Trans-criar: a poética da tradução de Haroldo de Campos
ARTIGO /
Gustavo Reis Louro* //
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A questão da tradução poética (ou estética, ou literária, ou criativa) é uma das mais antigas na Teoria Literária, no entanto, ainda é uma preocupação relativamente recente no Brasil.
Nesse sentido, um dos primeiros e mais importantes pensadores a considerar a teoria da tradução em âmbito nacional foi Haroldo de Campos. Uma das preocupações centrais do movimento da poesia concreta, liderado por Haroldo, junto com o irmão Augusto e Décio Pignatari, era pensar a questão da tradução criativa, aliada à ambição de reformar o cânon literário.
Walter Benjamin, em seu ensaio A tarefa do tradutor definiu a má tradução estética como a “transmissão inexata de um conteúdo inessencial”. O erro dos maus tradutores seria o mesmo que acompanha a Teoria Literária desde a Poética de Aristóteles, ou seja, separar a forma do conteúdo. E, pior ainda, considerar o segundo como aquilo que se deve “transmitir”. Dessa maneira, as traduções que se propõem como uma transmissão do conteúdo intelectivo do texto e ignoram a sua organicidade estrutural, por maior “fidelidade” que tenham, são as que mais se distanciam do espírito das obras, segundo a concepção benjaminiana.
Para o filósofo alemão, a tradução que se pretendesse poética deveria abdicar da pretensão de ser um “paliativo” do texto original. Ela não existiria para substituir a leitura da obra original para aqueles que desconhecem a língua em que está escrita, uma vez que o que vale em uma obra artística não é o que ela comunica, mas exatamente o que ela tem de incomunicável. Sua função seria, sim, recriar num outro idioma o que teria sido feito no primeiro. Ou, ao menos, tentar uma aproximação.
Atente-se que, de acordo com essa concepção, a tradução seria, na verdade, uma grande falácia, até mesmo uma impossibilidade. E foi justamente isso que perceberam os teóricos da Escola Superior da Forma, entre os quais se incluem Max Bense e Albrecht Fabri. Para eles, as obras de arte seriam essencialmente tautológicas, ou seja, sua “mensagem” e sua estrutura são uma e a mesma coisa. Qualquer alteração, por mínima que fosse, na forma alteraria completamente o sentido. A essa qualidade inerente à arte, Bense denominou “informação estética”. Ora, aceitando-se esse princípio, a tradução seria, de fato, inviável.
Justamente essa qualidade, contudo, é que possibilita que a tradução poética seja outra coisa, não a simples transmissão de conteúdos prévios. Ela é a possibilidade de recriar, seguindo uma mesma lógica, não uma lógica aristotélica, mas uma lógica poética. É a isso que Haroldo denomina trans-criar. Disso surge um paradoxo que só a poesia permite realizar: a própria impossibilidade de uma tradução fiel do texto poético é que permite que tal se configure.
“A tradução é uma forma. Para apreendê-la como tal, é preciso retornar ao original. Pois nele reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua traduzibilidade”, diz Benjamin. Em sua poética tradutória, Haroldo, grande leitor do filósofo alemão, interpretou tal afirmativa como um convite. Quanto mais “intraduzível” parecer uma obra, por ter abalado mais profunda e tensamente o idioma em que foi escrita, mais convidativa, e paradoxalmente, mais aberta à recriação ela será, porque oferecerá ao tradutor a chance de realizar aquele mesmo procedimento estético em sua própria língua, causando nela o mesmo estranhamento que o original causou à sua. Em outras palavras, como diz Mallarmé (um dos poetas que Haroldo mais traduziu), “Donner unsenspluspurauxmots de la tribu”. Por isso, não surpreende que o crítico tenha escolhido justamente poetas com reconhecida fama de “intraduzíveis”, tais como o próprio Mallarmé, Joyce e Maiakóvski.
A esse respeito, diz Benjamin: “Quanto mais elevada for a qualidade de uma obra, tanto mais ela (a tradução) permanecerá – mesmo no contato mais fugidio com o seu sentido – ainda traduzível”. Haroldo por sua vez pensará nos seguintes termos: “Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade de recriação. Numa tradução dessa espécie, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo.” (grifo nosso).
