A vida antes do tempo: mitos xinguanos sobre as origens de um mundo dividido
Trabalho apresentado no seminário Mitos Cosmogônicos, no CBPF, Rio de Janeiro, agosto de 2013.
Eu gostaria de apresentar aqui uma reflexão que se desdobra em dois sentidos: num primeiro momento vou apresentar uma espécie de síntese sobre a mitologia xinguana que trata das origens do mundo, mostrando que essa ideia de origem é bastante problemática para pensar a cosmologia xinguana – e ameríndia de modo geral, poderia arriscar dizer – e tentando fazer algumas considerações sobre qual o mundo que essa mitologia revela, traça, constitui: mundo em que a ideia de transformação é muito mais importante do que a ideia de criação ou origem. Na verdade, ao escrever esta fala fui percebendo que o título que eu propus – a vida antes do tempo – não faz muito sentido para falar do cosmos xinguano: ainda que muitos mitos tematizem a instauração de um regime temporal específico, bem como de certas ordens sociológicas, espaciais etc., a mitologia xinguana não descreve, ou não se preocupa em delimitar, uma etapa propriamente caótica da existência. É preciso então qualificar melhor qual o processo que essa mitologia descreve – qual a passagem que essas “origens” descrevem.
Num segundo momento, queria tomar como objeto o próprio mito enquanto modo de conhecimento, tal como experimentado pelos xinguanos. Meu interesse aqui é comentar o fato de que justamente uma síntese como a que eu tentei (ou logo desisti de tentar) fazer no início desta fala não me parece fazer nenhum sentido para os Aweti. Meu ponto de partida para esta reflexão é o que percebo como um contraste – desde minha própria ideia do que deveria ser um conhecimento cosmológico – entre o modo pelo qual os Aweti usam seus mitos para entender a configuração do cosmos e seu desinteresse por constituir esse conhecimento na forma de um discurso coerente e cronológico. Acho que essa falsa contradição permite pensar o mito como um regime de conhecimento específico, cuja especificidade está intrinsecamente ligada à natureza do mundo que ele descreve, ou melhor, cria, e no qual ele é criado. Gostaria de terminar esta reflexão, assim, mostrando que o mundo de que os mitos falam é determinante e determinado pelo modo pelo qual os mitos falam do mundo, ou, mais precisamente, o modo pelo qual os índios (no caso, os Aweti) entendem seus mitos enquanto forma de conhecimento. Como se verá a seguir, a noção que os Aweti usam para designar isso que chamamos de mitos – “coisas de orientar” – indica que essas narrativas não são apenas histórias sobre o mundo, mas histórias que fazem o mundo de que falam, e apontam para um regime de tempo não cíclico, mas de constante recriação, sempre na “origem”.
*
Num ensaio famoso em que fala sobre a passagem do mito ao logos na Grécia antiga, Vernant comenta como a nascente filosofia pré-socrática trata, e de modo muito parecido, do mesmo problema tematizado pela mitologia precedente – a questão da passagem do caos à ordem. Acho que a ideia de que narrativas “míticas” no mundo todo tratam da passagem do caos à ordem é um lugar comum aos estudiosos de mitologia e entre eles podemos incluir, me parece, Lévi-Strauss e seu interesse pela passagem “do contínuo ao discreto” na mitologia ameríndia. Como vou comentar a seguir, acho que vale a pena especificar mais essa passagem descrita nos mitos, porque não necessariamente eles postulam um estado de “caos”, de indiferenciação. No entanto, me interessa mais discutir uma segunda observação de Vernant, que diz respeito a uma mudança no modo de formulação do problema dessa passagem na filosofia pré-socrática. O problema da origem da ordem ressurge como um problema da essência ou princípio de constituição do mundo, unidade a partir da qual a multiplicidade do mundo poderá ser explicada. Penso que essa diferença é tão ou mais relevante do que a passagem de uma imagem do cosmos habitado por deuses e demônios àquela de um mundo constituído de forças despersonalizadas, dotado de uma Natureza como a gente a entende. Essa busca da essência, do princípio, é algo que, a meu ver, distancia radicalmente a forma de pensamento engendrada naquele momento do pensamento ameríndio ou, em todo caso, do pensamento xinguano tal como pude apreendê-lo através da minha convivência com os Aweti.
