6 Lições para a filosofia de Nietzsche – parte 4
1 O Niilismo como projeto de aniquilação do homem
O homem que vive sob o domínio do niilismo é o homem do autoengano. Para ele, mudança e bem-estar excluem-se e o estranho caminho para a felicidade se torna o caminho da unidade, do mundo permanente, do ideal verídico, distante das contradições, ambiguidades e incertezas que caracterizam o mundo em que se vive. Diz Nietzsche: “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios e luta por sua existência” (NIETZSCHE, 1998b, III, 13, grifo do autor). Como o mundo que se apresenta não pode garantir a felicidade aos homens, mas ao contrário, a todo momento cria condições para a sua infelicidade, infere-se que ele não deveria existir e assim este mundo passa a ser negado e maldito constantemente, transformando-se os homens que nele habitam em “uma espécie sofredora e improdutiva, cansada da vida” (NIETZSCHE, 2008a, III, I, 585, p. 305).
Qual a vantagem de criação de um outro mundo? Ela traz ao homem repouso, segurança e coerência; afasta o homem do sentimento de atordoamento diante do infinito da vida e o coloca a salvo no abrigo do intelecto. A razão humana se desespera diante das forças heterogêneas da vida e só consegue se manter centrada se traveste esse infinito de finito, se lhe impõe uma ordem, uma determinação, uma causalidade.
O homem procura ‘a verdade’: um mundo que não se contradiz, que não engana, que não muda, um mundo verdadeiro – um mundo no qual não se sofre: contradição, ilusão, mudança – causas do sofrimento! Ele não duvida de que haja um mundo tal como deveria ser; gostaria de procurar para si o caminho que leva até ele (NIETZSCHE, 2008a, III, I, § 585, p. 305).
Ao invés de se adaptarem ao mundo, com todos os seus desmentidos e dificuldades, os homens passam a repudiá-lo, desvalorizá-lo como uma simples sombra ou aparência. A lógica, a religião e a moral se juntam na busca de “outro mundo”: o mundo razão, o verdadeiro fora de toda possibilidade contraditória; o mundo divino, do qual esse mundo é apenas uma desnaturalidade; o mundo moral, onde está o bem, a perfeição, a justiça.
Há uma luta contra o vício, o crime, o luxo, a doença, o que faz a vida ser condenada, mas tal luta é uma ingenuidade e como tal, totalmente supérflua. O homem, demasiado fraco para sofrer, busca suas saídas que passam pelo ideal ascético, pelo idealismo e, consequentemente, pelo niilismo. O homem deseja encobrir os terrores e absurdos da existência, da ordem perturbada e da irracionalidade dos acontecimentos, do monstruoso sofrimento comum à natureza humana, o fundo enigmático, aniquilador, terrível e maligno da existência.
Por todo canto ouve-se o mesmo juízo: a vida não vale nada; por todo canto ouve-se o mesmo cansaço diante da vida; por todo canto, vê-se uma resistência contra ela – daí a afirmação de todas as debilidades, o instinto de rebanho, as nulidades somadas, a virtude do ser nada. Sócrates, diz Nietzsche, é o homem do cansaço da vida (1988, p. 21), porque esta é sempre enfermidade, debilidade. Há que se sempre estar pagando galos a Esculápio, porque a vida humana é uma vida de doença.
O niilismo significou, pois, a falsificação radical de toda natureza, de toda realidade. Diz Nietezsche: “Quando não se coloca o peso da vida na própria vida, mas sim no além, então retira-se da vida toda sua importância. … Tudo o que é benéfico, vital, promissor nos instintos, suscita cada vez maior desconfiança” (1996b, 43). Vive-se de modo a esvaziar o sentido de viver; têm-se sempre em mente a morte, a vida em risco, toda forma de miséria, a velhice, a fadiga, a doença. A lógica niilista é tornar o homem infeliz, culpado e castigado, ou seja um projeto de aniquilação do homem.
