Isaac Asimov, um escritor profissional
Isaac Asimov era até recentemente o autor mais prolífico da literatura dos Estados Unidos, com mais de 400 livros registrados sob sua autoria. Não acho que tenha sido ultrapassado, por enquanto. Deve-se notar que essa cifra também inclui as antologias organizadas por ele, guias comentados de livros clássicos (a Bíblia, Shakespeare, etc.) e trabalhos que, mesmo sendo de natureza organizacional, não deixam de ser trabalhos autorais, na minha opinião. A isso devem somar-se suas dezenas de romances, coletâneas de contos e de artigos de divulgação científica, livros de memórias, correspondência e obras de não-ficção em geral.
Uma produção tão caudalosa só é possível a uma mente com certas características que necessariamente se refletem na sua escrita. A escrita cultivada por Asimov condicionou em grande parte a sua literatura, que é cheia de qualidades e de defeitos.
Entre as qualidades: 1) Uma imaginação rica para conceber histórias, ambientes e situações dramáticas absorvidas principalmente na pulp fiction, leitura que alimentou sua formação de garoto e adolescente, e de propor variantes criativas em torno delas. 2) Uma prosa eficiente, rápida, vívida, clara. 3) Uma memória eidética que o ajudava a desenvolver argumentos complexos sem a necessidade de pesquisar a fundo qualquer assunto que já tivesse estudado. 4) Uma compreensão profunda das ciências e do método científico, que o transformou num dos maiores divulgadores populares da ciência em sua época.
Entre os defeitos: 1) Uma certa mentalidade de perpétuo adolescente, que torna datadas muitas das suas caracterizações de personagens, os quais do ponto de vista literário geralmente parecem “figuras de papelão”, sem muita profundidade. 2) Um conservadorismo (ou comodismo) inercial na descrição dos costumes sociais, que o levava a manter num milênio remoto pequenos hábitos – como o de fumar cigarros – sem questioná-los do ponto de vista histórico ou sociológico. 3) O apego a fórmulas, necessário no autor que vive de escrever de forma contínua, compulsiva; uma vez estabelecida uma fórmula, ele se apegava a ela como recurso para produzir contos em grande velocidade e em escala industrial.
A marca que deixou na ficção científica se deve a uma meia dúzia de grandes idéias, que transformaram o gênero ao longo das décadas de 1950 e 1950, e ainda hoje servem de caminho para que novos autores desenvolvam novas variantes dessas idéias. As Três Leis da Robótica são um bom exemplo disso, pela sua simplicidade, sua solidez hierárquica (cada lei depende das demais), a facilidade de entendimento por parte de qualquer leitor, e a riqueza de situações narrativas que se pode extrair delas (e das possibilidades de violar suas proibições).
Asimov defendia e praticava uma literatura fluente, direta, sem exibicionismo de estilo, sem “viagens” introspectivas, sem experiências de linguagem. Sua estética está condensada num artigo famoso, reproduzido em várias coletâneas: “O vitral e a vidraça” (“The mosaic and the plate glass”, Isaac Asimov SF Magazine, agosto de 1980). Essa tese se apoia numa comparação simples. De um lado, temos o vitral de igreja, colorido, semi-translúcido, retrabalhado por um artista, e para o qual olhamos para admirar sua beleza: o vitral é um fim em si. Asimov faz disto uma metáfora da “literatura artística”, que procura embevecer o leitor pela beleza da própria linguagem. E do outro lado temos a vidraça, uma lâmina de vidro totalmente transparente, que não quer chamar a atenção sobre si própria, mas apenas servir de veículo para mostrar o que há por trás dela, a “realidade em si”. Seria essa a prosa simples, direta, asimoviana.
O autor ainda ironiza um pouco a prosa literária, dizendo que não é o vitral, mas a vidraça, o indício de uma civilização mais adiantada. Segundo ele, vitrais coloridos já existiam desde o terceiro século a.C., enquanto que a vidraça transparente, como a conhecemos hoje, só pôde ser produzida a partir do século XVII. (Não conferi esses dados – confio nas informações dele.)