Os Aweti são um povo falante de língua tupi da região conhecida na literatura etnológica como Alto Xingu, que compreende a área dos formadores do rio Xingu, localizada hoje dentro do Parque Indígena do Xingu, no nordeste do Mato Grosso. Desde que descritos pela primeira vez, em fins do século XIX, os povos que habitam a região, falantes de línguas aruaque, caribe, tupi e da língua isolada trumai, foram reconhecidos como integrantes de um sistema multiétnico marcado pelo compartilhamento de padrões estéticos, éticos e de organização social, além de intensas redes de trocas cerimoniais e “econômicas”. A arqueologia revelou mais recentemente que essa configuração data, em suas linhas gerais, pelo menos de meados do século XVIII d.C., sendo a ocupação caribe e aruaque bastante anterior a isso (séc. X d.C.). A confusão, por vezes presente nessas reflexões, entre modos ‘aweti’ e ‘xinguanos’ de pensar não é inconsciente: ainda que seja virtualmente impossível garantir que as análises baseadas na pesquisa com os Aweti sejam válidas para todos os demais xinguanos, o fato de que aqueles (Aweti) se pensam como legítimos representantes desse coletivo me obriga a entender suas formas de pensar como perfeitamente xinguanas, sem deixar de notar que revelam, necessariamente, uma perspectiva aweti sobre o alto Xingu – todo conhecimento é relativo, uma lição que extraio da convivência com eles. Essas considerações não são tão importantes neste contexto; contudo, na medida em que não estou preocupada em generalizar um modo xinguano de pensar os mitos mas procuro, antes, pensar, a partir do modo aweti de entender seus mitos, algumas possibilidades para o entendimento dos mitos ameríndios em geral. Mas acredito que os fatos etnográficos que tomo como base para estas considerações são bastante difundidos entre os povos indígenas das terras baixas sul-americanas.
Sol e Lua reinventam o mundo
Não consigo me lembrar de ter vivido uma situação mais estranha, desconcertante e desconfortável do que quando cheguei à aldeia Aweti tentando começar ali minha pesquisa de campo. Sem falar sua língua, sem ter ideia do que significava nada do que era feito ou dito pelos Aweti, sem ter habilidade para ajudar em nenhum trabalho que eles realizavam, e cansada de passar os dias sentada num duro banquinho de madeira anotando palavras aprendidas com qualquer pessoa que tivesse paciência para conversar alguns minutos comigo, eu precisava desesperadamente inventar alguma coisa para fazer. Comecei a sondar sobre seus mitos, ou melhor, qualquer história que eles quisessem me contar sobre seu passado recente ou longínquo. Descobri também que minha educação nesse sentido não poderia ser realizada por qualquer um. A comunidade tem seus narradores reconhecidos e assim me indicaram em que casa eu poderia encontrar um. O único vivendo da aldeia, a bem dizer, naquele momento. E lá fui eu, acertar os termos de um contrato de instrução mítica que durou diversos anos ao longo minha pesquisa. Pouco tempo depois outro reconhecido narrador aweti se mudou para aquela mesma aldeia, tornando-se também meu instrutor. A essa altura, os Aweti já estavam convencidos de que meu trabalho entre eles era aprender mitos – a ponto de, por vezes, se eu estivesse fazendo outra coisa, alguém me criticar por não estar ‘trabalhando’. Creio que essa convicção diz bastante sobre o que eles pensam sobre os mitos, mas deixo esse tema para comentar a seguir. Também retorno à frente ao imenso problema político que gerei contratando narradores de famílias distintas, e por vezes opositoras, como instrutores, mas quero antes falar das histórias que escutei. A começar pela mais pesada e cara de todas (pesada e cara: me custou vários quilos de miçanga e uma bicicleta), a saga dos irmãos Sol e Lua. Dessa longa e bela história, que demorou muitos dias para ser contada, resumo aqui apenas a genealogia que ela traça e alguns de seus aspectos gerais:
Jatobá era o chefe na aldeia das árvores e tinha duas filhas casadas com Morcego. Dessa união nasce Mawutsini, que virá a se tornar um grande demiurgo. Apesar de se tratar do filho de um homem-árvore com um homem-morcego, Mawutsini é o primeiro personagem identificado aos humanos atuais. A história de sua infância explica, por exemplo, porque nós humanos demoramos tanto para aprender a caminhar quando pequenos: Mawutsini, titubeante para reconhecer seu pai caminhando até ele algum tempo após seu nascimento, determinou nosso penoso destino, enquanto os filhotes de aves e outros animais aprendem a caminhar com muito mais facilidade. Já grande, Mawutsini é um dia surpreendido por Jaguar roubando palha para fazer uma corda para seu arco. Para não ser devorado pelo chefe dos felinos e seu bando, Mawutsini promete que lhe dará suas filhas em casamento.
