Cosmologia do século XX
ARTIGO /
Martín Makler* //
O pôster sobre os grandes avanços do último século em Relatividade Geral e Cosmologia é resultado de um trabalho minucioso realizado pelos pesquisadores do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA) e por alguns dos seus colaboradores e estudantes. Nesse pôster apresentamos as principais descobertas e problemas levantados pela cosmologia teórica e observacional do século XX.
Introdução por Nelson Pinto Neto, físico do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA/CBPF).
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Acompanha esta edição de Cosmos e Contexto uma versão digital do pôster Cosmologia do século XX. O leitor pode estar se perguntando por que falar da cosmologia do século passado em pleno século XXI. Consideramos que isso permite um certo distanciamento para avaliar o que sobreviveu ao teste de história, ou seja, quais ideias ou interpretações saíram vitoriosas até hoje. Mas existem algumas razões mais profundas. De fato, o século XX foi singular em termos de nossa concepção atual sobre o Universo. No seu início foram estabelecidas as bases do conceito contemporâneo de cosmologia, em particular com o desenvolvimento da teoria de relatividade geral por Einstein (completada em 1915), com a ‘comprovação’ dessa teoria no eclipse solar de 1919 observado em Sobral (e na Ilha de Príncipe), com a proposta de modelos expansionistas do Universo (Friedmann, 1922, 1924; Lemaître, 1927) e com a descoberta da expansão do Universo (Hubble, 1929).
O século XX foi rico em descobertas e observações que moldaram a nossa visão do Universo. A primeira medida de distância a uma galáxia foi obtida por Hubble, em 1924, mostrando que esse tipo de objeto ficava de fato fora da nossa galáxia. Já no final do século, o projeto Sloan Digital Sky Survey (SDSS) realizou um mapa 3D com cerca de 200 mil galáxias e forneceu imagens de cerca de 20 milhões desses objetos, ilustrando a complexa rede de estruturas na qual a matéria visível se distribui, formando a chamada estrutura em grande escala do Universo (hoje o SDSS continua em operação e já obteve 10 vezes mais dados do que esses). Foi também no século XX em que se abriram novas janelas para a observação do Universo, indo além da luz visível para cobrir desde as ondas de rádio até os raios gama. Em 1965, por acidente, Penzias e Wilson descobriram uma radiação em microondas extremamente uniforme, remanescente de um período quente e denso do Universo, o que era uma previsão teórica dos modelos expansionistas. A descoberta lhes rendeu o Prêmio Nobel. Já nos anos 1990, o satélite COBE mapeou em detalhes essa radiação, mostrando regiões levemente mais densas e levemente mais rarefeitas, que são as sementes da estrutura em grande escala. Ele também mostrou que essa radiação se distribui exatamente como era esperado de um objeto quente (o chamado espectro de corpo negro). Novamente a descoberta foi agraciada com o prêmio Nobel, entregue aos coordenadores de dois instrumentos do COBE: Mather e Smoot.
Ao longo do século XX foi sendo construído um modelo físico que procura descrever o Universo observado. Esse modelo utiliza as teorias da gravitação de Einstein e o chamado modelo padrão da física de partículas, em outras palavras, a síntese do conhecimento atual sobre as interações fundamentais da natureza. Com pequenas extensões da física conhecida, esse modelo foi capaz de reproduzir um grande número de observações astronômicas e, o que é mais importante, permitiu fazer previsões que foram verificadas. Aí está a grande força de uma teoria, quando ela é capaz não somente de reproduzir o conhecido (ou seja, a posteriori), mas de prever algo que só depois é observado na natureza. Por outro lado, utilizando apenas a física conhecida e estabelecida (novamente, relatividade geral e modelo padrão de partículas), sem adicionar nada, esse modelo falha rotundamente ao descrever a realidade. Aí está um aspecto singular da cosmologia do século XX: ela requer uma nova física. Ao procurar descrever o Cosmos somos levados à necessidade de rever a física conhecida. A grande pergunta que ficou no ar no século passado e que ainda não possui resposta clara é: qual a profundidade dessa revisão? Bastaria fazer pequenas modificações na física conhecida para ela descrever o Universo? Ou será necessário repensar seus próprios fundamentos?
Curiosamente essa situação parece se repetir ao longo da história da ciência. Temos uma teoria que descreve ‘quase tudo’, mas ela carrega consigo suas próprias limitações. A primeira indicação da necessidade de uma nova física veio a partir de observações realizadas em 1933 por Zwicky, que apontavam a necessidade de mais matéria para explicar os movimentos das galáxias em agrupações de galáxias do que o que era observado (Figura 2). Essa ‘matéria faltante’ também foi observada na década de 1970 por Rubin, com observações sobre o movimento de rotação de algumas galáxias. Daí em diante foram surgindo evidências pelos mais diversos caminhos da necessidade do que ficou conhecido como ‘matéria escura’. O caminho mais popular entre os físicos para descrever a matéria escura é utilizar extensões do modelo de física de partículas, mas também é possível que uma nova teoria da gravidade seja capaz de explicar a discrepância entre a matéria conhecida e as observações astronômicas (Figura 3).