O Niilismo está ancorado em uma fábula, em um equívoco. São dois movimentos que o caracterizam: por um lado, a vida na ilusão, na fabulação; por outro, a negação da vida, a abolição do mundo dito aparente em favor do mundo “verdadeiro”, a ascese. É, como diz Adreas-Salomé,
a exortação à ascese, não importa sob que forma, ao afastamento da vida e de suas dores…tal ascetismo é pregado por todas as religiões e morais, mas também por todo intelectualismo que sustenta o pensamento às custas da vida e opõe o ideal da ‘verdade’ ao ideal de uma possível intensificação da vida (1992, p. 162).
O socratismo dialético, o homem teórico representam um signo do delírio, do cansaço e da doença da humanidade. A partir do triunfo dessas forças os gregos se tornaram mais superficiais, mais ansiosos por lógica, mais científicos. Sócrates representa a vitória do otimismo, da racionalidade, mas para Nietzsche isso é uma expressão de declínio, uma fadiga (1992b, p. 17).
Duarante muito tempo se acreditou que o homem do conhecimento científico conduziria a humanidade para um futuro livre de superstições, para o saber em sua pureza técnica e neutra. Celebrou-se a conquista definitiva do espírito objetivo, do conhecimento desinteressado, mas para Nietzsche o homem objetivo, aquele em que o instinto científico floresce por inteiro, o erudito ideal (1992a, 207, p. 110), nada mais é do que a mais sublime espécie de escravo.
Ele não é uma meta para o homem nem mesmo uma elevação de sua natureza ou ainda um começo que devemos aspirar; ele não passa de um flexível recipiente de formas a espera de um conteúdo para, de acordo com este, se configurar, se moldar. Por isso Nietzsche é o primeiro a pedir (de forma inversa ao habitual): “insisto em que finalmente se deixe de confundir com filósofos os homens de ciência” (1992a, 211, p. 117).
No racionalismo científico dos modernos ocorre a sedução da possibilidade de dominação racional sobre uma matéria insensata, multiforme, caótica. Mas esta sempre escapará totalmente ao homem – “A vida é sempre mais labiríntica, enigmática, ambígua e misteriosa de todo o compreender humano” (FINK, 1994, p. 178). Por isso, o objetivo da filosofia nietzscheana não é encontrar a unidade, a coerência, a ordem do mundo, suas verdades ocultas ou ainda injetar nela a racionalidade lógica. Ele não busca explicações, sentido ou razão no curso das coisas; ele não pretende falar de um universo regido por leis que podem ser perfeitamente desvendadas pela inteligência. Não se trata de encontrar uma racionalidade no caos, mas de aprender a se situar no caos que é a vida. Ao invés de ficar nas ilusões da lógica, Nietzsche convida o leitor a transbordar os limites do intelecto e a se debruçar sobre a infinita prodigalidade da vida.
2 Os seis tópicos da história do platonismo (ou do niilismo)
Heidegger (2007, p. 181-185) afirma que o platonismo não pode ser apenas identificado com o momento em que Platão vive ou mesmo com o momento em que vivem aqueles que se afirmam seus discípulos. Para ele há seis formas de platonismo que se perpassam toda a história do pensamento ocidental.
O primeiro tópico está relacionado a Platão propriamente dito e é aquele em que o mundo verdadeiro é passível de ser alcançado; não alcançado por qualquer homem, mas pelo sábio, pelo sujeito virtuoso. Para tal esse homem virtuoso deve se desviar do sensível e de todas as suas seduções e se dirigir para o supra-sensível, o que exige desse homem uma recusa desse mundo em que vive.
O segundo tópico está relacionado ao cristianismo e à apropriação que a filosofia cristã faz do platonismo. Aqui o mundo verdadeiro é inatingível por agora, é inatingível nessa vida, inatingível durante a existência terrena, mas é prometido ao devoto, ao virtuoso, ao homem de bem. Logo, também aqui a vida é depreciada e o supra-sensível é prometido como além. E é exatamente por sua diferença com este mundo que o mundo supra-sensível se torna mais legítimo e mais merecedor do atributo verdadeiro.
O terceiro tópico está relacionado com Kant e com a ideia de que o mundo verdadeiro é indemonstrável, mas mesmo assim é pensado como um compromisso, como um imperativo. O supra-sensível é aqui pensado como um postulado da razão, estando fora de toda experimentabilidade e demonstrabilidade, mas precisa subsistir para salvar a legalidade da razão, para dar a ela um fundamento suficiente.