Ele então confecciona cinco mulheres de pau, cuidando para, entre erros e acertos, dar-lhes dentes belos e duráveis, cabelos negros e lisos, um canal vaginal e um útero, além dos adornos típicos da mulher xinguana: joelheiras de algodão, cinto de palha de buriti, adorno pubiano de entrecasca de árvore, colares de caramujo e contas, e pinturas faciais. Assim como Mawutsini, essas mulheres de pau são identificadas à humanidade de hoje: perfeitamente paramentadas, são reconhecidas em toda parte, ao longo de sua jornada em direção ao noivo jaguar, como “chefas”, kujã morekwat, e se apenas uma delas consegue chegar ao destino final, é justamente porque as demais aceitam, no caminho, convites amorosos de animais diversos, encontros interespecíficos perigosos, que sempre terminarão na morte ou isolamento definitivo da jovem. Aquela que chega, Tanumakalu, também se revela humana de outro modo: ela se identifica a uma humanidade primitiva perseguida e predada regularmente pelo povo de Jaguar. Assim que descobre tal prática, Tanumakalu obriga o marido a mudar de hábitos.
Dessa gente antiga atacada pelos felinos sabemos muito pouco. Viviam em torno dos cupinzeiros do cerrado, porque estes emitiam luz e o sol ainda não existia. Eram também verdadeiros chefes, porque tinham seu corpo tatuado como os chefes de hoje em dia (ou melhor, do passado recente, porque a tatuagem masculina, até onde sei, não existe mais no Alto Xingu), o que talvez indique uma continuidade entre esses humanos e os chefes xinguanos atuais, que constituem uma espécie de classe especial. De todo modo, não há, na sequência da história, menção a seu destino. Os povos atuais do Xingu, e outros povos hoje existentes, se originam de maneira complemente diversa.
Por um mal-entendido relativo ao comportamento esperado entre uma jovem esposa e sua sogra, a mulher de pau Tanumakalu acaba sendo morta pela mãe do Jaguar. Nesse momento já estava grávida de gêmeos, então retirados por Mawutsini do ventre de sua filha morta e enterrada na aldeia dos felinos. Sol e Lua, filhos de Jaguar e Tanumakalu, são a terceira geração de seres identificados à humanidade atual, criados das principais características da vida humana hoje. Na infância, a relação conflituosa que mantém com o avô, que os cria, dá origem a muitos problemas de família vividos pela gente de hoje, inclusive a avareza com a comida e o feitiço utilizado como vingança. Crescem ignorando a identidade e o destino de sua mãe e quando descobrem a verdade tentam desenterrá-la e dar-lhe vida novamente, mas é tarde, e então realizam o primeiro quarup, importante ritual funerário xinguano. Esse processo marca, para utilizarmos uma terminologia emprestada de Lévi-Strauss, a “origem da vida breve”, isto é, a origem da mortalidade humana: a partir de então os mortos serão velados, suas almas ritualmente enviadas ao céu, onde devem permanecer para sempre. Sol e Lua inventam também a variedade das línguas xinguanas existentes entoando em cada uma delas o lamento fúnebre para sua mãe Tanumakalu. Esse quarup dá origem aos mais diversos aspectos da vida atual, como a presença dos peixes hoje encontráveis na região do Alto Xingu, que eram naquele tempo gente-peixe que subiram o Xingu para participar do ritual. Após a festa, os gêmeos decidem se vingar do povo de jaguar, responsável pela morte de Tanumakalu, e confeccionam uma série de flechas, soprando-as com tabaco para que se transformem em humanos. Após a matança dos felinos – responsável pela considerável e benfazeja redução de seu número no mundo atual – essa gente-flecha recebe de Sol artefatos e armas distintivos dos povos que existem hoje: algumas versões da história listam as especialidades produtivas que durante muito tempo, caracterizavam os povos xinguanos (cerâmicas produzidas pelos povos aruaque, colares de caramujo produzidos pelos povos caribe etc.); a versão que ouvi mais recorrentemente, no entanto, enfatizava apenas a má escolha dos índios em oposição aos brancos: já que os primeiros se mostraram incapazes de carregar a espingarda oferecida pelo demiurgo, acabaram ficando apenas com o arco, o feitiço e a borduna, enquanto os brancos se tornaram aquilo que são hoje, donos das armas de fogo. Transformação da história que deixa bem claro o lugar que essa diferença ocupa na vida e no pensamento dos xinguanos hoje.
