus encontros políticos na Inglaterra com importantes dignitários, quanto em relação às impressionantes revelações que surgiram das memórias de Rafael sobre a Ilha de Utopia. A conversa de Hitlodeu com o Lorde Chanceler da Inglaterra, que ocorrera antes da sua viagem ao Atlântico Sul, trata de questões éticas e morais e das disposições legítimas de eruditos e homens de letras para assumir ou recusar posições políticas na administração do país. Tudo isso é relatado no Livro I de Utopia. A segunda parte da conversa com More, narrada no Livro II, é sobre as descrições de Utopia como uma sociedade e regime. Assim é que Thomas More explica os primeiros passos na sua conversa com Rafael Hitlodeu nas páginas introdutórias de Utopia.
Como podemos acreditar nas narrativas de Hitlodeu ou nos comentários de More, se aparentemente há notáveis dúvidas e informações enganosas logo do início? Por que usar nomes no idioma grego que representam o oposto do que deveriam significar? Por exemplo, o rio principal da ilha chama-se Anidro, isto é, “sem água”? Ou um país com o nome de “lugar nenhum”? Estaria More zombando de alguém, seria ele, já naquela época, um campeão da ironia inglesa, será que temia que suas intenções fossem incompreendidas pelos leitores, ou estaria seguindo a tradição latina de falar seriamente por meio do humor e de piadas? Bem, cabe a nós pensar sobre isso, porque tem a ver com as preocupações políticas e filosóficas imediatas de More quanto a publicar seu livro.
2 Quem é Rafael Hitlodeu?
Em primeiro lugar, Rafael Hitlodeu era uma pessoa real? Se fosse esse o caso, seria português? Seria um nobre ou apenas um marinheiro experiente? Em outras palavras, era um estadista comissionado ou um aventureiro independente? Como ele foi convidado a conversar com o Lorde Chanceler da Inglaterra? Durante sua estadia em Flandres, veio com um grupo de viajantes ou estava sozinho? Não há respostas claras a essas perguntas, mas servem para nos prevenir de que a incerteza da identidade de Rafael Hitlodeu é essencial para que More use as informações obtidas na ilha de Utopia sem precisar revelar qual era realmente essa sociedade e onde estava localizada[8].
Naturalmente, Hitlodeu não é um nome português; em vez disso, como foi interpretado por muitos comentadores, é uma palavra grega inventada que significa algo como “narrador de histórias absurdas”, um fabulista. Isso pode significar que More não quer que as pessoas achem que ele estava demasiadamente convencido pelo que quer que esse homem estivesse dizendo. Rafael, por sua vez, poderia ser português, mas não era um nome português comum naquela época, certamente não um nome nobre, e parece que ele poderia ter sido italiano ou até mesmo inglês, até onde podemos dizer. Ou talvez Hitlodeu seja um personagem composto, constituído por várias pessoas reais que haviam participado dessas viagens longas ao Novo Mundo.
Contudo, uma figura que certamente era italiana: Américo Vespúcio, o ilustre piloto florentino cujos livros Mundos Novos e Quatro Navegações, narrando suas supostas quatro viagens para o Novo Mundo, haviam sido amplamente divulgados. Vespúcio não era ele mesmo um grande viajante ou capitão de navio. Na verdade, trabalhava como comerciante e havia sido enviado pelo seu patrono, Lourenço Pierfrancesco de Médici, para administrar seu estabelecimento comercial em Cádiz, o importante porto espanhol de onde partiu a maioria das viagens ao Novo Mundo. Vespúcio chegou ali no ano em que Colombo navegou na sua primeira viagem, e alguns anos depois ele havia conquistado os favores da alta administração espanhola. Embora não esteja totalmente confirmado, Vespúcio aparentemente fez suas duas primeiras viagens ao Novo Mundo como comissões da Coroa Espanhola, a primeira sob o comando de Colombo. Na sua segunda viagem, já como um capitão de navio, ele explorou a porção continental do sul do Mar do Caribe e alcançou a costa da Guiana, a extremidade norte da América do Sul, e pode ter descido pelo sul até a desembocadura do rio Amazonas. Suas descrições etnográficas dessas duas viagens são extremamente vívidas e detalhadas. Nessas letras é que temos o primeiro vislumbre de sociedades que não têm propriedade privada, onde as pessoas andam nuas, onde há canibalismo e as mulheres são muito sensuais.
Pouco depois, em 1501, Vespúcio foi convocado a Lisboa pelo rei português Dom Manuel I, que anteriormente havia despachado uma grande frota de 13 navios para a Índia, sob a capitania de Pedro Álvares Cabral, com um desvio a oeste possivelmente planejado. De fato, depois de passar pelas ilhas do Cabo Verde, a frota de Cabral seguiu para o oeste e para o sul, e eventualmente alcançou a porção leste das terras recém-descobertas, no final de abril de 1500. E foi assim que o Brasil foi descoberto e reivindicado pelos portugueses como parte do tratado que Portugal e Espanha haviam assinado em 1494, com o reforço da bênção do Papa. Um ano depois, mesmo antes da frota de Cabral voltar da Índia, em maio de 1501, o Rei Manuel enviou Gonçalo Coelho em três barcos para mapear a costa recém-descoberta e talvez estabelecer alguma base para um empreendimento colonial. Vespúcio estava com a tripulação, e eventualmente assumiu o comando de um dos navios no meio da viagem. Ele relatou na carta ao seu patrono, Mundos Novos, que a viagem seguira tão ao sul a ponto de chegar à região agora chamada de Patagônia argentina.
Na segunda viagem, liderada pelo mesmo capitão Coelho (a quarta viagem de Vespúcio), começando em maio de 1503 e retornando a Lisboa em junho de 1504, Vespúcio comandou uma das seis embarcações. Depois de descobrir e nomear a Baía de Todos os Santos (atualmente a Bahia), o navio de Vespúcio navegou para o sul e reconheceu e nomeou vários acidentes geográficos, muitos dos quais podem ser vistos no mapa de Waldseemuller[9]. Em determinado momento, a expedição decidiu fazer uma parada mais longa, depois de reconhecer a Baía da Guanabara (Rio de Janeiro) e a Baía de Angra dos Reis. O capitão Gonçalo Coelho construiu um forte cerca de 160 quilômetros da Baía da Guanabara em um lugar ainda hoje conhecido como Cabo Frio, e iniciou o processo de trocar bens europeus pela madeira do Brasil com os nativos locais. Vespúcio diz em sua carta que alguns membros da tripulação chegaram a avançar 40 léguas terra adentro e estabeleceram boas relações comerciais com os nativos indígenas. Por volta de março de 1504, a expedição içou velas de volta para Portugal, mas um grupo de cerca de 24 marinheiros foi deixado no forte para estabelecer o que poderia ter sido a primeira colônia portuguesa na costa do Brasil, mas que foi abandonada alguns anos depois.