O quarto tópico está relacionado com o idealismo alemão e com a ideia de que o mundo verdadeiro é inatingível e também desconhecido. Assim sendo, não pode ser nem redentor nem mesmo um imperativo – dele não se pode ficar nem a favor nem contra. Esse momento da história do pensamento é o que Nietzsche vai chamar de primeiro bocejo da razão, é a razão despertando para si mesma e irrompendo um novo dia.
O quinto tópico está relacionado com a filosofia positivista que despreza o mundo verdadeiro enquanto tal, que afirma que a ideia de mundo verdadeiro não serve mais para nada e que não obriga os homens a nada. É uma ideia que se tornou inútil, supérflua e, portanto, uma ideia que precisa ser suprimida. O problema é que aqui ainda subsiste o mundo sensível como referente, que ocupa e mantém ocupado seus pensadores. Ainda não é possível aqui superar a dualidade sensível/inteligível, ainda não se operou a transvaloração dos valores que Nietzsche anunciará.
O sexto tópico é exatamente o momento em que com a supressão do mundo verdadeiro, suprime-se também o mundo aparente. É o meio dia que fala Zaratustra, o instante da sombra mais curta e o fim do erro mais longo. No fim do platonismo encontra-se a decisão quanto à metamorfose do homem, quando o último homem pode ser superado. É o ponto culminante da humanidade e o despontar da derradeira filosofia de Nietzsche – a metamorfose do homem, o momento em que o além homem, que o super homem pode começar.
Quando o homem terá se livrado definitivamente de qualquer forma de platonismo? “O homem, até aqui, é aquele homem cuja existência e compreensão de ser são determinadas pelo platonismo em algumas de suas formas ou na mistura de muitas dessas formas. O último homem é a consequência necessária do niilismo que não foi subjugado. O grande perigo visto por Nietzsche é o de que se permaneça junto ao último homem, junto a uma mera ramificação, junto a uma expansão e banalização crescentes do último homem” (HEIDEGGER, 2007, p. 185).
3 A solidão do filósofo do perigoso
“Verdade é o tipo de erro sem o qual uma espécie de seres vivos não poderia viver. O valor para a vida decide em última instância” (NIETZSCHE, 2008a, III, I, § 493, p. 264). Por ser meio para a conservação do homem, ela se legitima. Ou seja, ele faz uso do intelecto ou antes de uma prática intelectual que está em estreita relação com a sua conservação, que lhe é necessária, e portanto, estimada e protagonista. Isso não significa dizer que não haja no homem outras forças, outras potências que lhe permitam outras formas de pensar.
Quando se acredita que a verdade existe, toda a vontade de investigar, de buscar, de experimentar, fica paralisada. Mais do que isso, ela passa a ser objeto de reprovação porque se identifica à dúvida a respeito da verdade. Ou seja, a vontade de verdade impede que a forças da vida se tornem visíveis.
Daí surge o afeto da preguiça em que constata que obedecer é mais confortável que examinar: “é mais lisonjeiro pensar “eu tenho a verdade” do que só ver escuridão em torno de si” (NIETZSCHE, 2008a, II, III, 452, p. 243), porque isso tudo acalma o homem, facilita a sua vida, lhe dá confiança para seguir em frente. Todas essas invenções só são possíveis sob o pressuposto que a verdade existe. Em resumo, são as vantagens que o homem obtém dessa crença que servem como fundamento da própria verdade. Daí Nietzsche dizer que o que sempre se quis foi a crença e não a verdade (2008a, II, III, 455, p. 245).
Para Nietzsche o homem não se salvará pelo conhecimento, mas sim pela criação (NIETZSCHE, 1984b, § 84, p. 51), o que implica em ter a coragem de desprezar todo o arsenal proposicional da ciência. Daí a solidão terrível do filósofo – Nietzsche sabe que “o homem científico é algo fundamentalmente diferente do filósofo” (II, III, 420, p. 222), embora a vulgaridade pós-moderna só enalteça e valorize o primeiro.