Sol e Lua são os criadores de um sem-número de características da vida e da paisagem atual que não teríamos tempo aqui de enumerar: os rios xinguanos e as fases da Lua, ambos resultantes de uma mesma sequência de ações míticas; a luz do sol, criada a partir da confecção de um cocar de penas amarelas e vermelhas, num episódio cuja relação temporal com os demais não posso precisar; o ciúme entre irmãos e o xamanismo, o surgimento do primeiro gerando a criação do segundo; as araras vermelhas; diversos rituais xinguanos etc. Os gêmeos são ainda personagens de histórias protagonizadas por outros seres de sua época, todos fundadores, por meios variados, do nosso modo de viver atual. Essa história, de fato, não termina, vai se rarefazendo em episódios menos claramente conectados à sequência inicial.
Além de esclarecer que este resumo deixa de lado detalhes cruciais, bem como todo o sabor e humor contidos nessa história, é preciso dizer que ele reproduz apenas, e na melhor das hipóteses, uma versão do mito, ou antes, uma condensação bastante selvagem de algumas versões que escutei. Muitas variações dessa história já foram registradas na literatura, mas podemos estar certos de que existe uma infinidade de variantes desconhecidas. A cada evento narrativo, segundo o sabor do momento, a plateia e as intenções do narrador, um detalhe será alterado, um episódio agregado, omitido ou esquecido. Esse é um caráter fundamental do conhecimento mítico, de todo conhecimento transmitido oralmente, sem dúvida, e tem implicações importantes que merecem ser comentadas. Antes, contudo, devo fazer algumas observações sobre a história de Mawutsini, as mulheres de pau e os gêmeos demiurgos.
A história começa “no meio”, como se vê: o mundo sempre existiu e, no momento em que passamos a saber dele, é habitado por gentes-árvores, gentes-pássaro, gentes-onça etc., além de uma proto-humanidade composta exclusivamente, pareceria, por tipos ideais (chefes), que no entanto vivem de uma forma sub-humana, em torno de cupinzeiros, e nada podem contra seus principais predadores. Em todo caso, o mundo é já nesse momento habitado por seres muito antigos (motsat), que estavam aí desde sempre, num tempo em que tudo ou quase tudo era gente, como me dizia insistentemente um dos meus instrutores, vivendo em aldeias, casando e festejando como hoje em dia. Também tinham problemas relacionais em tudo similares aos vividos agora: infidelidade, briga entre cônjuges, tensão entre sogros e genros.
O que é que se origina nesse mito “de origem”, portanto? Se tudo já existia, o que os demiurgos produzem é uma reconfiguração da ordem, sua ação é antes transformativa que propriamente criativa. A cosmogonia xinguana é na verdade uma transformação.
As origens, no plural
A saga de Sol e Lua foi realmente a sequência mítica mais densa (e cara) que ouvi entre os Aweti, mas existe uma série virtualmente infinita de mitos conhecidos por eles e sempre recontados em situações variadas – aos filhos e netos, antes de dormir, a um vizinho que passa de visita, aos homens que se reúnem no centro da aldeia no fim da tarde etc. Muitas dessas histórias são quase anedotas, narradas para fazer graça, outras são lembradas por ocasião de algum acontecimento na aldeia – certa noite em que soubemos que um homem fora picado por uma cobra numa aldeia vizinha, por exemplo, o chefe da casa em que eu vivia aproveitou para contar a seus netos a história “da origem” das cobras, que é na verdade uma narrativa sobre sua drástica redução populacional, num tempo em que eram muito mais numerosas do que hoje. Alguns desses mitos relatam acontecimentos correlatos aos narrados na mitologia dos gêmeos demiurgos, ainda que sem a preocupação de estabelecer alguma conexão entre eles. É o caso, por exemplo, da história de uma grande inundação provocada por uma chuva ininterrupta que assolou aquela terra em tempos imemoriais. Os povos que ali habitavam foram obrigados a se refugiar em canoas, que ataram ao topo de árvores muito altas para que não fossem arrastadas pela correnteza. Mas o cipó que amarrava algumas dessas canoas arrebentou, levando-as apara longe. Daí se originaram os povos que vivem hoje em ouras regiões do Xingu, como os Kayapó e Juruna, me disseram os Aweti. O problema da “vida breve” ou da mortalidade humana, também é tematizado em algumas narrativas que nada têm a ver com a história deTanumakalu. Uma delas conta de um caldeirão com água fervente, no qual Mawautsini teria aconselhado que se banhassem os índios. Com medo, estes recusaram a oferta, perdendo assim a chance de se tornarem imortais: se houvessem confiado no demiurgo, hoje trocaríamos de pele periodicamente como as cobras, voltando a ser jovens a cada troca. Outro mito fala de uma reunião entre mortos e vivos numa grande festa, tentativa malograda que, não fosse a ansiedade de certos participantes da festa, teria permitido o periódico trânsito entre os mundos terrestre, dos vivos, e celeste, das almas penadas.