É interessante, se não pertinente, observar que a expedição de Gonçalo Coelho relatou que travaram escaramuças com navios franceses em locais diferentes da costa, o que significa que os franceses estavam a caminho para reivindicar alguma parte daquela terra, já que o rei Francisco I não reconhecia o tratado de 1494 entre Espanha e Portugal, nem tampouco a sanção do Papa Alexandre. Francisco I teria observado que ele nunca lera na Bíblia que Deus havia dividido o mundo recém-descoberto entre Espanha e Portugal, enquanto ele e seus descendentes patrocinavam seus corsários para que saqueassem a costa brasileira. Durante um período de aproximadamente 100 anos, os franceses esforçaram-se muito para tentar estabelecer colônias (pelo menos duas colônias completas duraram alguns anos) na costa brasileira, mas foram repetidamente atacados e rechaçados pelos portugueses. Contudo, por algum estranho motivo nunca deixaram de se encantar com as populações nativas do Brasil. Seus escritores e pintores, de Jean de Léry, até Montaigne, Rousseau, Voltaire, Debret, Taunay, chegando a Lévi-Strauss e os presidentes recentes da França, continuaram a prestar homenagens aos índios e a recebê-los em suas casas, universidades e palácios. Por outro lado, os ingleses nunca prestaram muita atenção nos nativos do subcontinente da América do Sul, exceto talvez, como veremos em breve, pelo próprio Thomas More. Consequentemente, pouco foi escrito por eruditos ingleses sobre culturas indígenas brasileiras. Apenas recentemente (2015) a Inglaterra, por meio da Queen Mary University de London, recebeu e patrocinou um cineasta brasileiro nativo para fazer um filme sobre a “aldeia” de Londres.
Voltemos a Rafael Hitlodeu[10]. Ele declarou que havia se voluntariado para ser um dos 24 marinheiros e homens de armas que foram ordenados a permanecer no forte e manter um posto comercial ativo por mais alguns anos. Considerando verdadeiro o relato que o personagem Hitlodeu de Utopia conta para More de que teria passado cinco anos no Atlântico sul, tendo sido levado para lá em um barco capitaneado por Vespúcio, aquela quarta viagem de 1503 era de fato a única ocasião possível. Rafael certamente passou parte do seu tempo observando e participando da cultura dos índios tupinambás, os nativos daquela região – como faria, muitos anos depois, o marinheiro alemão Hans Staden (década de 1540) e o huguenote francês Jean de Léry (fim da década de 1550).
Se fosse esse o caso, se pudéssemos afirmar que Rafael Hitlodeu realmente existiu, independente de ser português ou de outra nacionalidade, ou mesmo um personagem composto a partir de diferentes marinheiros, homens de armas empedernidos e aventureiros, poderíamos começar a apreciar a narrativa em volta de uma ilha no Atlântico Sul, perto do continente, como algo que tem a ver com a costa do Brasil e com os índios tupinambás que viviam na região naquela época. Então podemos pensar que poderia ter existido uma terra (uma ilha metafórica) afinal de contas, que poderiam ter existido pessoas de algum tipo que seriam descritas por marinheiros encalhados de qualquer nacionalidade. Estamos na área das primeiras influências das descobertas do novo mundo nas mentes dos europeus. Em algum momento tentaremos dar algum significado àquela conexão.
3 As motivações inspiradoras de More para escrever Utopia
Agora vamos tentar compreender os motivos inspiradores de More para escrever Utopia. Suponhamos que houve esse empolgante encontro com alguém que lhe contou uma história sobre um povo extraordinário que vivia uma forma de vida completamente diferente de qualquer coisa que More conhecesse por experiência ou leitura[11]. Em segundo lugar, vamos confiar que essa pessoa narrou uma história real sobre a sociedade e cultura tupinambás, quando viviam naquela parte do mundo, e que More pode ter sido surpreendido de modo agradável por algumas coisas que ouviu e impressionado de modo desfavorável por outras, como ele mesmo declarou no final do Livro II. Em terceiro lugar, digamos que More estivesse angustiado com o convite do Rei Henrique VIII para ser seu conselheiro particular. Em quarto lugar, foi então que More pode ter concebido a ideia de que havia algo inspirador naquela narrativa de Hitlodeu, e que talvez ele pudesse aproveitá-la. Eureca! Escrever um livro misturando o que era aquela sociedade, o que era a Inglaterra e como poderia ser uma outra sociedade nova. Assim, ele poderia obter duas coisas através de uma decisão: aumentar sua fama e decidir sua aceitação ao convite do rei.
Como era a Inglaterra em 1515 para gerar um homem que escreveria um livro tão fantástico, que teria tamanha influência no mundo, mas aparentemente uma influência menor no seu próprio país? Os historiadores sabem com mais precisão, então neste ponto simplesmente vou declarar minha perspectiva geral desses tempos para compreender a motivação para escrever Utopia.
Para começar, a Inglaterra era uma ilha conectada ao continente por uma ponte política chamada de Pale de Calais. Essa parte do território supostamente francês estava na posse dos ingleses há cerca de 160 anos, quando More escreveu Utopia, e continuaria a ser inglesa por mais uns quarenta anos até 1559. Então a Inglaterra não era uma ilha real no sentido político e existencial da palavra. A Inglaterra tinha relações políticas com o continente que não poderia ignorar facilmente. Além disso, estava conectada ao continente através do cristianismo católico, que, naquele momento, ainda era a fonte de sentimentos religiosos, filosofia, raciocínio científico nascente, erudição e política. O pensamento renascentista derivava tanto de ideias e argumentos católicos quanto da Grécia e Roma Clássicas. Os filósofos e pensadores políticos da Renascença estavam discutindo sobre pontos nascentes de discórdia entre o raciocínio escolástico e o novo estilo de (se podemos usar de uma certa ironia) raciocínio pós-escolástico, pré-científico, pré-matemático e pré-empiricamente orientado. Transcorreria outro século antes que isso pudesse amadurecer com as meditações de Descartes, as exposições políticas de Hobbes e a obra Philosophae Naturalis Principia Mathematica de Newton.
