Gamow no Rio e o descobrimento do processo URCA
ARTIGO /
A. Grib* e M. Novello** //
Uma supernova é uma explosão estelar muito intensa que, em um intervalo de tempo curto, pode radiar tanta energia quanto o Sol durante toda sua existência. Na tentativa de entender de que maneira tal evento ocorre, um processo é descoberto por dois físicos, entre eles um brasileiro, em meio as roletas do antigo Cassino da Urca, como veremos no texto que segue.
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Um dos autores deste artigo (A. A. G.) recorda-se de que nos anos 1970, Gleb Wataghin, um físico russo bem conhecido, que trabalhava na Itália e no Brasil, lembrou da história do descobrimento dos processos URCA. Foi por volta do início dos anos 1940, quando George Gamow estava no Rio de Janeiro e junto com o físico brasileiro M. Schenberg[i] começou seu trabalho sobre explosões de supernovas. Sendo um homem espirituoso e de várias facetas, Gamow estava interessado em jogar roleta no Cassino da Urca no Rio de Janeiro. O nome do cassino era devido ao nome do morro da Urca, ao pé do qual estava localizado o cassino. Por acaso, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) está localizado bem próximo a ele.
Salientamos que o nome Urca tem muitos significados diferentes em línguas distintas. É dito que em Tupi-Guarani ele significa ‘barco pequeno’. Para os cariocas ele significa ‘Urbanização Carioca’, a empresa que estava encarregada da urbanização do Rio. Por outro lado algumas pessoas dizem que o nome indígena realmente representa o lugar uma vez que o formato da praia se assemelha ao formato dos navios holandeses que vieram… para Urca!
Para a audiência que fala inglês, esta abreviação significa Ultra Rapid Catastrophy (catástrofe ultra-rápida), que ocorre em supernovas.
Mas todos os russos sabem que urca é um nome dado ao ladrão, em Odessa, que se ocupa em assaltar seus bolsos… Então, lembrando-se de seu passado em Odessa e pensando sobre o melhor nome para os processos estelares, Gamow chegou ao descobrimento dos processos Urca.
Citemos M. Schenberg[ii]:
O nome Urca foi dado por nós ao processo que acompanha a emissão de neutrinos em supernovas por causa da seguinte situação curiosa: no Rio de Janeiro, fomos jogar no Cassino da Urca e Gamow estava muito impressionado com uma mesa na qual havia uma roleta e na qual o dinheiro desaparecia muito rapidamente. Com senso de humor, ele disse: ‘Bem, a energia está sendo perdida no centro das supernovas com quase a mesma rapidez com que o dinheiro é perdido nestas mesas!’
Assinalemos que Schenberg assim como Gamow era um homem de muitas facetas. Durante os últimos anos de sua vida ele voltou seu interesse para a arte. Em sua casa, na entrada principal, podíamos ver duas pequenas torres: uma representando Mário e a outra representando Gamow. Eles conversam sobre o processo Urca. Muitas pessoas vêm apenas para adimirar esta estrutura estranha.
Em dois artigos com M. Schenberg – um curto[iii] e outro mais detalhado[iv] que foi publicado em primeiro de abril, o dia universal das piadas! – Gamow e Schenberg tornaram uma piada em uma nova teoria que é agora a base de todas as investigações sobre supernovas.
E agora, tentando imitar o estilo de Gamow o melhor possível, vamos investigar diferentes manifestações do urca de Odessa nos processos URCA!
1 – Urca como o processo de roubar elétrons
Urca é o processo de “roubar” elétrons do Sol e das estrelas. Se temos um núcleo NAZ, então o seguinte processo é predito[v]:
NAZ + e_ → NAZ-1 + neutrino
Mas, devido ao decaimento β (beta) padrão[vi] devemos também ter processos tais como
NAZ-1 → NAZ + e_ + antineutrino
Note que no artigo original os nomes antineutrino e neutrino eram usados inversamente a maneira como são usados agora, de tal maneira que no decaimento β neutrinos eram produzidos.
“Processos de absorção e re-emissão de elétrons livres por certos núcleos atômicos dentro da matéria estelar podem levar a tremendas perdas de energia através da emissão de neutrinos, de tal maneira que o colapso de um corpo estelar inteiro com uma velocidade de quase queda livre se torna possível” – esta era a principal conclusão dos autores.
2 – Urca como o processo de roubar energia
Imagine algum processo dentro da estrela colapsante quando, devido ao colapso gravitacional, a temperatura interna da estrela se torna muito alta. A altas temperaturas e altas densidades, novos processos nucleares serão acionados por emissão de neutrinos, tal que neutrinos invisíveis, diferentemente dos fótons usuais, se tornam os principais portadores de energia. Mas como neutrinos praticamente não interagem com as camadas mais externas da estrela, eles ‘roubam’ essa energia sem transferi-la a estas camadas. Assim, a pressão usual devida ao equilíbrio térmico, que em geral evita o colapso devido a gravitação, não aparece aqui. Isto leva, segundo o raciocínio de Gamow e Schenberg, a queda livre das camadas exteriores e ao rápido colapso da estrela. Velocidades e pressões altas levam a um aumento de temperatura nas camadas exteriores. Desta maneira, como foi dito no primeiro artigo, “The possible role of neutrinos in stellar evolution”, a estrela rapidamente aumentará seu brilho e isto pode explicar as explosões de supernovas. No segundo artigo, esta ideia foi desenvolvida para explicar a expansão da camada mais externa. “Massas de gás que formam o corpo da estrela colapsante serão fortemente aquecidas pela compressão. Como o calor não pode escapar em direção ao centro (exceto de camadas na vizinhança imediata da região URCA) parte dele deve permanecer no corpo colapsante e outra parte deve ser radiada da superfície. Não é difícil ver que, sob certas condições, partes mais internas de um corpo estelar continuarão a se mover em direção ao centro, enquanto regiões mais externas começarão a expandir.”