Outro grande teórico da tradução, Henri Meschonnic, postulou que não se deve opor o que ele chamou de significância e significação, como se opõem forma e conteúdo. Para Meschonnic, trata-se do mesmo erro de confundir poesia com versificação. Ele postula que o signo literário é por natureza transbordante, isto é, aglutina e cria o seu próprio referente. Assim sendo, uma tradução desse signo não poderia ser apenas referencial e etimológica, mas semiótica e semântica. Daí, ele conclui que boas traduções podem conter erros, como as de Baudelaire, ao passo que traduções impecáveis podem ser falhas. Estamos nos mesmos domínios de pensamento que os de Haroldo.
Haroldo chama de tradução hiperliteral essa operação semiótica. Hiperliteral, não porque se atenha à literalidade do Logos, do significado, mas por que vai às estruturas formais últimas do objeto estético que tem diante de si, em nível microestético e macroestético. Ora, um procedimento assim não é apenas tradutório, é também crítico. O próprio teórico, longe de negar isso, afirmava peremptoriamente tal postulado. Não à toa, intitulou um de seus textos capitais sobre o tema como Da tradução como criação e como crítica, julgando impossível separar a tradução de uma obra, de sua interpretação e, assim, jogando por terra qualquer pretensão de portar a sua chave significativa última. E, consequentemente, de julgar poder traduzi-la.
Seguindo o preceito poundiano do make it new, ou seja, escrutinar o passado literário em busca do que ele tem de atual e atuante, Haroldo via no seu processo tradutório a forma mais privilegiada, penetrante e eficaz de crítica literária. Não se rogava de usar procedimentos da poesia moderna para traduzir obras milenares – algumas, fundantes da cultura ocidental. A esse respeito, veja-se o que ele diz sobre sua experiência de traduzir poesia bíblica: “Pretendi, antes, estabelecer um modelo contrastivo, mostrar aquilo que poderia ser feito com a poesia hebraica bíblica, através das técnicas da poesia moderna […] do verso livre”
Como se vê, tal tipo de tradução sobressai por privilegiar a forma do texto que tem diante de si. Daí o fato de ela não se vexar em procurar os meios mais variados de reconstrução estrutural do texto traduzido. Ou, como diz Haroldo:
Traduzir a forma, ou seja, o ‘modo de intencionalidade’ de uma obra – uma forma significante –, portanto intracódigo semiótico – quer dizer, em termos operacionais de uma pragmática de traduzir, re-correr o percurso configurador da função poética, reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o […] na língua do tradutor, para chegar ao poema transcriado como re-projeto isomórfico do poema originário.
Percebe-se assim, claramente, que esse processo inverte o paradigma tradutório: não é a tradução que, servilmente, deve-se adequar ao original, carregando-o como um fardo. É a própria tradução, que, servindo-se do original como uma base estética, deverá recriá-lo e recriar-se, partindo dos mesmos procedimentos estéticos, mas realizando-se em uma nova língua, e, consequentemente, numa nova linguagem. Assim, os dois poemas (amplamente falando) serão autônomos, diferentes, mas recíprocos, isomórficos. Partirão dos mesmos processos formais para chegar a formas diferentes, porém complementares.
É por isso que faz tanto sentido dizer que a empresa tradutória torna-se um processo recíproco, porque, como nos diz o próprio Haroldo, o original torna-se a tradução da sua tradução. O mesmo princípio construtor e organizador que estabeleceu um determinado poema é atomizado e refundido num novo resultado.
Em termos linguísticos, pode-se dizer que o processo de transcriação não é paradigmático, mas sintagmático. Isto quer dizer que ele funciona na estrutura, sintática e semântica, e não apenas no nível básico lexical. É, como diz Haroldo belamente, um processo de arraigar-se e desarraigar-se no texto original, em amorosa duplicidade.
É por isso que se pode falar, mais do que em isomorfia, de paramorfismo. Ora, a preposição grega pará indica, justamente, o movimento paralelo, de separação. Seguindo esse raciocínio, a transcriação deve procurar sempre um movimento não apenas de convergência, mas também de divergência. Porém, esse afastamento é aquele mesmo que tomamos, quando queremos observar uma cena como um todo, ou seja, ele é necessário para uma apreensão global, o que a mera observação das partes não permitiria. Em termos tradutórios, podemos dizer que o transcriador, quando faz uma decisão tradutória que aparentemente se distancia do texto, fá-lo, tendo em vista o plano total da obra, uma vez que não se pode conceber as partes sem um todo.