Não parece estranhamente presciente que a Ilha de Utopia seja descrita como originalmente conectada a um continente antes que os utopianos decidissem escavar um canal para tornar sua terra uma ilha livre do continente? Thomas More pode não ter sido um homem insular, mas certamente sentiu nos ossos o impulso do sentimento insular britânico.
Por mais que os pensadores e artistas pudessem perceber, e segundo a avaliação dos historiadores atuais, não há sinais, nenhuma premonição, nenhuma intuição artística no início do século dezesseis de que a cristandade estava prestes a se separar em dois pedaços originais de credos e lealdades que se tornariam cada vez mais dispersos com o passar do tempo. As discussões filosóficas entre os pensadores renascentistas não permitiam rompimentos religiosos. O início das atitudes de orientação capitalista estava causando o caos em certas regiões, incluindo a própria Inglaterra, e talvez em partes da Alemanha, mas ainda não havia motivos conscientes para divergência.
4 Um ponto para a existência de um povo pré-utopiano
A única novidade notória real naqueles tempos foi a descoberta do Novo Mundo, que era em si uma imensa novidade. As pessoas falavam sobre o que estava acontecendo com tais viagens marítimas incrivelmente longas e a lugares tão distantes ao redor da ponta da África, até a Índia e suas várias ilhas, rumo ao oeste até as ilhas do Caribe (Cuba havia sido invadida em 1510, e o México seria o próximo em 1517), e recentemente para o sudoeste até um subcontinente tropical aparentemente exuberante. As pessoas realmente podiam viver na zona equatorial, como testemunhado pelas cartas de Américo Vespúcio. Não só as casas reais de cada país estavam preocupadas com a expansão no poder e riqueza da Espanha e Portugal, e consequentemente interessadas em buscar quaisquer espólios que surgissem no seu caminho, como também as massas de camponeses deslocados, vagabundos nas cidades, e homens de armas desempregados estavam atentos a tudo que poderiam ouvir de quem esteve em tais viagens. Na sua falta de conhecimento podiam ter medo de ser enviados para cair de uma das quedas-d’água na borda dos oceanos ou encontrar seu destino diante de um dos portões do inferno, ou, ao contrário, podiam empolgar-se em passar um tempo em alguma terra distante, encontrando ouro e tornando-se rico o bastante para voltar para casa e viverem sossegados o resto de suas vidas.
No ano de 1515, as primeiras notícias da descoberta ainda eram recentes, e a Espanha e Portugal estavam cheios de restrições e medos de traição e espionagem por parte de pilotos e marinheiros, mas, ao mesmo tempo, jovens de toda parte continuavam seguindo para Lisboa e Cádiz, para Rouen e Bretanha, e um pouco depois para Flandres, Londres e Haia. Ingleses e possivelmente irlandeses que frequentavam Lisboa como comerciantes, marinheiros e estivadores poderiam já ter tomado parte em uma dessas primeiras viagens. No período em que More alega ter se encontrado com Rafael Hitlodeu, provavelmente havia alguém que pelo menos podia se expressar em inglês e contar alguns detalhes vívidos que certamente, no seu pensamento, interessariam à fantasia de algum rico e nobre patrício seu. Em outras palavras, estou especulando que Hitlodeu pode não ter sido português, e sim um grupo de marinheiros e soldados de diferentes países e tradições culturais e que isso foi necessário para que More fosse inspirado a conceber seu livro Utopia.
Já em 1503, Américo Vespúcio ganhara a notoriedade não apenas pela sua publicação de Mundos Novos, escrito como uma carta em 1501, quando estava voltando da primeira viagem sob a bandeira portuguesa. Alguns anos depois, uma nova publicação foi lançada na Itália com o título Lettere di Amerigo Vespucci delle isole nuovamente trovate in quattro suoi viaggi, também conhecida como A Carta Soderini, e, em 1507, foi publicada em latim como Quattuor Americi Vespuccii Navigationes, mais tarde conhecida como Quatro Cartas ou Quatro Navegações. Essas publicações, cujas narrativas são contestadas como falsificações por terem sido manipuladas nas impressões italianas, descrevem as quatro alegadas viagens de Vespúcio ao Novo Mundo. Elas logo foram traduzidas em várias linguagens e tornaram-se os livros mais amplamente lidos do início do século 16. Para várias descrições da vida em Utopia, é certo que, como veremos abaixo, More havia adquirido esses livros e consequentemente estava familiarizado com as descrições do mundo tropical, a costa abaulada da América do Sul, as tranquilas águas azuis nas baias e enseadas, contrastando com o verde luxuriante da alta floresta da paradisíaca Baia de Angra dos Reis[12], a algumas milhas ao sul da Baía da Guanabara ou Baía do Rio de Janeiro. More deve ter lido as quatro cartas de Vespúcio e captado seu espírito[13]. As cartas descrevem vários tipos de sociedades que são dirigidas por pessoas que andam nuas, não possuem propriedade privada, compartilham seus produtos, vivem em grandes casas comunitárias, são bravos e canibais. A primeira carta de Vespúcio relaciona-se com suas viagens no Mar do Caribe e contém muitas descrições de ilhas e portos.
Por volta de 1507, o geógrafo e cartógrafo alemão Martin Waldseemuller publicou seu grande mapa-múndi, onde aparece pela primeira vez o nome América no centro de uma tira de terra descendo rumo ao sul a partir do equador, onde agora podemos ver uma fina pré-figuração da América do Sul. Pontuando a costa leste, podemos ver claramente os nomes de vários acidentes geográficos, tais como baías, rios e bocas de rios, uma suposta serra, alguns nomes em português, alguns em latim, talvez um ou dois em algum tipo de idioma não-europeu, talvez uma linguagem indígena, talvez a linguagem tupinambá. Muito embora não haja registros de cópias do mapa de Waldseemuller circulando em Londres, não é improvável que More conhecesse esse mapa e talvez tenha visto uma cópia dele quando foi a Paris, Bruges ou Louvain. Afinal de contas, cerca de 1.000 cópias do mapa foram publicadas por Waldseemuller, de fato um grande número para aqueles anos[14]. More pode ter notado que o mapa mostra várias baías ao longo da costa, algumas das quais lembram a descrição da entrada para a Ilha de Utopia, tal como é representada na capa das primeiras edições do livro. Ele pode ter prestado especial atenção à forma da Baía dos Reis Magos (Baía de Reis, no mapa) formando uma meia-lua em semicírculo, com as pontas unindo-se na entrada, e as águas calmas oferecendo um porto perfeito para navios. Naturalmente, embora quase tudo que esteja escrito no mapa pareça estar na ordem correta, de norte a sul, pode haver alguns equívocos, e certamente nem todos os acidentes geográficos que eram conhecidos pelos portugueses naquela época estão inscritos no mapa.