Se perguntasse a um Aweti qual a história de nossa origem, kajypy, estou quase segura de que retornaria ao episódio de Mawutsini, talvez deixando de lado a sequência sobre seu nascimento e passando diretamente ao encontro com o Jaguar, a caminhada de Tanumakalu e suas irmãs, o nascimento de Sol e Lua, o primeiro quarup etc. Mas se essa história relata certa transfiguração do mundo, muitas outras, menores, relatam processos similares comparáveis não apenas em seus efeitos, mas sobretudo em sua lógica. Grande parte dessa mitologia que estou evocando retrata um percurso, para usarmos mais uma vez o vocabulário de Lévi-Strauss em sua análise da mitologia ameríndia, de passagem “do contínuo ao discreto” através da criação de separações ou intervalos de diversos níveis num universo antes indiferenciado. A origem das diferenças entre povos, por exemplo, é tematizada no episódio da criação das línguas xinguanas, na distribuição de artefatos às gentes-flecha e no evento da grande inundação. Esse processo é análogo àqueles que tratam da diferenciação entre espécies animais, tematizada em certos mitos, mas também ao surgimento de espécies animais a partir da transformação definitiva de um humano-animal em espécie puramente animal: assim os poucos homens-jaguar que restam na terra após a chacina promovida por Sol e Lua para vingar a morte de sua mãe acabam se transformando nos jaguares de hoje em dia, assim como a mulher-ema que conta a história verdadeira da morte de Tanumakalu aos gêmeos se transforma em ema, e assim por diante. O malogro da festa das almas na terra, por sua vez, determina a definitiva separação entre vivos e mortos (que na Amazônia são um tipo de não humanos como outros, espíritos e animais, por exemplo). Outros mitos não explicam o surgimento de diferenças entre seres, mas a criação de intervalos e periodismos no tempo: as fases da lua, a alternância luz/escuridão (criada quando Sol confecciona seu cocar de penas, a origem de variações na dieta associadas às estações do ano etc.
Eduardo Viveiros de Castro fez uma importante revisão da análise de Lévi-Strauss sobre a passagem do contínuo ao discreto na mitologia ameríndia, chamando atenção para o fato de que esse estado primitivo de que fala o mito, no que diz respeito à criação de diferenças entre homens e animais, deve ser visto melhor como um estado de diferenciação interna a cada ser: assim os homens-jaguar do mito são homens com qualidade de jaguar, ou jaguares com qualidades humanas, que então se comunicavam perfeitamente com homens-morcego, homens-árvore, homens-homens etc. Os mitos relatam, ressalta Viveiros de Castro, não a passagem de um estado de indiferença absoluta a uma posterior diferenciação, mas a passagem de um estado em que os seres são internamente diferenciados, múltiplos, homens e animais ao mesmo tempo, a um estado de diferenças externas, entre homens e animais. Mais do que isso, essa passagem de que o mito trata nunca é pensada como uma transformação irreversível. Os processos de adoecimento de morte, para os povos amazônicos, são sempre entendidos como efeito de uma transformação em não humano, um processo de tornar-se parente de outros, animais ou espíritos, e passar a viver entre eles. A especiação, como se vê, “resolve” a questão da multiplicidade interna dos seres apenas de modo muito precário. É muito comum na Amazônia que um animal se revele, de repente, ao caçador humano, como humano – revelando que não se tornou exclusivamente, ou definitivamente animal, como poderíamos pensar interpretando erroneamente o mito. O caçador, por sua vez, se responde ao animal como um igual, é porque guarda em si essa mesma multiplicidade interna que caracteriza o outro: pode perfeitamente ser seduzido a viver entre os animais como um igual, o que significaria, para seus parentes humanos, sua morte.
Essa observação crucial de Viveiros de Castro a respeito do regime temporal associado ao pensamento mítico – uma temporalidade que não é cíclica, porque não postula a repetição obrigatória dos eventos, mas tampouco é linear, porque não postula um sentido único e determinado para a mudança – esclarece a centralidade da noção de transformação no pensamento ameríndio: não só o mundo jamais foi criado, porque já estava lá, como está continuamente sujeito a novas transformações, invertendo o sentido das transformações “originárias”. Nesse sentido, um mito que fala da especiação é também um mito de antiespeciação, um mito que narra a criação de diferenças ao mesmo tempo em que adverte para a possibilidade de reinstauração da comunicação perdida entre os seres, um contato que é ao mesmo tempo potente e perigoso para os humanos.