Assim compreendido, o pensamento clássico limita-se a ser uma autoadulação do sujeito, uma conformação da natureza às suas ideias, descrevendo leis e princípios que a sua capacidade intelectiva consegue conceber e demonstrar. Qual a consequência de se fazer do pensamento uma autoadulação do sujeito? Resposta: todo o conhecimento se torna uma simples ilusão e a vida, em toda a sua grandiosidade e potência fica-lhe negada. Isto é, ao voltar-se apenas para si, o homem dá as costas para a vida. É preciso que levante o rosto e se ponha a alcançar a direção do pensamento. A vida pode ser reanimada e iluminada desde que o homem se desafeiçoe de si mesmo e, consequentemente, da imagem artificial do universo que resulta deste apego.
Compreender que são as conveniências morais do homem, as conveniências do seu bem-estar que levam o homem a elaborar as suas verdades (NIETZSCHE, 1984b, § 70, p. 45), possibilita outra experiência do que significa pensar e, por conseguinte, sugere uma imagem do universo que não esteja ancorada nesse paradigma.
Nietzsche fala em nome de uma filosofia do futuro em que uma nova raça de filósofos, filósofos do perigoso, como ele chama (1992a, 2, p. 11), homens de espírito livre terão pendor e gosto diverso dos metafísicos clássicos, que sempre buscaram alcançar o que se chama solenemente “verdade”.
Uma nova filosofia trará não a tristeza, mas um nova forma de felicidade, com gosto para a alegria, com sentidos mais risonhos, com mais sutileza e inocência e não com esse “mau gosto, essa vontade de verdade, de ‘verdade a todo custo’… já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu” (2001, prólogo, 4). A necessidade de verdade é uma necessidade de vulgaridade. Permitir-se cansar-se da regra, cansar-se da eternidade, deixar de sentir o chão sob os pés, flutuar, faz do homem o anti-vulgar, traz a experiência da vida rara. Porque a vida é, antes de tudo, caos, isto é, o abismo que se abre, a ausência de ordem, de divisão, de forma, de beleza ou sabedoria como ambicionam os antropomorfismos estéticos a ‘humanização estética’, como diz Heidegger (2007, p. 271). Ou seja, o Universo não possui nenhum desses atributos (perfeição, beleza, ordem) e nem quer se tornar semelhante a eles. Esse modo de compreender que produzem os juizos estéticos e morais habituais estão assentados ainda na forma Deus ou nas suas sombras, no humanismo. Daí Nietzsche perguntar: “quando é que todas essas sombras de Deus não nos obscurecerão mais a vista? Quando teremos desdivinizado completamente a natureza?” (2001, III, 109).
A dificuldade em alterar a forma clássica, solidificada de pensar, está em que o homem é sempre impelido para o beco de sua humanidade com todas as suas representações e determinações; suas ideias e teorias sempre provém de algum canto desse beco. Como diz Heidegger, o homem transforma incontornavelmente o que é visado em algo seu (2007, p. 277).
Por isso a filosofia de Nietzsche é uma filosofia de um tempo ainda por vir, quando o espírito cativo tiver sido ultrapassado. O espírito livre (que talvez nunca tenha existido até hoje) é a compania necessária para que a alma se mantenha alegre; é aquele que expressa uma tenaz vontade de saúde. Nietzsche diz que embora fantasmas no tempo presente, eles podem aparecer de forma lenta e gradual em um tempo futuro.
Até hoje a vida se desenvolveu ao mínimo, do modo mais estreito, carente, incipiente. A Filosofia do futuro anuncia uma nova vida. “Que forma terá a sociedade humana sob a influência de um tal modo de pensar? “, eis a pergunta de Nietzsche (2000, I, 21, p. 31), de certo modo respondida mais adiante: “um novo hábito, o de compreender, não amar, não odiar, abranger com o olhar, pouco a pouco se implanta em nós no mesmo chão, e daqui a milhares de anos talvez seja poderoso o bastante para dar à humanidade a força de criar o homem sábio e inocente, da mesma forma regular como hoje produz o homem tolo, injusto, consciente da culpa – que é, não o oposto, mas o precursor necessário daquele” (2000, II, 107, p. 83, grifo do autor).