O que Thomas More pensou, quando estava compondo Utopia? Provavelmente estava relendo as cartas de Vespúcio e recordando o mapa de Waldseemuller, e ponderando profundamente como misturar a história da sociedade e cultura tupinambá, como narrada por seu aventureiro, talvez erudito, talvez simplesmente perspicaz informante, com o que ele pensava que o mundo deveria ser, como à maneira de Platão, Aristóteles, Cícero, e talvez à maneira das ideias novas, progressivas e humanistas dos seus amigos renascentistas? O que mais More pensou? Como ele chegou a misturar de modo tão sutil e astuto essas duas influências, o tupinambá ideal e o europeu ideal, para criar um novo modelo de sociedade a partir do qual as pessoas poderiam pensar em novas formar de viver?
As pessoas podem achar que estou louco por pensar que a sociedade e cultura tupinambás podem ter sido a pré-figuração de cultura nativa do Novo Mundo de um modelo social e político para More. Pois a sociedade tupinambá, como passou a ser lentamente conhecida a partir de dúzias de relatos durante os séculos 16 e 17, dificilmente era um modelo de comportamento cavalheiresco e humanismo ético. De fato, independente do ensaio favorável de Michel de Montaigne sobre eles, publicado na década de 1570, a imagem do canibalismo que se espalhou pela Europa foi obtida principalmente a partir de descrições orais e escritas, e desenhos na madeira dos tupinambás. O próprio More provavelmente viu alguns dos primeiros desenhos publicados nas cartas de Vespúcio e em outros livros, e talvez panfletos de homens, mulheres e crianças indígenas vestidos em saiotes de penas e cocares, mastigando pedaços de membros humanos enquanto cabeças e troncos humanos cortados pendiam sobre um fogo ardente.
Essas imagens foram feitas para escandalizar as pessoas. Então, será que More sentiu isso ou já estava predisposto a relativizar o canibalismo, como faria Montaigne cinquenta anos depois? Talvez não relativizar o canibalismo como tal, mas pelo menos ignorá-lo, fingir que os índios descritos por Hitlodeu não praticavam esse ritual proibido por Deus. Ainda assim, More deixou indícios de que sabia sobre esse ritual, já que um antropólogo experiente pode detectar na maneira como os “sacerdotes” em Utopia são descritos, enquanto executam seus rituais religiosos, com as roupas “decoradas com as penas de diferentes pássaros”[15] enquanto a população os segue na oração, em cânticos, tocando instrumentos e reverenciando a cada sinal dado[16].
5 A combinação dos tupinambás com os ingleses e utopianos
Os índios tupinambás da Costa Brasileira[17] são, nos relatos antropológicos, um exemplo clássico de uma sociedade baseada em uma agricultura de corte e queima, vilas politicamente autônomas, chefia não-autocrática, religião animista, xamanismo, e um nível intenso de disputas internas entre agrupamentos de vilas rivais. Nesse sentido, os tupinambás eram similares à maioria das tribos das Américas que não haviam alçado os níveis de sociedade de chefatura e estado, incluindo no topo dessa escala de poder os Incas e os Astecas. A intensidade dos seus conflitos internos era o suposto motivo dado pelos tupinambás para a prática da forma institucional de canibalismo, um ritual para capturar, matar e comer um prisioneiro para incorporar seu valor. O prisioneiro devia ser preferivelmente um tupinambá, porque seguiria fielmente os passos ritualizados para seu martírio[18]. Enquanto permanecia na aldeia, a futura vítima do sacrifício não era amarrada ou usada como escravo, ou talvez apenas um tipo de trabalho de serviço de pretendente que jovens maridos fazem por seus sogros, pois ele tinha liberdade para se mover e participar nos negócios cotidianos da aldeia. Sua estadia incluía os serviços de uma jovem para tomar conta das suas necessidades enquanto ele estivesse vivo, esperando pelo momento do seu sacrifício ritual[19]. Montaigne compreendeu a complexidade social e psicológica desse tipo de canibalismo e, enquanto o comparava com o que seus contemporâneos estavam fazendo uns aos outros em termos de crueldade e tortura, pensou que o costume dos tupinambás talvez não fosse o pior, afinal de contas. More provavelmente ouviu de Hitlodeu uma versão similar do canibalismo tupinambá e, embora tenha evitado mencioná-lo, pode ter fixado na sua memória vários dos seus aspectos, como a forma de escravização leve e temporária que acarretava, o desempenho do sacerdote (xamã), a multidão cantando em uníssono, etc., quando ele abordou a questão da religião em Utopia.
Além do canibalismo, há muitas coisas a serem ditas sobre a cultura e política tupinambás que podem ter inspirado a imaginação de More. Aqui estão alguns exemplos que poderiam ser usados para comparar os discursos de More com os temas equivalentes em Utopia.
- Vida social – Famílias nucleares, famílias poligínicas, e um conjunto de grupos familiares vivendo em uma única casa comunitária onde muitas coisas eram compartilhadas. Essas casas têm uma forma ovalada, e podem abrigar até 100 pessoas ou mais, são estruturadas com colunas de madeira, cobertas com folhas especiais e têm duas portas de entrada, uma voltada para o pátio da aldeia e outra diretamente oposta na parte traseira. Cada família nuclear tem seu próprio ponto separado na casa comunitária. Pode haver entre quatro e oito casas em uma aldeia, e a aldeia é abandonada a cada oito ou dez anos devido ao acúmulo de insetos. O casamento vem cedo para as meninas (13 anos) e meninos (cerca de 16 anos), e o casal vive matrilocalmente, onde o marido presta serviço de pretendente ao sogro. O divórcio era aceito facilmente. As crianças eram criadas de modo livre, sem castigos, e a sua vontade era respeitada pelos adultos; eram amamentadas até os três ou seis anos de idade pelas mães ou, se necessário, por qualquer fêmea na casa; enquanto cresciam, comiam junto ao fogo com a família, mas não recebiam prioridade na alimentação; elas eram cuidadas em grupos pelas mulheres da cada comunitária. Todos andavam nus na vida cotidiana.