Os mitos que falam da instauração de periodicidades espaço-temporais poderiam ser submetidos à mesma análise? A ideia de uma passagem das diferenças intensivas às diferenças extensivas faz sentido nesse caso? Creio que, em todo caso, seria preciso pensar não em termos de uma passagem do contínuo ao discreto, mas de uma transformação entre estados de diferença. Ainda que o mito xinguano fale na criação da luz solar em um mundo de eternas trevas, é preciso lembrar que a vida daquela gente antiga, os ancestrais de Mawutsini, era já plenamente social: havia aldeia, roça, casamento, festa, traição dos cônjuges, crianças aprendendo a andar. Assim como no caso da origem das espécies animais e da diferenciação entre os povos, é como se o mundo já estivesse dividido, mas talvez diferentemente, ou não. Nunca houve, a rigor, uma vida “antes do tempo”, como sugiro no título desta fala. É preciso então que o narrador lembre de vez em quando o ouvinte, ao contar da confecção do cocar de penas de Sol, por exemplo: não havia luz naquela época, só havia escuridão.
Os mitos parecem repetir, em suma, em níveis distintos, um processo de criação de diferenças, que não se organiza, no entanto, como a narrativa de uma evolução linear dos eventos, uma passagem definitiva do caos à ordem. A possibilidade de uma transformação “regressiva” do processo de diferenciação entre espécies para um estado de comunicação interespecífica revela que existe sempre um vetor de inversão da ordem que o mito instaura. Do mesmo modo, a criação dos intervalos temporais num mundo já previamente dividido deixa claro que uma ordem se instaura sempre como alteração de outra ordem dada, (ainda que essa fosse uma ordem “no escuro”). Mas talvez não esteja tão determinado, no caso da recriação dos ciclos temporais, em que sentido essa alteração precisa ou pode se dar.
Ainda que certas sequências míticas possam e devam ser contadas seguindo uma ordem bem definida – como se verá, saber contar um mito implica conhecer e reproduzir perfeitamente essa sequência, entre outras coisas – isso não significa que os Aweti estejam muito preocupados em organizar cronologicamente os fatos narrados pelos mitos – determinando qual a relação entre a criação das diferentes línguas xinguanas e a distribuição de armas por Sol às gentes de flecha, por exemplo. Se pressionássemos um Aweti a responder a essa pergunta ele certamente teria uma resposta – sobretudo se fosse um xamã ou um homem mais velho, pois uma mulher ou rapaz jovem provavelmente responderiam: kooooó, “não tenho ideia”. Mas importa saber que a questão não parece se colocar como um problema para eles. É claro que minha intenção aqui não é ressuscitar a ideia de que o pensamento indígena, e o pensamento mítico em particular, seja desprovido de lógica. Mas talvez haja outras lógicas operando ali, com problemas muito distintos daqueles colocados pelo pensamento ocidental. O modo pelo qual os Aweti entendem e ‘usam’ seus mitos me parece indicar certa imagem do conhecimento que não pode ser desatrelada da imagem do mundo revelada pelos mitos. Mais do que isso, a conceituação aweti do que seja um mito nos sugere que essas histórias não apenas relatam a transitoriedade do mundo, elas também a criam.
O que é um mito
Pode parecer uma obviedade dizer que para os Aweti os mitos dizem coisas sobre aspectos importantes, mas talvez misteriosos, do mundo em que vivemos, mas não creio que isso seja tão evidente. Para mim ao menos foi surpreendente perceber que, quando perguntados sobre a geografia do mundo celeste em que se encontra a aldeia dos mortos ou sobre o modo de vida dos mortos, os Aweti sempre recorriam à história, muito conhecida por todos, do homem que acompanhou seu amigo morto ao céu e voltou para contar como era. “Eu nunca fui lá, não sei como é”, me disse uma vez um xamã, quando lhe perguntei sobre o assunto, e logo começou a contar o mito (que eu já havia escutado por outras fontes, em versões sempre um pouco diferentes, enfatizando um ou outro aspecto da história). Noutra ocasião, quando me falava sobre as diversas camadas do mundo celeste, esse mesmo xamã completou: quem contou isso foi um grupo de xamãs, que subiram aos céus para pegar tabaco dos espíritos. É uma história – tomowkap.