4 O valor do ilógico para o espírito livre
Embora tendo como fonte o interesse humano, a posse da verdade implica a renúncia de muitas outras possessões a fim de que esta sensação seja preservada (NIETZSCHE, 2001, I, 13). Deve-se fechar os olhos para a vida em sua infinita diversidade, caoticidade desnorteante, para manter tal crença. É necessário, pois, ir além da verdade como dado, como segurança, como evidência. Ir além do bem e do mal é também ir além do verdadeiro e do falso (ANDREAS-SALOMÉ, 1992, 148-149), é ultrapassar essa dicotomia artificiosa.
Diz Nietzsche:
Poder tolerar a contradição é um elevado sinal de cultura… o homem superior deseja e evoca para si a contradição, a fim de ter uma indicação sobre a sua própria injustiça, que até então desconhecia. Mas ser capaz de contradizer, ter boa consciência ao hostilizar o habitual, o tradicional e o consagrado – isso é mais do que essas duas coisas e é o que há de verdadeiramente grande, novo e supreendente em nossa cultura, o maior dos passos do espírito liberto: quem sabe isso? (2001, IV, 297, grifo do autor).
O pensamento que se pretende verdadeiro deve evitar a todo custo a contradição e faz da lógica a ciência propedêutica que organiza todas as operações mentais, produzindo a demonstração certeira, mas para Nietzsche, “devíamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas… Para isso é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência” (NIETZSCHE, 2001, prólogo, 4). É preciso também que “não se deixe invadir pela ciência” (NIETZSCHE, 2007, 315), dado que o indivíduo nobre é aquele em que a razão faz um pausa (NIETZSCHE, 2001, I, 3).
É difícil dizer essas coisas, mas Nietzsche compreende, nesse sentido, o valor do falso, do ilógico, das contradições como poderes que estimulam a vida e intensificam a vontade (ANDREAS_SALOMÉ, 1992, p. 152). Para ele, só se é frutífero se se é rico em contradição, se não se tem a alma em paz, se não se optou pelo cansaço. Toda renúncia à guerra, é também renúncia à vida (1988, p. 40). E é também nesse sentido que Nietzsche diz que os fanáticos da lógica são insuportáveis com as vespas (2005, p. 83).
Como diz Deleuze em seu Abecedário, o verdadeiro charme das pessoas reside no momento em que elas perdem as estribeiras, quando não sabem muito bem em que ponto estão. E, complementa o filósofo francês, só se pode amar uma pessoa se se é capaz de captar o pequeno grão de loucura que há nela (1988-1989).
Por isso Nietzsche não se cansa de falar da transvaloração de todos os valores. Ele inicia o prólogo do seu Humano, demasiadamente humano, dizendo que todos os seus livros contêm uma espécie de incitamento à inversão dos valores habituais e dos hábitos valorizados (2000, prólogo, 1, p. 7).
O homem do espírito livre é aquele que descobre a possibilidade de criar novos valores diferentes dos que até então são reverenciados e reproduzidos, portanto aquele que contrasta com o homem do espírito moral. A moral clássica produziu-se como uma fábula, levando à ideia de que o homem se torna responsável por seus atos. Segundo Nietzsche, inicialmente o homem chamava as ações de boas ou más de modo isolado, isto é, sem qualquer consideração por seus motivos, mas apenas considerando as suas consequências – se seram úteis ou prejudiciais. Aqui bom e mau eram efeitos da ação. A seguir, o homem passou a considerar as ideias de bom e mau inerentes às ações, isto é, o bom e o mau se tornaram a causa das ações. posteriormente, o homem condicionou as ideias de bom e mau aos motivos das ações, de modo que todo ato poderia ser julgado por uma intenção boa ou má. Por fim, não apenas o motivo, mas todo o ser do homem ganhou o atributo de bom ou mau. Assim, na história da moral, de forma sucessiva, o homem se tornou responsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus motivos e por fim, pelo seu próprio ser (2000, II, 39, p. 47).
Criou-se uma moral antinatural como se natural fosse e por isso o leitor de Nietzsche deve emergir de seus livros com desconfiança e reticência frente a essa moral que combate, que condena os instintos da vida. Isso para Nietzsche é a decadência, a vitória da vida moribunda, enfraquecida, cansada, condenada (1988, p. 41). O leitor de Nietzsche deve, no mínimo, levantar uma suspeita, desenvolver um certo desprezo, ao mesmo tempo que olhar com coragem frente ao mundo, enfim, ter ou procurar ter o que ele chama de espírito livre (2000, prólogo, 1, p. 8).