- Economia – Os campos são preparados pelo trabalho coletivo da casa comunitária, mas podem ser cultivados e colhidos por meio de uma divisão vaga de famílias nucleares. A cada dois ou três anos, dependendo da qualidade do solo (que não é muito fértil), os homens com machados de pedra derrubam parte das árvores da floresta, que são deixadas para secar e serem queimadas. Uma grande variedade de verduras, legumes e frutas, além de algodão e tabaco, é cultivada e colhida por homens e mulheres, mas as mulheres passam mais tempo do que os homens nessas tarefas. A coleta de produtos da floresta, do mar ou de rios é realizada pelos dois sexos; em certos períodos do ano há uma pescaria coletiva e comunitária. Não há animais domesticados, apenas animais de estimação obtidos na mata. A caça é altamente valorizada pela carne e pelo prestígio viril. Não há armazenamento de alimentos, exceto pela farinha de mandioca que dura alguns dias, e sobras ocasionais de carne defumada. O trabalho diário não é disciplinado pelo tempo utilizado, mas pelas necessidades do momento. Há bastante tempo para lazer.
- Orientação de trabalho – Praticamente todas as tarefas culturais podem ser realizadas por qualquer sexo, pois a informação e o conhecimento são compartilhados em todas as vezes que uma família, uma casa comunitária, o conselho ou a vila inteira encontram-se. Os homens caçam e pescam, fazem arcos e flechas, porretes de guerra e canoas, constroem casas, derrubam árvores e lutam nas batalhas. As mulheres cozinham, cuidam das crianças, fazem a colheita, trazem lenha, fabricam itens de cerâmica e redes de dormir, fermentam sua bebida semelhante à cerveja, e ocasionalmente vão para a guerra para ajudar seus maridos.
- Política – O principal líder político de uma vila é necessariamente um guerreiro aclamado e um homem de mentalidade diplomática. O cargo não é necessariamente hereditário. Os deveres do líder são liderar na guerra e resolver disputas internas. Ele e os líderes das casas comunitárias devem arengar e adular os membros da aldeia na madrugada. Cada casa comunitária tem um líder; os líderes das quatro a oito casas comunitárias na vila formam um conselho onde outros homens podem participar; o líder principal é aclamado pelo conselho, mas pode ser mudado de acordo com as preferências cambiantes de seus membros. Em algumas situações de conflitos mais intensos, um líder geral pode surgir para um agrupamento de aldeias aliadas, mas ele não comanda em tempos normais. O conselho ajuda o líder a estabelecer julgamentos e sanções contra transgressores.
- Guerra – Os tupinambás são um povo guerreiro, respeitado por outras tribos não-tupinambás. A guerra geralmente é travada contra outras vilas tupinambás para obter prisioneiros para sacrifício. Às vezes agrupamentos de aldeias juntam forças contra um inimigo comum. A expansão territorial foi garantida por volta do final do século quinze, e os povos não-tupinambás haviam sido expulsos das melhores áreas costeiras. Os tupinambás lutavam com arcos e flechas a longa distância, e porretes de guerra em combate corpo a corpo.
- Religião – Os tupinambás acreditam em espíritos que controlam animais, plantas, rios, montanhas, chuva, trovões, etc., sem hierarquia entre si. Também acreditam na vida pós-morte e na mistura de espíritos animistas com os espíritos dos mortos e vivos, especialmente em rituais xamânicos. Os sentimentos e rituais religiosos são moldados pelos xamãs, que podem trabalhar como curandeiros e videntes. Os xamãs (pajé, na linguagem tupinambá) vestem mantos de penas e manuseiam chocalhos para dar o ritmo às suas danças. Flautas e conchas também são usadas nas cerimônias. Ocasionalmente um vidente xamã pode adquirir primazia sobre os outros e ganhar o respeito e favores de várias aldeias, até mesmo aldeias rivais. Então ele é chamado um karaíba[20], e pode iniciar movimentos milenaristas ou revivalistas que convencem dezenas de milhares de tupinambás de diferentes agrupamentos de aldeias para subitamente abandonarem suas vidas regulares e partirem em longas jornadas para o oeste em busca de um lugar mítico chamado de “terra sem males”.
Agora, recordemos como More caracteriza alguns costumes utopianos.
- Vida social – Cada uma das famílias vive em casas de família individuais, mas eles trocam de casas a cada dez anos. As casas só têm duas portas de entrada e são feitas de argamassa e pedra, assim como os edifícios públicos. As refeições são realizadas preferencialmente em locais comunitários, com as crianças servindo os adultos e comendo as sobras. Meninos e meninas são educados coletivamente. O casamento ocorre quando a mulher tem dezoito anos e o homem, vinte e dois. O futuro casal é mostrado nu um para o outro. O divórcio é aceitável sob certas circunstâncias, como o adultério. As pessoas vivem de modo modesto e se vestem em tecidos simples. Todos são encorajados a ler e a participar de palestras na madrugada.
- Economia – Todos participam de trabalhos agrícolas em períodos e intervalos de dois anos. O solo não é fértil, então os utopianos trabalham duro para melhorar a sua qualidade. Eles só precisam de seis horas para realizar suas tarefas diárias. O trabalho artesanal pode ser hereditário, mas é também vocacional. Produtos da labuta, sejam eles agrícolas ou artesanais, são colocados em mercados e compartilhados por todos, de acordo com as necessidades individuais. A caça é abominada e relegada aos escravos[21]. Os animais domésticos são similares aos europeus.
- Sociedade – Utopia é uma sociedade organizada e planejada. As vilas são divididas em seções e cada uma delas tem um certo número de pessoas para funcionar adequadamente. As pessoas podem ser deslocadas para aliviar a tensão populacional ou preencher a demanda de povoamento. A propriedade privada não é encorajada, tampouco o acúmulo ou o luxo.
- Política – Utopia é uma república que elege seus líderes de baixo para cima, em intervalos de vários anos – um conjunto de líderes familiares, líderes distritais, líderes municipais, vereador, líder principal. Os líderes podem ser trocados de acordo com as circunstâncias.
- Guerra – Os utopianos dizem não gostar da guerra, mas certamente sabem como guerrear para expandir seu território, quando necessário, para ajudar vizinhos, e principalmente para obter escravos. Eles compram escravos de outros países e escravizam seu próprio povo por crimes. Escravos não são bens, seus filhos nascem livres e podem ser libertados à vontade. Utopianos usam vários estratagemas na guerra, incluindo causar discórdia entre seus inimigos, comprando seus inimigos para matar os próprios líderes, contratar mercenários para as batalhas difíceis, etc. As mulheres podem unir-se aos homens na guerra. Na batalha eles usam com grande precisão arcos e flechas para combate de longa distância e machados de guerra, não espadas, para combate corpo a corpo.