Nesse sentido, a ideia haroldiana de transcriação aproxima-se das concepções do filosófo italiano Luigi Pareyson a respeito da forma formante e da forma formada. Para este, a obra de arte faz-se, criando o seu próprio modo de fazer, na desobediência a quaisquer normas prévias. Segundo essa lógica, as obras artísticas seriam produzidas através de um processo de tentativa e erro, no qual a possibilidade levada a cabo, o poema realizado, jamais esgota o tentar criativo, que lhe dá origem.
Quando se fala de tradução poética, podemos dizer que o tradutor, ao tentar verter uma obra estrangeira para a sua própria língua, estaria se reportando a esse mesmo fazer formador, buscando uma nova configuração, recriando o que poderia ser. Como diz o próprio Haroldo, concebida assim, a arte de traduzir é uma “pulsão dionisíaca, pois dissolve a diamantização apolínea do texto original já pré-formado, numa nova festa sígnica: põe a cristalografia em reebulição de lava”. A tradução haroldiana realiza o desígnio pessoano do sê-lo outrora, agora.
O teórico, longe de negar tal desígnio, reafirmava-o constantemente, e mesmo fazia dele um dos pilares do processo tradutório. Em seu ensaio “Transluciferaçãomefistofáustica”, escrito à época em que traduziu excertos do segundo Fausto goethiano, Haroldo, retomando o aforisma benjaminiano de que “a tradução, como a filosofia, não tem um Musa”, acrescenta que, de fato, ela não o tem, mas possui um Anjo.
Tal anjo não é outro senão o próprio Lúcifer, Satã, que, como nos conta/canta Dante no Paradiso, é culpado de traspassar il segno (ultrapassar o signo). O que se ultrapassa, no caso, é a pretensão ao Logos preestabelecido, que se propõe detentor da significação última (e intelectiva da obra), e a dicotomia forma-conteúdo que privilegia aquilo que numa obra é inessencial: “sua mensagem”. Esse mesmo Anjo, O AGESILAUS SANTANDER, o “AngelusNovus” de Benjamin, que, segundo GershomScholem, é um anagrama de DER ANGELUS SATANAS, é etimologicamente, o arauto, encarregado, não de transportar uma mensagem inteligível, mas de um novo configurar-se poético, da re-doação da forma, transportada integramente ao novo idioma, tal como se, nele, houvesse sido escrita. Em termos linguísticos, podemos dizer que o que se traduz é o significante, não o significado. Na bela expressão haroldiana, o tradutor é o “coreógrafo da dança interna das palavras”.
A tradução luciferina (ou haroldiana) caracteriza-se pelo signo do trans. Da transgressão, do non serviam, da recusa em aceitar, como tarefa, a transmissão de uma mensagem considerada inessencial. Não surpreende que Haroldo tenha chamado seu traslado da Ilíada homérica de “trans-helenização”, do Paradiso dantesco de “transluminação” e das cenas do Fausto goethiano de “transluciferação”.
Quando se reporta à etimologia do étimo grego ángelos, cabe lembrar que tal etimologia é mais do que histórica. É poética. Faz-se por afinidade eletiva, na busca da palavra que se harmonize com o todo do projeto estético que se quer traduzir. Porque é esse projeto, mais do que obras isoladas, que se quer transpor de uma língua à outra. Mesmo que tal ou tal palavra não se correspondam exatamente, lexicalmente falando, a correspondência será mantida, pela fidelidade ao todo, ao projeto poético.
Foi o mesmo que, muito antes de Haroldo ou Pound, Hölderlin empreendeu na tradução das tragédias sofoclianas Édipo-Rei e Antígona. O poeta alemão, acuado entre a genialidade e a insânia, traduziu as peças valendo-se de um conhecimento elementar do grego, mas de grande sensibilidade poética. Sendo assim, o étimo grego kalkháino da fala de Antígona, que o dicionário Bailly registra com o sentido figurado de “atormentar-se, meditar profundamente, preocupar-se”, foi vertido por Hölderlin como “tua fala se turva de vermelho”, resgatando a metáfora original do vermelho, presente na palavra. Ao fazê-lo, e revoltar-se contra o sentido estatuído da metáfora domesticada pelo uso, a tradução hölderliniana irradia a tensão dramática da palavra para a peça inteira, harmoniza a parte com o todo e traduz não só a palavra isoladamente, mas a sua conexão com a rede imagética presente na economia do texto em que está inserida. Mais além, podemos mesmo dizer que ela se homologa com a produção sofocliana como um todo e com todos os textos que dela partiram.