Asimov demonstra nessa sua “profissão de fé”, um certo nariz-torcido com relação à prosa literária, rebuscada, que chama a atenção do leitor para si própria e não para a história que é contada. Ele reconhece o valor desse tipo de literatura, mas alerta: “Escrever de tal modo que a escrita seja imperceptível, que as ações descritas passem diretamente para a mente do leitor como se ele as estivesse assistindo pessoalmente, é uma arte difícil e necessária”.
Uma arte difícil, necessária, e exaustivamente perseguida na imensa maioria das oficinas literárias e cursos de escrita criativa que funcionam hoje em dia no mundo ocidental.
O argumento do autor é válido até um certo ponto, mas ele parece ignorar que toda narrativa é decisão, é escolha, é imposição de uma subjetividade verbal. Não existe narrativa neutra “que se limite a mostrar a história”, ainda mais numa história de ficção, que é subjetividade pura. Acreditar numa linguagem literária neutra é como acreditar que a fotografia é neutra, a câmera cinematográfica é neutra, porque tudo que fazem é apenas “mostrar a realidade tal como ela é”. Uma perspectiva ingênua, e que já havia sido desmontada pelos teóricos literários antes mesmo do enunciado do autor de Fundação.
Autor profissional até a medula, destinado a ganhar a vida em cima da máquina de escrever, ele se gabava de jamais revisar um texto. Do jeito que aquelas trinta ou quarenta laudas saíam da máquina (dizia ele), iam direto para um envelope e o correio, para a revista com mais possibilidades de comprar aquele tipo de história. Ele só revisava ou reescrevia esse primeiro rascunho se acontecesse de aquela história ser recusada por todos os mercados possíveis. A ser verdade isso (nunca se sabe, porque ele tinha um temperamento expansivo, brincalhão, gabola), seus contos são a melhor ilustração possível das vantagens desse tipo de escrita, e explicam em grande parte aquele título de “O Autor Mais Prolífico”.
Curiosamente, não é na ficção científica, mas na literatura policial, que Asimov se revela um competentíssimo cultivador da chamada “literatura de fórmula”. São contos com uma estrutura básica que se repete obrigatoriamente todas as vezes, mudando apenas os diálogos, os pequenos detalhes cotidianos, e a cada vez trazem um problema novo, que será solucionado sempre do mesmo modo.
Os contos dos Viúvos Negros constituem um pequeno anexo à obra monumental de Asimov, e nos revelam o seu lado de garoto formado (como tantos de sua geração) na leitura das aventuras de Sherlock Holmes. Os Viúvos Negros da ficção são uma imitação de grupo reais, como os “Baker Street Irregulars”, do qual ele fazia parte: admiradores de Conan Doyle que uma vez por mês jantavam juntos num restaurante de Nova York. Asimov inventou seu grupo de intelectuais fictícios (dando a alguns características físicas ou de comportamento de alguns dos seus colegas) como pretexto para seus contos detetivescos.
As histórias dos Viúvos Negros mostram, na riqueza de suas variedades, e no rigor dos seus raciocínios, que o método científico não é privilégio da chamada “ficção científica”; na verdade, o método “dedutivo-detetivesco”, criado por Edgar Allan Poe, Conan Doyle e outros menos conhecidos, mostra que este ramo da narrativa policial corre em paralelo com a ciência.
Os contos dos Viúvos Negros seguem uma fórmula fixa: acontece o jantar periódico, um convidado (há sempre um único convidado por jantar) conta algum fato misterioso ou inexplicável que lhe aconteceu, os Viúvos Negros o crivam de perguntas, e o mistério acaba sendo solucionado pelo garçom, Henry, que é também membro do clube.