- Religião – Os utopianos toleram vários tipos de credos, desde deuses antropomórficos politeístas e espíritos da natureza até um único Deus semelhante ao cristão. Esse último é o preferido pela maioria dos utopianos. Os sacerdotes são muito reverenciados por todos. Podem ser celibatários ou casados; os celibatários são considerados “mais santos”. Eles vestem túnicas ornamentadas por penas, chocalhos de cabaças, e usam flautas nos seus rituais. As igrejas são grandes e escuras, pra tornar as orações mais solenes; não são permitidas imagens divinas nas igrejas. A caridade, o bom comportamento e as boas ações são esperadas dos vivos para alcançar a felicidade na vida pós-morte.
6 Perambulando para fora de Utopia
Agora é possível ler ou reler Utopia tendo essas duas tabelas comparativas em mente para verificar se More montou ou não um novo modelo de sociedade, misturando o que ele ouviu sobre a sociedade tupinambá com o que ele e seus amigos renascentistas poderiam ter pensado sobre o assunto, se tivessem a oportunidade de ser homens públicos de poder. Com certeza, em tecnologia, urbanidade, comportamento moral, as duas cidades estão fora de sintonia uma da outra. Esse é de fato o motivo principal de ninguém ter feito essa comparação, mesmo que as pistas tenham sido evidenciadas na introdução ao texto. Além disso, pelo menos três coisas destacam-se como sendo tão diferentes que o pensamento da comparação pareceria absurdo.
Uma delas é que os tupinambás eram intensamente belicosos e, naturalmente, canibais. Seria necessário um Montaigne para comparar de um modo que não fosse desfavorável aquela instituição com a instituição europeia amplamente aceita da tortura, que aparentemente estava ganhando sofisticação no fim dos anos 1500. Tanto os utopianos quanto os tupinambás gostavam de transformar prisioneiros de guerra em escravos, suas mulheres tinham permissão de ir aos campos de batalha, e ambos usavam no combate corpo a corpo “machados de guerra, de fio afiado e grande peso” de descrição bastante similar.
Em segundo lugar, os tupinambás não estavam interessados em discutir filosofia ou visões de mundo depois de cuidar dos seus campos ou caçar[22]. Naturalmente, eles não tinham qualquer forma de escrita. Em vez disso, entregavam-se a farras onde fumavam tabaco, dançavam, embebedavam-se com cerveja de mandioca de baixo teor alcoólico, e de modo geral metiam-se em brigas e causavam o caos a noite toda. O que parece bastante familiar nos tempos presentes. Durante esses momentos, eles poderiam ser tomados por pressentimentos e visões de que a vida era mais do que cuidar dos filhos, caçar e guerrear. Com seus xamãs e karaíbas podiam vislumbrar um mundo diferente para viver, e não precisavam esperar até à morte para ir ao paraíso. Isso pode ser considerado uma forma de filosofia, se acrescentar os frequentes momentos comunitários de compartilhar conhecimento empírico e paracientífico das coisas do mundo. Curiosamente, contudo, More declara que os utopianos gostam de assistir palestras nas primeiras horas da manhã, assim como os chefes tupinambás gostam de falar com seus chefes para lembrar o passado, levar boas vidas, não brigarem uns com os outros e serem valentes na guerra.
Em terceiro lugar, os tupinambás praticamente nunca se relacionam com outros povos por meio de partilha pacífica e permanente[23]. Então, tudo que sabiam de outras culturas e modos de vida foi adquirido pela observação em uma curta escala de tempo e interesse. As centenas de outras tribos étnicas que viviam no continente da América do Sul eram, em primeiro lugar, muito similares aos tupinambás nos seus modos de produção e socialização. As sociedades indígenas organizadas em sistemas políticos no nível de chefatura estavam bem longe na região dos Andes, assim como as sociedades com sistemas de nível de estado que se desenvolveram em civilizações plenas.
Então, os tupinambás eram um tipo de cultura insular no meio de um arquipélago de ilhas culturais similares. De fato, pelo que pude confirmar, os tupinambás estavam em um tipo de beco sem saída sociopolítico do qual não conseguiam sair. Eles tinham os números demográficos, os recursos econômicos, o poder político, a influência individual para se reorganizarem em um nível político de chefatura, trazendo assim paz e um nível superior de reciprocidade entre agrupamentos regionais de aldeias. Seus karaíbas repetidamente tentaram incutir neles a ideia de que havia um intenso poder mítico e religioso que poderia melhorar suas vidas. Talvez eles pudessem ter-se organizado de uma maneira teocrática, como costuma acontecer com as sociedades no nível de chefatura. Mas tudo que os karaíbas conseguiram realizar foram convocações para fugas no estilo milenarista para a terra de lugar nenhum. Foi nesse estado que os europeus encontraram os tupinambás, e nada de bom, pelo menos para os tupinambás, resultou desse malfadado encontro.
7 O dom de More para a Inglaterra (e para o mundo)
Vários milhões de pessoas no mundo todo, que pelo menos concluíram o ensino médio, conhecem Utopia e têm alguma noção do seu tema. Em muitos países o livro é leitura obrigatória, e em vários deles está inscrito em um panteão de clássicos. Alguns pensadores consideram-no um dos dez livros mais influentes dos tempos modernos. More foi indicado para o panteão dos socialistas e sua estátua foi erguida nos primeiros dias da União Soviética. Praticamente todos conhecem o significado do adjetivo utópico, e muitos pensam que, sem algum tipo de sentimento utópico ou esperança, nossas sociedades não têm muito pelo que viver, ou pelo menos é difícil suportar seu presente e destino provável. Esse é o dom principal e perene que Utopia presenteou ao mundo: a humanidade sempre pode esperar tornar o mundo um pouco melhor.
Mas Utopia não foi escrito especificamente para o mundo, e certamente não se esperava que fosse tão duradouro ou tão louvado. Talvez a maioria das pessoas que falam sobre Utopia não tenha lido o livro inteiro. Em um sentido brincalhão, More provavelmente pensou que estava escrevendo o livro para que seus amigos pudessem usá-lo, talvez quisesse inspirá-los inspirando-os a escrever suas próprias versões diferentes. Bem, seus amigos ficaram tão impressionados com o livro que não tiveram palavras para melhorar suas investigações. Talvez More tenha pensado que poderia influenciar o rei com sua obra e, infelizmente, a história seguiu um caminho diferente. É algo a se pensar, mas não há espaço no momento para abordar essa questão.