A segunda indicação clara da necessidade de nova física surgiu no final do século XX. Em 1998, dois grupos independentes
publicaram trabalhos, baseados em observações
de supernovas, cuja interpretação mais direta indica que a expansão do Universo ocorre de forma acelerada – ou seja, a taxa de
expansão aumenta com o tempo –, ao contrário do que era esperado pela maioria dos cosmólogos. Essa descoberta foi agraciada também com o prêmio Nobel oferecido a um pesquisador de cada um daqueles dois experimentos (Figura 4). Uma explicação simples para essas observações seria a presença da chamada constante cosmológica, proposta por Einstein em 1917 como uma extensão de sua relatividade geral. No entanto, surgiram diversas alternativas, no início adicionando campos de matéria (na linha de extensões da física de partículas) – o que ficou conhecido como ‘energia escura’ – e posteriormente com modificações da gravidade e também com modelos de Universo heterogêneos.
De alguma forma, a cosmologia deste início do século XXI é dominada por esses dois grandes problemas do século XX: a matéria escura e a energia escura (para usar seus nomes mais populares). Diversas alternativas têm sido exploradas, essencialmente modificando cada aspecto da física fundamental e do modelo cosmológico, mas nenhuma se destaca ainda como a solução satisfatória. Talvez seja preciso uma mudança mais radical na física, assim como ocorreu no início do século XX e que levou ao desenvolvimento da mecânica quântica e da relatividade geral. Do ponto de vista das observações, a qualidade e quantidade de dados astronômicos cresce vertiginosamente, motivada em parte por essas grandes questões cosmológicas. Projetos custando de dezenas a centenas de milhões de dólares são desenvolvidos no solo e no espaço, procurando observar o Universo nos mais diversos comprimentos de onda. Curiosamente, no que se refere à energia escura, a constante cosmológica, ou seja, a teoria de Einstein de 1917, continua sendo uma boa explicação para os dados.
Além da matéria e energia escuras, outro problema presente desde o surgimento da cosmologia contemporânea é o comportamento do Universo primordial, ou seja, antes ou durante uma fase extremamente densa e quente do passado. Nessas condições, a física conhecida também deixa de valer, novos comportamentos físicos podem surgir e a gravitação quântica (teoria ainda não completa) pode ter um papel importante. Em particular, o que houve antes dessa fase quente, se ela representa alguma forma de início ou se um período de contração a precedeu, por exemplo, ainda são questões em aberto. Novamente, os problemas da atualidade nesse campo tiveram suas raízes no século XX.
As questões fundamentais levantadas pela cosmologia do século XX levaram, entre outras coisas, à criação de institutos de pesquisa especialmente dedicados a esse assunto. Hoje quase toda universidade ou instituição de pesquisa básica de renome internacional possui associado a ela um centro ou instituto de cosmologia. No Brasil, o Instituto de Cosmologia, Relatividade e Gravitação (ICRA), associado ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), representa essa tendência e está entre os primeiros a terem sido criados internacionalmente. Novamente, as bases do ICRA foram lançadas no século XX, em particular com a criação do primeiro Grupo de Cosmologia e Gravitação do Brasil no CBPF, em 1972, e a realização das Brazilian School on Cosmology and Gravitation, com início em 1978 e que continuam até hoje (Figura 5).
Buscar compreender a origem, estrutura e evolução do Cosmos é sem dúvida uma das questões mais fundamentais da humanidade. A física do século XX, quando aplicada à totalidade – o Universo – permitiu elaborar modelos que descrevem com êxito o vasto conhecimento agora acumulado através das mais variadas observações astronômicas. No entanto, para poder reproduzir as observações é preciso introduzir ingredientes ou modificações que vão além da física conhecida. Se o resultado desse processo será uma física inteiramente nova, como ocorreu no início do século passado, ou apenas extensões da física atual, só o futuro dirá. O que é certo é que a cosmologia continua a ser um dos ramos mais instigadores na busca da compreensão fundamental da natureza. Muitas novidades são esperadas para este início de século XXI, tanto pela melhoria constante dos dados observacionais, quanto pela efervescência de teorias e modelos. Felizmente, o Brasil está bem posicionado para participar dessa aventura, embora ainda haja um longo caminho pela frente (Figura 6).
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*Martín Makler, físico do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA/CBPF).
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Todas as figuras desse artigo foram retiradas do pôster Cosmologia do século XX.