As histórias desse clube foram reunidas em cinco coletâneas: Tales of the Black Widowers (1974), More Tales of the Black Widowers (1976), Casebook of the Black Widowers (1980), Banquets of the Black Widowers (1984) e Puzzles of the Black Widowers (1990). Uma coletânea póstuma, The Return of the Black Widowers (2003) recicla histórias dos volumes anteriores.
No conto “The Three Numbers” (em More Tales…), Asimov, que sempre teve o hábito de colocar pequenos posfácios após cada história, explica um elemento básico na criação não só desses contos, mas de qualquer narrativa detetivesca, ou mesmo de qualquer mistério científico. O conto é sobre um cientista (incomunicável num hospital) em cujo cofre está guardado um segredo cobiçado por espiões soviéticos, nos termos habituais do gênero. O segredo do cofre, uma combinação de letras e números, foi escrito num papel, mas ninguém consegue fazê-lo funcionar. Henry, o garçom, percebe finalmente que a fórmula havia sido copiada numa máquina de escrever comum, e que onde todo mundo estava enxergando o número “1” havia na verdade a letra “L”, só que minúscula. Nas antigas máquinas de escrever a letra “l” minúscula servia como número 1.
E Asimov explica:
Eu sei que tenho em mãos a possibilidade de uma história dos Viúvos Negros quando consigo pensar em alguma coisa que pode ser vista de duas maneiras diferentes, e somente Henry a vê da maneira certa. Certa vez, eu estava sentado à máquina ansioso por uma idéia para um conto dos Viúvos Negros, porque naquele dia estava mais a fim de algo assim do que o trabalho que tinha para fazer naquele momento. Resolvi olhar para a máquina e ver se havia alguma ambiguidade útil que eu pudesse extrair do teclado. Depois de pensar um pouco, descobri essa, e pronto, eu tinha a minha história.
Esse pequeno episódio ilustra bem a mentalidade de um autor de mente inquisitiva, inquieta, cheia de curiosidade por tudo que há à sua volta. Ele escreve por dinheiro, escreve rápido, é capaz de produzir uma história de cerca de 17 páginas, como essa, em um ou dois dias; basta ter a fagulha da idéia central e todo o restante irá sendo metodicamente improvisado, depois de meia hora de planejamento quanto à situação geral em que a idéia irá se encaixar.
Asimov é tido como um dos nomes principais da ficção científica em sua geração, ao lado de seus amigos Arthur C. Clarke, Ray Bradbury e Robert Heinlein. Tem pontos em comum e enormes diferenças com todos eles. Nunca atingiu o brilhantismo (excessivo às vezes) da prosa poética de Ray Bradbury, nem o vigor másculo e aventureiro da ficção de Heinlein. Com Clarke ele compartilha uma certa timidez na criação de tipos humanos e de personagens densos (mulheres principalmente), mas Clarke lhe é superior na ousadia da visão cósmica, que chega aos limites do misticismo. Asimov, entre eles, foi o que produziu uma obra mais extensa e variada, iniciada muito cedo, aos dezoito anos, quando vendeu sua primeira história de FC ao editor John W. Campbell, em 1938.
Ele contava um sonho que recordou com enorme clareza ao despertar (segundo ele, algo raro de lhe acontecer). Sonhou que morreu e foi para o Céu, que consistia nos habituais relvados verdejantes, nuvens, ar perfumado e coros celestiais à distância. Ele perguntou se era o Céu, e o Anjo ao lado confirmou. Isaac protestou: “Mas meu lugar não é aqui. Eu sou ateu.” “Não houve erro nenhum,” disse o Anjo; “quem decide quem vem pra cá somos nós.” Ele olhou em volta e perguntou: “Será que tem aqui uma máquina de escrever que eu possa usar?” E ao despertar, o significado do sonho ficou claro para ele. O Paraíso, na sua cabeça, era o ato de escrever, e ele achava que já estava no Paraíso há cinquenta anos, e sempre tinha sabido disto.