Contudo, considerados todos os aspectos, Utopia é na minha opinião um livro feito de maneira amorosa para o povo inglês e para a política inglesa. Utopia pretende servir como uma diretriz para as políticas que o rei deveria abraçar para tornar a Inglaterra grandiosa. Por exemplo, políticas que reforçariam a tolerância religiosa, o divórcio, o tratamento equânime das classes inferiores, salários justos para os trabalhadores, auxílio aos necessitados, a ética do trabalho duro, autonomia e responsabilidade individuais pelos próprios atos, leis justas e, em pouco número, participação política popular, e talvez ousadia na postura e tomada de decisões do indivíduo. A maioria desses traços de uma sociedade semelhante à utopiana não foi realizada na época de More, tampouco na nossa própria época. Mas eles foram iniciados em Utopia.
Utopia não exalta o indivíduo como tal, como fariam algumas importantes variedades do Protestantismo, como o Calvinismo, ao enfatizar que cada pessoa deve ler a Bíblia por conta própria, para sentir a presença de Deus sem a mediação de um clero. De muitas maneiras Utopia favorece o coletivo, como por exemplo, nos locais de alimentação comunitários, a convocação coletiva ao trabalho e a distribuição de bens nos mercados. O indivíduo deve ser subordinado ao coletivo. Foi isso que pensadores socialistas viram, durante vários anos, particularmente desde a Revolução Francesa, como a grandeza de Utopia. E, de fato, More tinha ótimas razões sociais na sua época para projetar uma sociedade que cuidaria dos pobres e desamparados.
Contudo, Utopia é uma convocação para que o indivíduo como ser político e pensante aja por conta própria, seja decidido, sabendo que o mundo é um artefato criado pelo homem que pode ser moldado e modificado de acordo com a vontade humana. Imagino que os pensadores socialistas também viam Utopia desta maneira. Mas afirmo que os amigos de More, e particularmente o patrono de More, o próprio Rei Henrique VIII, pensavam da mesma maneira, à medida que o livro era lido. De fato, essa era a principal mensagem do livro, sutil e indireta, mas percebida: a sociedade pode ser mudada pela vontade dos homens. O próprio rei da Inglaterra não perdeu tempo em fazer com que as coisas acontecessem como ele desejava, como faria sua filha Elizabeth no seu tempo e o povo inglês como uma unidade sociopolítica na sua época.
Utopia foi publicado no momento em que a Inglaterra estava preparando-se para se libertar do catolicismo, feudalismo, escolasticismo, em suma, do continente europeu, para se estabelecer como um novo modo de existência, um estilo próprio de pensamento, uma nova configuração de conhecimento e poder para si mesma e para o mundo. Repetindo mais uma vez, foi premonitório que More tenha relatado que o primeiro rei de Utopia, o próprio Utopos, tenha ordenado que seu povo cavasse um canal para separar a ilha do continente. More provavelmente não pretendia que esse canal fosse definitivo e total simbolicamente. Ele certamente voltou atrás, quando seu rei decidiu romper com o Vaticano, ser contra essa decisão fez com que ele pagasse o preço de sua vida. A maioria dos estudiosos imagina que More foi contra a decisão do rei de criar seu próprio tipo de cristianismo, por ser um crente devotado do catolicismo ou um súdito leal do Papado. Mesmo que fosse assim, só era parte do motivo. O que More não esperava que acontecesse naquele período era um afastamento da Europa que poderia resultar em um tipo de isolamento que não seria favorável à ampliação do poder e da glória da sua amada ilha. Suspeito que todos os seus amigos continentais renascentistas sabiam o motivo da resoluta recusa de More de aceitar o rompimento com o catolicismo. É realmente notável que quase um século depois seu sobrinho-bisneto, John Donne, escreveria um poema proclamando que homem algum era uma ilha.
Nesse sentido, contudo, More estava enganado. O autoisolamento da Inglaterra das cadeias da corporativa, dogmática e feudal Igreja Católica liberou-a para o surgimento do indivíduo como homem de ação, tornando viáveis as mudanças nas normas políticas e culturais e permitindo o desenvolvimento político do estado no Reino Unido. Isso tornou o RU autônomo, de mente livre e científica, de grande poder e, em última instância, imperialista. Durante quase trezentos anos a Inglaterra cresceu e expandiu-se como a principal nação moderna em todos os sentidos, exceto talvez na sua forma de governo.
O tempo passou. A perda do seu império e a grande chegada de imigrantes das antigas colônias mudou bastante a poderosa e orgulhosa Inglaterra. Por mais magnífica que possa ser como nação, a Inglaterra agora se agita em desconforto com suas novas dificuldades, que são, em sua maioria, sociais e culturais, e bastante difíceis de resolver. Por mais dividida que ela possa parecer, metade da sua população pensa que está na hora de se voltar para dentro; e a outra metade quer mais ação externa.
Neste dezembro terão decorridos precisamente quinhentos anos desde a publicação de Utopia. Já é hora de More ser reconsiderado sob uma nova perspectiva pelos ingleses, que deveriam rapidamente vencer suas frustrações com o continentalismo e a natureza inconsistente de ser uma ilha conectada com outras ilhas semelhantes por uma longa tradição de conquista mútua, mas também de convivialidade pouco apreciada e modos integradores de pensamento.
A roda do tempo girou e chegou a um marco similar ao de quinhentos anos atrás, embora talvez não tenha a mesma intensidade dramática. Poderíamos pensar que naquele mesmo momento havia chegado uma nova luz, brilhando para os vivos. A roda certamente continuará movendo-se. E seria sábio olhar para o passado e tomar cuidado para não cometer os mesmos erros novamente. Pensar novas possibilidades no espírito com que More elaborou Utopia pode ser um bom recomeço.
[1] Para este artigo usei a versão revisada de 2002 de Utopia, traduzida, editada e comentada por George M. Logan e Robert M. Adams, Cambridge: Cambridge University Press. Também encontrei informações detalhadas sobre o estudo de Utopia ao ler o artigo de Quentin Skinner, “Sir Thomas More’s Utopia and the language of Renaissance humanism”, publicado como o capítulo 6 do livro de Skinner, “Visions of Politics”, Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Foi de grande valia a palestra, no Gresham College, do Dr. Richard Serjeantson, em 22 de novembro de 2016, no Barbican Arts Centre, Londres. Finalmente, gostaria de agradecer a Rosie Hunter e aos professores Jerry Brotton e Paul Heritage pela sua leitura cuidadosa e afetuosa das versões anteriores deste artigo.