Por isso, não surpreende que, após a incompreensão dos mais brilhantes coetâneos como Goethe e Hegel, que publicamente ridicularizaram a solução de Hölderlin, suas traduções tenham sido eleitas por Benjamin como prototípicas do gênero. Seu mérito estaria em apenas tanger o sentido “de abismo em abismo, como uma harpa eólia”, de acordo com a bela expressão bejaminiana. Mesmo que a imagem em questão não tenha sido pensada originalmente, o que interessa é que ela é sancionada e até mesmo exigida pela obra a ser traduzida, o que autoriza o tradutor, ao inseri-la, a recriar o texto que tem diante de si.
Retomando o preceito poundiano do make it new, devemos acrescentar também que o tradutor que se quer transcriador, mesmo ao levar em conta a historicidade e os fatores extratextuais que circundam todo o texto, deve fazê-lo com vistas à potenciação do texto. Deve, como diz Haroldo, “traduzir a tradição”, ou seja, tomar tais injunções não como limites externos, mas concebê-los como elementos da obra, que precisam ser atrelados à sua rede relacional e vivificados. Deve lembrar também, que, antes de prenderem-se a sistemas sócio-históricos, as obras estabelecem relações entre si mesmas. Como diz magistralmente Paulo Rónai, na sua Escola dos Tradutores: “[…] os poemas, além de sua existência individual, são elos de uma tradução poética que é preciso trazer de cor para senti-los integralmente. Porém, o tradutor, até o melhor, fica impotente em face desse resíduo que não se deixa reduzir”.
Trata-se, vale reiterar, de uma fidelidade, não literal, mas hiperliteral ou supraliteral, que verte a forma do texto num novo produto poético, imantado e dinamizado pelo projeto estético do original.
Outro eminente filósofo alemão, citado por Benjamin em seu estudo, Rudolph Pannwitz, diz-nos que
nossas traduções (mesmo as melhores) partem de um falso princípio, querem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em vez de sanscritizar, grecizar, anglicizar o alemão, elas possuem um respeito muito maior diante dos próprios usos linguísticos do que diante do espírito da obra estrangeira […] o erro fundamental de quem traduz é conservar o estado fortuito da sua própria língua, ao invés de se deixar abalar violentamente pela língua estrangeira, sobretudo quando traduz de uma língua muito diferente.
É exatamente isso que Hölderlin, Pound e Haroldo, em diferentes tempos e de maneiras diversas, empreenderam. Realizaram um processo de hiperetimologia poética, que busca, como diz Haroldo, “detectar o casulo metafórico original e desvelá-lo poeticamente”, desdobrando-o e irradiando-o por todo texto. Respeitar o seu projeto estético, sem procurar adulterá-lo, mas também sem vexar-se de suplantá-lo, ao acrescentar-lhe soluções, que mesmo não estando claras no texto enquanto parte, são autorizadas pelo seu todo, eis o ditame central da tradução transcriadora.
Ao refletir sobre esse processo tradutório, somos levados a concluir que uma de suas grandezas é que ele não se propõe definitivo e não hesita em ceder lugar para que outras versões apareçam, já que cada uma é outra interpretação. Assim se rompe com a dita pretensão logocêntrica da revelação pétrea e admite-se a própria fluidez heraclítica do texto em si, que é sempre o mesmo e outro. Se é da essência da poesia captar o incaptável, nada mais lógico (numa lógica poética) que a essência da tradução seja o intraduzível.
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*Gustavo Reis Louro é granduando em Letras Português-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Referências
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972.
_____. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976.
_____. Tradução, ideologia e história. In: Cadernos do MAM, Rio de Janeiro, n., dez. 1983.
_____. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1991.
_____. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
HÖLDERLIN, Friedrich. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1967.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Prefácio de Izidoro Bilkstein. Tradução de Izidoro Bilkstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001.
MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Correa e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.