Estas eram ideias simples nos trabalhos pioneiros de Gamow e Schenberg sobre os processos Urca. Certamente hoje temos um quadro mais complicado das explosões de supernovas. Não havia nada nestes artigos a respeito do papel da onda de choque nestas explosões levando a expansão das camadas externas etc., mas as características básicas dos processos Urca, assim como a importância deles para o nosso entendimento das explosões de supernovas, foram achadas corretamente.
Além de considerações gerais, haviam alguns cálculos. Como disseram os autores “no começo estes processos envolverão apenas aqueles núcleos que podem capturar elétrons livres com energia da ordem de alguns keV’s[vii] enquanto que, no auge do colapso, os núcleos requerem um balanço de energia de alguns MeV’s”. Assim, cálculos da perda de energia devido a emissão de neutrinos e antineutrinos foram feitos para dois casos-relativísticos e não-relativísticos.
Com relação ao ciclo carbono-nitrogênio[viii], 7% da energia pode ser perdida através destes processos. Calculando a quantidade de energia gravitacional liberada em uma contração de uma estrela com a massa solar e raio inicial R0 que se contrai até R0/40, os autores obtêm o valor de 1050 ergs. Para o tempo de colapso eles chegam ao valor de Δt~3 segundos. Desta maneira, a taxa média de perda de energia deve ser da ordem de 1014 erg/(g s)9.
Para o caso não-relativístico eles investigaram outros processos envolvendo hélio e hidrogênio e obtiveram para a taxa média o valor 2×106 erg/(g s) que é um número baixo.
Para os casos intermediário e extrarelativístico eles analisaram alguns outros processos com ferro e manganês, obtendo o valor 1011 erg/(g s). Outros processos envolvendo oxigênio e nitrogênio resultaram em uma taxa de 1016 erg/(g s). Também para o caso do ferro em uma estrela de massa dez vezes maior que a do sol contraindo-se a 1% do seu raio original a taxa é de 1012 erg/(g s).
Desta maneira estes cálculos mostraram definitivamente o papel dos processos Urca relativísticos.
3 – O processo Urca foi, afinal, capturado na explosão da supernova de 1987?
No ano de 1987 os astrofísicos receberam um presente. Em 23 de fevereiro uma supernova explodiu na Grande Nuvem de Magalhães! E os neutrinos desta explosão? Quatro grupos que procuravam por neutrinos registraram alguma explosão.
- O detector IMB, nos EUA, registrou 8 neutrinos.
- O detector Kamiokande, no Japão, registrou 11 neutrinos.
- O detector Baksan, na antiga URSS, registrou 5 neutrinos.
- Mas tambem houve uma explosão de neutrinos registrada no detector em Mont Blanc, uma colaboração Ítalo-Soviética.
Escrevemos ‘mas’ porque se os três primeiros detetores registraram a explosão mais ou menos ao mesmo tempo, o detetor de Mont Blanc registrou seus neutrinos quatro horas e meia antes dos outros detectores! Assim, a opinião difundida é que este detector registrou ‘outros’ neutrinos, não os da supernova 1987A. Mas por que isso aconteceu no mesmo dia em que a supernova 1987A explodiu?
Portanto, Urca ainda levanta algumas questões a respeito de sua atividade…
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*Andrey Grib é doutor em ciências físicas e matemáticas, professor do Departamento de Física Teórica e Astronomia da Universidade Pedagógica do Estado de São Petersburgo, Russia. Entre suas áreas de atuação estão teoria quântica de campos em espaços curvos e questões gerais da teoria quântica.
**Mario Novello é doutor em física pela Universidade de Genebra, Suíça, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e fundador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA). Em 2004 recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Lyon, França, por seus estudos sobre a origem do universo. Autor do livros Cosmos et Contexte (Paris, Ed. Masson, 1987); O círculo do Tempo: um Olhar Científico sobre Viagens Não-convencionais no Tempo (Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1998); Os Sonhos Atribulados de Maria Luísa (Rio de Janeiro, Zahar, 2000); Máquina do Tempo (Rio de Janeiro, Zahar, 2005); O que é Cosmologia (Rio de Janeiro, Zahar, 2006); e Do Big Bang ao Universo Eterno (Rio de Janeiro, Zahar, 2010), entre outros.
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[i] Um dos pais da física moderna brasileira, professor falecido da Universidade de São Paulo (USP).
[ii] O Mundo de Mario Schenberg, ed. Governo do Estado de São Paulo.
[iii] G. Gamow e M. Schenberg, Physical Review, 58, 1117 (1940).
[iv] G. Gamow e M. Schenberg, Physical Review, 59, 539 (1941).
[v] Z é chamado número atômico e representa o número de prótons, partículas positivamente carregadas, encontradas no núcleo de um átomo. A é a massa atômica e representa a soma de prótons e nêutrons em unidades de massa dentro do núcleo atômico.
[vi] Decaimento β: reação na qual um nêutron decai em um próton, um elétron e um antineutrino do elétron.
[vii] O elétron-volt (eV) é uma unidade de energia, assim como erg. KeV e MeV são, respectivamente, 103 eV e 106 eV.
[viii] O ciclo carbono-nitrogênio é um processo de fusão nuclear que sintetiza elementos mais pesados dentro de uma estrela, sendo eles o carbono, o nitrogênio e o oxigênio.