Em realidade, o homem buscou no pensamento não o que ele pode, não sua ousadia mais desconcertante, com sua paixão mais tormentosa, mas buscou um poder, um futuro, uma saúde. No homem doente que se criou com o idealismo, são sempre as deficiências que falam em primeiro lugar. Este tipo de homem busca na filosofia apoio, tranquilização, medicação, redenção, alheamento de si. Ou seja, o pensamento aí produzido é um pensamento submetido e pressionado pela atmosfera da doença e da fraqueza, o que faz do espírito não algo triunfante, mas um espírito esmaecido, afastado da atividade maior proporcionada ao homem. Diz Nietzsche:
toda filosofia que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora, permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo (2001, prólogo, 2).
O homem do espírito livre compreende que “o caráter do mundo é o de um caos eterno; não devido à ausência de necessidade, mas devido à ausência de ordem, de encadeamento, de formas, de beleza, de sabedoria” (NIETZSCHE, 2001, § 109). Nietzsche sentencia: “Não existe nenhuma verdade; não há nenhuma propriedade absoluta das coisas, nenhuma ‘coisa em si’. – Isso mesmo é um niilismo, e deveras o mais extremo” (2008a, I, I, 13, p. 33).
5 O triunfo das forças reativas e a transvaloração de todos os valores
Outra forma de compreender o triunfo do niilismo, é compreender a história do pensamento como um triunfo das forças reativas. Para Nietzsche, o que constitui os corpos são forças, que nunca aparecem isoladamente, mas sempre em composição com outras. Há, para ele, dois tipos de forças: as forças ativas e as forças reativas (DELEUZE, s/d, p. 63-66).
As forças ativas têm por essência comandar, enquanto que as forças reativas têm por essência obedecer; as primeiras são forças nobres, criativas, que visam conquistar, experimentar, enquanto as segundas possuem uma ânsia de previsão, de conservação, de desejo de manutenção do que está feito.
As forças reativas só podem se expandir no mundo reprimindo, mutilando e aniquilando outras forças. Logo, trata-se de uma luta, de uma batalha que resulta no comando de uma das forças, sem que a outra deixe de existir ou seja completamente aniquilada.
A história do pensamento humano é a história do domínio da força reativa sobre a força ativa e, por isso, o homem ocupa sempre o lugar de escravo e a sua vida é uma vida de reatividade. O estado, a moral, a religião são expressões do domínio das forças reativas que trazem ao homem a ficção da conservação eterna.
Aliás, não apenas na história da filosofia, mas na história do homem e não apenas na história do homem, mas na própria história da vida na Terra, houve um triunfo das forças reativas, uma vez que que ao tornar-se adaptativa e reguladora, a vida na Terra fez triunfar o não sobre o sim (DELEUZE, 1990, p. 23).
Entretanto, é preciso esclarecer que as forças reativas não deixam de ser reativas ao triunfarem, assim como o escravo não deixa de ser escravo ao tomar o poder. O triunfo do niilismo significa o abandono da criação em proveito do domínio, do poder, dos valores estabelecidos, isto é, das coisas vistas do lado pequeno (DELEUZE, 1990, p. 24).
As forças reativas são sempre as forças da negação – seu modelo é o da negatividade: refutação de erros, de ilusões, de falsas opiniões. Eis o que era o método socrático, que pela ironia levava à demonstração da incoerência, contradição ou inconsequência do seu interlocutor. A dialética socrática é essencialmente negativa ou reativa, porque só se impõe como meio de refutação, sem nada afirmar. Sócrates coloca o interlocutor em dificuldade, mas ele mesmo nada afirma, daí o caráter aporético dos seus diálogos.
Diferentemente do que possa parecer, Nietzsche não propõe a rejeição das forças reativas com o intuito de conservar apenas as forças ativas, porque tal prática seria, ela mesma, reativa! Rejeitar as forças reativas seria naufragar em outra reatividade, mas o que é preciso fazer é aprender a domesticar as forças reativas para que elas não comandem a sua vida.