[2] Houve três edições em latim imediatamente após à primeira edição de 1516. A primeira edição em inglês só foi publicada em 1561.
[3] Não devemos esquecer que quase duzentos e cinquenta anos depois, a mesmíssima ideia seria proposta por Jean-Jacques Rousseau no seu ensaio “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, de 1754.
[4] Em uma das cartas de recomendação de Utopia, Beato Renano observa para Willibald Pirckheimer, conselheiro do imperador Maximiliano e da cidade de Nuremberg, que Utopia vai além de Platão, Aristóteles e do Pandectas de Justiniano. Outras cartas são igualmente elogiosas em relação à profundidade de pensamento, estilo literário e inteligência de More.
[5] Naturalmente, é quanto a esse ponto que a maioria dos críticos questiona More, já que posteriormente demonstrou grande intolerância religiosa, a ponto de condenar os dissidentes do catolicismo.
[6] Sim, quero deixar claro para aqueles obcecados com provas factuais que estou ciente de que não existem evidências concretas de que Henrique VIII leu Utopia, mas não posso deixar de achar que teria sido impossível que ele não houvesse lido.
[7] De acordo com um relato pelo cronista inglês do século 16, Raphael Holinshed, citado pelo estudo de Logan e Adams sobre Utopia, nota de rodapé 19, p. 15, sobre 72.000 “ladrões” que foram enforcados apenas no reino de Henrique VIII.
[8] Esta era uma questão sobre a qual os amigos de More estavam bastante curiosos, como podemos ver na troca de cartas de recomendação no livro. É perceptível que havia mais gente envolvida na conversa da Antuérpia além de Hitlodeu, More e seu amigo Giles. Certamente havia pelo menos um companheiro de Hitlodeu e um dos servos de More. Ver a carta de Peter Giles para Jerome de Busleyden na obra de Logan e Adams, Utopia, p. 121.
[9] Para uma descrição compacta das primeiras viagens ao Brasil, ver Bueno, Eduardo. Náufragos, Traficantes e Degredados: as primeiras expedições ao Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 33-54.
[10] Peter Giles, que estava presente na famosa conversação, insistiu em suas cartas anexadas a Utopia que Rafael Hitlodeu era um personagem real, mas que havia morrido pouco depois da publicação de Utopia. Contudo, em outra carta é dito que More relatou que Hitlodeu estava bem e vivendo em Portugal.
[11] Como ele conhecia bem Heródoto e Tácito, e possivelmente outras descrições dos povos bárbaros, é possível que More não considerasse a sociedade Tupinambá tão exótica assim.
[12] Vespúcio escreveu na sua terceira carta ao seu patrono Lorenzo Pierfrancesco de Médici: “Se o paraíso terrestre está em alguma parte desta terra, não pode estar muito longe da costa que visitamos”. Ver The Letters of Amerigo Vespucci, p. 48.
[13] Se há uma evidência definitiva de que More leu as cartas de Vespúcio, ela vem de uma estranha informação errada fornecida por Vespúcio sobre os Índios que ele viu. Vespúcio declara que os índios não caçam, algo praticamente impossível de ser verdade. More, por sua vez, declara que os utopianos abominavam a caça.
[14] Herbert, John. “The map that named America”, uma publicação da Biblioteca do Congresso dos EUA celebrando a compra da última cópia do mapa de Waldseemuller. Disponível em: https://www.loc.gov/loc/lcib/0309/maps.html. Acesso em: 3 dez. 2016.
[15] Logan e Adams, Utopia, p. 102: “As roupas não têm bordados de ouro nem joias raras costuradas nelas, mas são decoradas com as penas de diferentes pássaros trançadas de modo tão hábil que o valor do artesanato ultrapassa muito o custo dos mais ricos materiais.”
[16] De fato, é mais provável que os marinheiros que permaneceram em Cabo Frio, incluindo o próprio Hitlodeu, tenham estado presentes nos rituais canibais. O próprio Vespúcio descreve o canibalismo nas suas cartas (primeira e terceira), ou seja, de índios do Mar do Caribe e índios da América do Sul. Na sua terceira carta, há uma cena sangrenta onde uma multidão de índios agarra um marinheiro que havia descido do barco, mata-o com um golpe de porrete, assa e devora seu corpo. Ver The Letters of Amerigo Vespucci and Other Documents Illustrative of his Career. Originalmente publicado pela Hakluyt Society. Nova York, Burt Franklin Publisher, sem data.
[17] Os tupinambás foram descritos por muitos cronistas e missionários nos séculos 16 e 17. Um bom resumo dessa literatura pode ser encontrada na seção “Tupinambá”, escrita por Alfred Metraux, Handbook of South American Indians, Washington: Smithsonian Institute, 1947.
[18] Dizia-se que o prisioneiro desonraria sua família e sua aldeia de nascimento, se fugisse do cativeiro para evitar o sacrifício.
[19] Relações sexuais consensuais faziam parte do serviço. A donzela oferecida eventualmente engravidaria, e mais tarde poderia ser eventualmente sacrificada e devorada, já que nessa questão a linha de parentesco era patrilinear.
[20] É interessante notar que, na sua primeira carta, que é principalmente sobre o Mar do Caribe, embora as descrições dos povos indígenas assemelhem-se aos tupinambás da costa brasileira, Vespúcio disse que os europeus eram chamados de “Carabi”, um termo que significa “homens de grande sabedoria”. The letters of Amerigo Vespucci, p. 17. Karaíba é o nome que os tupinambás usavam para seus grandes xamãs, assim como para os portugueses. Atualmente os povos indígenas que falam a língua tupi usam palavras cognatas similares.
[21]Como observado acima, é bastante curioso que Vespúcio escreva na sua terceira carta que os índios não eram caçadores porque não tinham a coragem de encarar as bestas ferozes da região, e agora More diz que os utopianos abominam a caça.
[22] Da maneira como Karl Marx pondera sobre sua sociedade ideal na conclusão do seu livro Ideologia Alemã.
[23] O antropólogo francês Pierre Clastres considera os tupinambás como o epítome das sociedades “primitivas” baseadas na guerra para manter sua integridade e que rejeitam a possibilidade de desenvolver o estado. Clastres, Pierre. Archaeology of Violence. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2010.