Universo solidário
- Giordano Bruno em sua análise do infinito e do universo expõe uma visão grandiosa sustentada em uma conexão de sua cosmologia com a ética. Segundo ele, cosmos e sociedade se correspondem intima e indissoluvelmente. Passados mais de quatrocentos anos de seus comentários, como essa concepção do religioso rebelde de Nola pode se atualizar?
Para entender essa orientação vamos seguir a estrada que a cosmologia oferece e analisar alguns exemplos de cenários de universo elaborados recentemente e a noção de solidariedade que daí emerge. É no desenvolvimento desse conceito que poderemos efetuar o aggiornamento da visão de Bruno. Somos então levados a tratar, na metacosmologia, da análise de diferentes configurações do universo em um processo continuo e aparentemente interminável de ciclos cósmicos.
A ideia de que o universo não possui somente uma configuração, a atual, é rica de consequências e requer uma análise aprofundada que gostaria de comentar, mesmo que brevemente, nesse nosso diálogo. Quero invocar alguns argumentos sobre o universo e não impedirmos nossa imaginação de frequentar essa conversa.
Começamos então distinguindo dois grandes cenários.
Em um deles, o universo é considerado como possuindo diferentes configurações que não estariam conectadas. Ou seja, idealizados universos paralelos, configurações que não interagem, como se existissem em espaços sem contacto.
Outra, que me parece mais rica de consequências, pois observável, institui um só universo com configurações distintas ao longo de sua evolução, conectadas temporalmente.
Como aquela primeira não permite comentários apoiados em observações, vou me deter na segunda proposta que me parece menos fantasiosa e pode ser desenvolvida no interior da cosmologia e sua extensão natural, a metacosmologia.
- A cosmologia contemporânea exibe uma estrutura dinâmica na qual o espaço-tempo quadridimensional é dotado de uma geometria variável controlada pelos processos gravitacionais pois embora seja ela a mais fraca de todas as quatro forças fundamentais conhecidas, graças à sua universalidade e sua característica principal de ser somente atrativa, a faz dominante nessa imensidão de centenas de bilhões de galáxias que compõem o universo.
Temos evidências de que a totalidade espaço tri dimensional possui uma dinâmica que faz com que seu volume varie com o tempo cósmico. Esse tempo cósmico, único para todos os observadores, é somente uma escolha particular e não deve ser considerado mais do que isso. Não se trata de um tempo global colado no espaço-tempo, mas somente uma particular representação útil e simples.
Em outro lugar (O universo inacabado) examinei exaustivamente a configuração do universo, no qual as características locais e global estão associadas de modo a fazer emergir a sua coerência e que descrevi com o termo solidariedade. Mas é preciso esclarecer o significado que deve ser atribuído a esse termo, como entender o sentido de descrever o universo como solidário.
A teoria mais aceita para descrever a interação gravitacional é a Relatividade Geral (RG) que propõe uma dinâmica associada à geometria do espaço-tempo e um modo simples de descrever o comportamento da matéria em um campo gravitacional.
Como consequência desse processo simplista de descrever a interação da matéria com um campo gravitacional aparece inevitavelmente a presença de singularidades, isto é, regiões onde a física não pode descrever pois as quantidades que poderiam ser observáveis, assumiriam aí valores infinitos.
Para contornar essa dificuldade, modos mais complexos de descrever o processo matéria-gravitação começaram a ser investigados nas últimas décadas e seguem hoje como principais instrumentos de análise do universo em grande escala.
- Solidariedade
Alain Supiot em sua introdução ao texto de uma coletânea realizada sob os auspícios do Collège de France (Paris, 2015) faz uma breve exposição sobre o conceito de solidariedade que resolvi transcrever aqui para entender a conexão que quero examinar na cosmologia:
Issue du droit romain, la notion de solidarité a d’abord désigné une technique du droit de la responsabilité, destinée à régler les hypothèses de pluralité de créanciers (solidarité active) ou de débiteurs (solidarité passive) d’une même obligation.
… Alors que le droit civil ne reconnaît en principe d’obligations qu’entre individus, la solidarité permet de les penser sur un plan collectif (collectivité de créanciers et de débiteurs), en l’absence de tout lien communautaire et de tout consentement individuel (ce qui permettra à la solidarité sociale de s’émanciper du contrat d’assurance). La solidarité se présente donc alors comme une pure technique purgée de toute référence dogmatique. Elle procède des faits (l’indivisibilité de l’objet d’une obligation ou la coresponsabilité des auteurs d’un dommage) ou de la volonté humaine (un engagement contracté à plusieurs) et n’impose pas de postuler une ascendance commune aux personnes qu’elle lie.
Cette objectivité apparente du concept a été renforcée par son emploi dans le vocabulaire de la biologie et des sciences sociales naissantes, où il a servi à nommer l’interdépendance des parties à l’égard du Tout, dans l’organisme vivant ou dans le corps social.
…La solidarité a ainsi acquis la capacité sulfureuse de désigner aussi bien une norme découverte par la science qu’un principe de justice sociale.
Nessa mesma conferência, Anne Cheng ao tratar do que chamou solidariedades horizontais e verticais na China antiga e depois de evocar como esse conceito aparece na versão chinesa da famosa formula final de Marx e Engels, “Proletários de todos os países, uni-vos”, ensina como esse conceito é aplicado de forma mais ampla através de uma citação de Jean Levi que diz:
L’antique tradition cosmologico-politique est réinterprétée : la solidarité intime, la correspondance entre esprit de la nature et forme de gouvernement s’efface au profit d’une relation de type métaphorique. L’harmonie profonde entre nature et société passe par l’intermédiaire d’une norme, dont l’adéquation à l’ordre universel assume la conformité de la société qu’elle régit à la raison universelle.