O termo aweti que traduzo por mito, de fato, indica essa função do conhecimento mítico: a palavra tomowkap, que os Aweti costumam traduzir por ‘história’, é formada pela raiz do verbo ‘orientar’ – mowka – acrescida de sufixo instrumentalizador – de modo que a tradução literal do termo poderia ser “coisa de orientar”. Os Aweti designam tomowkap tanto histórias vividas por antepassados desconhecidos e transmitidas através das gerações, quanto a narrativa de algo que aconteceu há dez minutos atrás. Chamo aqui de ‘mito’ o gênero discursivo indicado pela expressão que poderia ser traduzida literalmente como ‘história dos antigos’, mote mo’aza etomowkap.
A noção de –mowkatu, ‘orientação’, pode se referir ao discurso diário que um chefe deve fazer aos aldeãos no centro da aldeia, ao pai aconselhando seu filho, ou a uma pessoa contando à outra o que aconteceu na pescaria. Esse caráter de instrução que os Aweti associam a seus mitos condiz com o efeito moralista que podem ter algumas histórias, quando nos lembram que terríveis transtornos cosmológicos decorreram, em tempos imemoriais, do mau comportamento entre parentes, por exemplo. O fato de que os mitos de alguma maneira fundamentam as condições atuais do mundo e as regras de conduta a serem seguidas também transparece no comentário feito por um homem, certa vez, a respeito de explicações que eu recebia de seu pai sobre restrições alimentares associadas à colheita do pequi e do milho. Talvez notando em mim alguma expressão de incredulidade, o filho fez questão de notar: ‘Isso não é mentira, é história!’, temo’eme’ym, tomowkap!
O termo tomowkap sugere que as histórias não são apenas relatos do que já passou, mas também um guia para ações futuras. Um dos narradores aweti que se ocupavam de minha instrução me perguntou um dia, apontando objetos muito variados à nossa volta, que mito eu gostaria de escutar: “isso [o batente da porta, por exemplo] é gente, tem história”, “isso [uma mosca] é gente, tem história”, mo’at, tomowkap oupeju. Um ente que “tem história” é um ente que foi personagem de uma história, na qual aparece sob a forma humana; a história explica uma transformação – como a mosca assumiu seu aspecto mosca, por exemplo – como resultado de determinada atitude do protagonista ou daqueles com quem se relaciona. Dizer que algo tem história, portanto, implica o reconhecimento de personitude e, logo, da potência agentiva, dos seus protagonistas.
Evidentemente, nem tudo que se passa a alguém e que pode ser contado como história, implica na instauração de uma nova ordem do mundo. Mas a diferença entre histórias “cosmogônicas” e outras histórias quaisquer parece dizer respeito mais à variação de grau da potência que à qualidade intrínseca dos eventos, uma distinção que obviamente não é desprezível, mas tampouco absoluta. O alto nível de codificação formal das histórias dos antigos talvez corresponda à importância reconhecida aos eventos narrados e logo à potência dos personagens, aquilo que faz com que essas histórias valham a pena ser contadas, geração após geração.
Mas se uma história do tempo dos avós, uma história recente (minwamut, em oposição ao tempo dos antigos), não determina modos de ser da mesma forma que o faz uma história do tempo dos demiurgos, ela ainda guarda uma mensagem, um aviso: isso pode se passar outra vez. Um exemplo são as inúmeras histórias de homens atacados por jaguares nos caminhos em torno da aldeia. Tomowkapwan ekozoko, “você vai virar história” é a frase típica de um personagem a outro no encerramento das narrativas dos antigos: proferida tal sentença, o protagonista de um evento mítico se torna um modelo para “o povo do futuro”, amyñeza. Essa afirmação parece rememorar aos ouvintes de mitos que todo agente de um evento extraordinário pode “virar história”, ou “ficar pra história”, tornar-se origem e protótipo de uma nova configuração de mundo.