É em A Genealogia da moral que Nietzsche analisa em pormenor a maneira pela qual as forças reativas triunfaram e a maneira pela qual triunfaram. O ressentimento, a má consciência e o ideal ascético são as figuras do triunfo das forças reativas e, por isso, também podem ser ditas formas de niilismo. Com o ressentimento, há a inversão dos valores que produz o acusador perpétuo; com a má consciência há a interiorização da dor que produz o homem culpado e domesticado; e o ideal ascético reenvia o homem para a mais profunda mistificação, a do ideal que compreende todos os outros, todas as ficções da moral e do conhecimento, uma vontade que quer o nada.
Ao sofrer, o homem quer uma causa para o seu sofrimento. Quando culpa o outro, ele é o homem do ressentimento, mas quando essa culpa muda de direção e o homem para a acusar a si mesmo, ele se torna o homem da má consciência. Há muito tempo o homem não cessa de pensar em termos de ressentimento (a culpa é sua!) e má consciência (a culpa é minha!), há muito tempo não possui outro ideal que não o ideal ascético. O sentimento de culpa aparece quando o homem está ressentido consigo mesmo e nada é pior do que esse dilaceramento interno que o esgota, que o torna pesado, impedindo que ele viva com a leveza de um dançarino. A má consciência traz a vontade do sujeito de se torturar, torna o sujeito acuado dentre de si mesmo e aprisionado para fins de domesticação. É o homem do suplício eterno, eterno culpado, eterno devedor, um ser desprezível que não vê saída desse labirinto de ideia fixa (NIETZSCHE, 1998b, II, 22) O ressentimento nasce da debilidade e será tão mais danoso quanto mais o homem for fraco. As naturezas fortes e ricas o entendem como um sentimento supérfluo (NIETZSCHE, 2017, p. 31).
Ou seja, o homem é miséria, incapacidade de vida, sofrimento que não consegue suportar e por isso a invenção dos deuses, da metafísica, de outros mundos que dêem a ele condições de viver a vida.
Referências
ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992.
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.
______. Poética. In: ______. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1979.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Editora Iluminuras, 2006.
______. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1990.
______. Nietzsche e a filosofia. Porto: rés, s/d.
______. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: 34, 1992.
______. L’Abécédaire de Gilles Deleuze. In: <www.youtube.com/channel/UCrJ6D6O3xldTVjJVagmrxOg>. Acesso em: 18 out.2019.
______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
FINK, Eugen. La filosofia de Nietzsche. Madrid: Alianza editoria, 1994.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Volume I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
_______. Nietzsche. Volume II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Rio de Janeiro: Editora Elfos, 1995.
______. A gaia ciência. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
______. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
______. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1998.
______. Aurora. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
______. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Editora Sete letras, 1996.
______. Crepúsculo dos ídolos. Lisboa: Edições 70, 1988.
______. Ecce homo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
______. Ecce homo. São Paulo: editora Companhia das letras, 1995.
______. Genealogia da moral. São Paulo: editora Companhia das letras, 1998.
______. Humano, demasiadamente humano: Um livro para espíritos livres. São Paulo: editora Companhia das letras, 2000.
______. Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-
moral In O livro do filósofo. Porto: Rés, 1984.
______. O Anticristo: Maldição do cristianismo. Rio de Janeiro: Clássicos econômicos Newton, 1996.
______. O livro do filósofo. Porto: Rés, 1984.
______. O nascimento da tragédia. 2 ed. São Paulo: editora Companhia das letras, 1992.
______. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. São Paulo: Hedra, 2008.
______. O viajante e sua sombra. São Paulo: Escala, 2007.
ULPIANO, Claudio. A grande aventura do pensamento. Rio de Janeiro: Funemac Livros, 2013.
______. Nietzsche e o espírito de vingança. Aula de 08/08/1989. Disponível em: <http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=2626>. Acesso em: 06 set. 2015.
______. A forma do falso. Aula de 24/08/1995. Disponível em: <http://www.claudioulpiano.org.br>. Acesso em: 08 out. 2010.
UNTERSTEINER, Mario. A obra dos sofistas. São Paulo: Paulus, 2012.