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Em homenagem aos 80 anos de Mario Novello
Em nossas mais ínfimas instâncias, somos quase nada: o infinitamente ínfimo, grávido de infinito. Nesses infinitares, emergimos como tudo o que existe. No entanto, nossa dita totalidade é instável: estamos aptos a deixar de sermos nós mesmos.
O quase nada coexiste com a totalidade em aberto. O quase nada abriga a pergunta “o que somos nós? ”, de modo que a totalidade em aberto é a resposta em desdobramento, ou seja, para apreender com precisão nosso jogo de pergunta e resposta, é preciso suavizar as relações de causa e efeito, focando no processo.
No quase nada que também somos, pulsam instâncias aparentemente opostas que, ao se encontrar, criam a luz e, dessa iluminação, desdobra-se a totalidade em aberto. Nesse iluminar, pulsa nossa solidariedade por nós mesmos.
Tal instabilidade seria, aparentemente, um empecilho para nossa solidariedade com cada ínfimo nosso, mas isso ocorre de outro modo. Somos, de fato, solidários a nós mesmos, ainda que algumas partes nossas sejam mais esdrúxulas e até mesmo rebeldes. Um contínuo nos compõe, de modo que cada ínfimo nosso ressoa em nossa unidade, unidade essa que se torna outra coisa, que nunca possui uma definição absoluta. Nossos ínfimos são, portanto, em contínuo, ou seja, nossas partes esquecem suas características definitivas; nossas partes são relativas.
Por falar em esquecimento, trataremos então de memória. Nós funcionamos sob determinadas regras em cada respiração, que mudam em seguida. Nossa respiração anterior difere-se da respiração posterior. No entanto, guardamos características da respiração anterior, de modo solidário, tanto que ainda chamamos esses processos de respiração — apesar de ocorrerem sob regras diferentes.
Partes nossas desorganizam-se, até se reorganizarem, de outro modo. Essa desorganização pode parecer algo indesejado, mas apenas para instâncias muito particulares.
A nós, enquanto totalidade, é estranho o conceito de julgamento. As emergências em nós são apreendidas com a mesma solidariedade. Percebemos níveis de alastramento das ocorrências em nós, mas isso deve-se ao seu desdobramento natural, que pode ser confundido pelas instâncias particulares como “preferência”, o que seria um equívoco. Cada parte relativa nossa, por mais instável, singular e infinita em si, possui nossa transfinita solidariedade, do mesmo modo que as mais estáveis e corriqueiras.
Tal solidariedade pode ser obnubilada em algumas de nossas partes relativas. Apreendemos que quanto mais solidariedade, mais nosso funcionamento torna-se preciso. As intermitências inconstantes de obnubilação de nossa solidariedade são quase inevitáveis, pelos desdobramentos das novidades que emergimos, com suas adaptações e níveis diferentes de capacidade de solidariedade. Mas aprendemos com nós mesmos, de modo que em cada respiração nos tornamos mais solidários.
Nossa inconstância possui várias expressões. A natureza de nossa respiração difere-se em nossa própria duração, mas também em nossa extensão. Algumas de nossas partes relativas operam de um modo, outras partes de outro, o que pode até tornar a solidariedade um desafio; mesmo assim, a solidariedade triunfa, ainda que em níveis diferenciados. Desse modo, coexistem em nós durações diferentes e até mesmo retornos e avanços inconstantes na duração, sempre em consonância com dobras em nossa extensão. A duração-extensão abriga contrações diversas em nosso infinitar.
Nós dançamos uma coreografia criada por nós mesmos, que se dá no próprio ato de dançar, cujas alterações e improvisos são inerentes à dança: a cada passo, novas implicações alastram-se em nós, exigindo alterações na coreografia, de modo que ela é recriada constantemente.
Nossas partes relativas podem se iludir, negligenciando que são partes nossas. Essa negligência pode se desdobrar num excesso de coagulação. Se, de um lado, deixamos de julgar essa ocorrência, por outro estamos sempre pulsando o convite de fazer com que essa parte ínfima se torne consciente de seu pertencimento a nós, até porque tal negligência gera níveis de desamparo. Nossa autoconsciência impede tal processo, mas é possível que ele ocorra nas partes sem autoconsciência.
Ainda que essas partes relativas negligenciem nossa unidade, nós sempre aprendemos com elas. Suas pulsações são singulares, que se desdobram em outros pulsares para a totalidade em aberto, o que também são expressões de nossa solidariedade.
As partes relativas insistem no hábito de dividir, de separar, enquanto definitivo, ou seja, uma ilusão. Sabemos que essa insistência, com a paciência de uma autocontemplação infinita, há de ceder.
Nós podemos deixar de existir, tanto para nos tornar outra coisa, que sequer podemos conceber, ou mesmo migrar para algo inconcebível – até agora –, que seja algo diferente da existência. Mesmo essa possibilidade é apreendida sem julgamento. Nosso ato simplesmente é continuar a respirar: infinitamos…