Os grandes narradores de mitos aweti com quem convivi estavam tão impregnados do estilo narrativo requerido pelas histórias dos antigos que o utilizavam em seus relatos mais cotidianos. O uso da partícula ‘diz que’, ti, obrigatório na narrativa mítica, por exemplo, podia acabar se tornando um cacoete nas conversas mundanas e virar motivo de troça entre ouvintes menos bondosos. Apesar da graça gerada por tais ocorrências, que podem ser percebidas como falhas do narrador, essa permeabilidade entre formas discursivas cria o efeito de conferir uma qualidade ‘mítica’ a relatos diversos, nos levando a pressentir essa potência transformativa que caracteriza as histórias dos antigos também nas histórias ‘recentes’ e atuais. A presença constante da expressão “diz que” nas narrativas míticas, de todo modo, assinala um caráter fundamental e definidor não só do mito, mas de qualquer história, antiga ou atual: a narração remete sempre à experiência de um sujeito, que pode ser ou não o ‘dono da história’, quando se trata do relato de um fato recente, mas é necessariamente indefinido no caso das narrativas míticas. O importante é que, através do uso do termo que sublinha a externalidade da experiência sobre a qual se fala, o narrador de mitos atesta sua distância do fato narrado: “diz que foi assim, mas nunca poderemos ter certeza… Conhecer o mundo através do mito, em suma, é sempre conhecer o conhecimento de alguém. Isso se torna mais claro quando vemos que apenas na medida em que reproduz melhor ou pior um outro discurso é que ele é julgado como um mito “verdadeiro”, “bom” (ikatu) ou falso, mal contado (mo’em).
O domínio do corpo mitológico implica o domínio de um estilo narrativo, que por sua vez implica o domínio da maior quantidade possível de detalhes. Personagens devem ser descritos em toda a sua ornamentação corporal; seus nomes devem ser lembrados; os termos onomatopeicos que descrevem movimentos como caminhar, correr, chegar a um lugar, banhar-se alegremente, comer, beber, soltar um bafo ou entrar numa casa, devem ser reproduzidos; os tons de voz de cada personagem imitados; os cantos xamânicos entoados pelos personagens, cantados; a ordem dos eventos precisamente respeitada; mitos diversos que participam de uma mesma saga devem ser contados segundo uma sequência específica. Quando, como acontece com certa frequência, os ouvintes de uma narrativa a caracterizam como ‘mentirosa’ ou ‘falsa’ se referem, quase sempre, à execução incompleta ou inapropriada de seus elementos formais, ainda que por vezes eu tenha presenciado pessoas questionando a existência de toda uma sequência de ações numa narrativa mítica, de um evento em particular, ou mesmo de um mito inteiro.
O termo aweti que traduzo por ‘mentira’ mo’em, pode designar tanto um discurso deliberadamente enganador, como também um engano não intencional ou uma representação mal executada de qualquer coisa, como um padrão de pintura corporal reproduzido sem excelência ou um mito contado pela metade. A ‘mentira’, nesse caso, diz respeito à falta de correspondência entre um modelo e sua reprodução, mas tanto no caso dos mitos quanto dos desenhos corporais, a correspondência se dá entre um desenho realizado no passado e o desenho realizado hoje, ou entre a narrativa contada pelos antepassados e a narrativa ouvida hoje, e não entre fatos da história ‘real’ e a narrativa que os rememora, ou o caminho das formigas ‘reais’ e uma realização do padrão de pintura corporal que tem esse nome.
Quando os Aweti julgam que um mito é verdadeiro, não estão fazendo um juízo sobre aquilo de que o mito fala, mas sobre a excelência do narrador em reproduzir essas características formais, que devem ter sido aprendidas num evento de narração similar ao atual. O que está em jogo nessa imagem do conhecimento, portanto, não é a expressão de uma verdade de fundo, mas a realização perfeita de uma versão particular desse mundo, a versão que coincide com aquela já conhecida pelo ouvinte – a história contada por seu avô quando era criança, a partir da qual poderá julgar a veracidade das demais histórias que vier a ouvir.
Seria com certeza exagerado – e certamente um Aweti não concordaria comigo – dizer que, para o Aweti toda história é, ou pode ser, um mito de origem. Mas talvez não seja completamente falso, e o exagero permita perceber um caráter importante da forma do conhecimento que é o mito.
Iniciei esta reflexão considerando o que os mitos Aweti dizem sobre o mundo e seus começos: realidade cujos traços fundamentais não se desenvolveram naturalmente a partir de uma essência dada, ou surgida do nada, mas de transformações contínuas a partir de um mundo já desde sempre ordenado, ainda que de formas distintas da atual, talvez insalubres para a vida dos humanos de hoje (os proto-humanos dos tempos de Sol e Lua, lembremos, eram vítimas dos ataques canibais da gente-onça, mais tarde expulsa da terra). Mas essa imagem do mundo projeta também uma imagem do conhecimento possível sobre tal mundo. O mito – com sua variabilidade constante, sua permeabilidade formal, seu caráter “premonitório” – parece ser não apenas a única forma pela qual esse mundo poderia ser enunciado, mas também um dos meios pelos quais ele se reconfigura constantemente.