Cheng termina seu texto citando um pensador famoso do século 11, Zhang Zai:
.. Dans son mantra Inscriptions de l’Ouest, s’opère la magnifique synthèse entre la pensée traditionnelle confucéenne et l’apport boudhyque venu de l’Inde, qui chante une nouvelle fois la conception proprement chinoise d’une solidarité de type cosmologique et holistique…
É nessa tradição que se insere as indagações e propostas de Giordano Bruno, na conexão entre aquilo que é humano e as formas globais do universo.
Uma outra intervenção naquela conferência feita por André Pichot sobre a dualidade egoísmo-altruísmo na espécie animal poderia servir como guia para ampliar esse conceito de solidariedade. Diz ele:
…Le darwinisme est consideré comme totalement égoiste, car il suppose une lutte sans merci entre les individus, dont seuls les plus aptes à vivre sortiront vainqueurs. Autrement dit : chacun pour soi, la sélection reconnaîtra les meilleurs. Pour sortir de cet égoïsme tout en conservant les principes darwiniens, il fallait donc imaginer un comportement altruiste héréditaire ayant une valeur sélective supérieure à celle de la lutte de tous contre tous ; un comportement conférant aux individus le pratiquant un avantage tel que l’évolution le conserverait. Wallace trouva ce comportement altruiste dans l’entraide entre les individus d’un même groupe social (il dit « tribu »).
En effect, selon lui, une telle entraide entre ses membres permet à la tribu de plus facilement survivre dans la lutte pour la vie, comparativement aux tribus dont les membres ne s`entraident pas, tribus qui sont donc moins solidement soudés face à l’adversité.
O individualismo pessoal transferiu-se para o egoísmo do grupo. Para preservar o grupo, um altruísmo instalou-se individualmente.
No caso do Universo, a solidariedade global requer que as catástrofes que podem acontecer sejam sempre localizadas, limitadas no espaço e no tempo, e que possam ser incorporadas como pequenas oscilações no território maior do cosmos para impedir que essas perturbações cresçam e se espalhem globalmente podendo atingir um caráter de devastação cósmica. A própria dinâmica de evolução do universo é responsável por limitar a propagação dessas perturbações locais.
Ou seja, uma violação da solidariedade local é contrabalançada por um aumento da solidariedade global.
Quando isso não acontece, quando essa solidariedade global não se instala, o resultado é uma catástrofe global e o Universo se destrói. O exemplo mais simples é o cenário descrito no modelo cosmológico de Einstein.
- Matéria no universo. Cenários cosmológicos
Além das galáxias constituídas por matéria ponderada o universo contém radiação luminosa. Diferentes cenários cosmológicos foram examinados com variadas combinações desses elementos constitutivos.
Chamamos cenário ou modelo cosmológico uma seleção particular dessa matéria e uma especifica forma de geometria satisfazendo, essa combinação, às equações da teoria da gravitação. Essas equações associam uma determinada fonte material à geometria por ela gerada.
O cenário cosmológico proposto por Einstein em sua abertura da cosmologia do século 20 escolhe como fonte uma densidade homogênea de matéria ponderada gerando uma configuração de geometria estática. A matéria não tem interação entre suas partes. O local não inspeciona o global nem vice-versa. Essa ausência de solidariedade entre suas partes determinará o fracasso desse cenário devido principalmente à sua alta dose de instabilidade que faz com que esse modelo tenha uma existência brevíssima quando ocorre uma pequena perturbação local. Isso inviabilizaria a formação de estruturas como galáxias, planetas e estruturas mais complexas, como a vida. Note que curiosamente, esse cenário idealizado por Einstein tinha a ambição de ser eterno, sem começo nem fim.
- Como entender solidariedade cósmica?
Para ir além do cenário cosmológico de Einstein a primeira possibilidade é considerar a existência de pressão no fluido perfeito de seu modelo. Ou seja, estender a esse fluido cósmico interação entre suas partes representada ainda por um fluido perfeito. Isso foi feito pelo físico russo Alexander Friedmann. Ele introduziu um processo dinâmico que relacionava a expansão do universo à matéria nele existente.
É importante notar que mesmo Friedmann considerou modelos cosmológicos com e sem pressão. Sua estabilidade maior do que o cenário de Einstein escondia um problema igualmente grave, a saber a existência de uma singularidade onde todas as quantidades físicas assumiriam valor infinito. Ou seja, a ausência de interação entre suas partes em um desses modelos dinâmicos seria substituída pela presença dessa singularidade. Note que uma pequena instabilidade não somente não é ruim como é até mesmo desejável, pois é ela que permite escapar da homogeneidade global e a erupção de estruturas localizadas como planetas, estrelas, galáxias.
Talvez fosse esclarecedor notar que o termo solidariedade pode ser entendido como organização global, coerência entre distintas partes do universo. Uma tal situação não deve ser entendida como um processo pré-determinado, mas sim, associado a ciclos do universo cuja duração está relacionada à extensão maior ou menor da coerência. Dito de outro modo, sucessão de processos de expansão e colapso, sem uma intenção teleológica, podem ser dotados de diferentes formas de integração. Isso permite, de modo aleatório, alcançar um estágio de solidariedade máxima, onde o processo de colapso-expansão poderia então se encerrar. Ou não.
Comentário adicional
A termodinâmica estabelece que a entropia de um sistema não diminui. Ou permanece constante ou aumenta. Como compatibilizar essa propriedade com cenários comológicos cíclicos? A solução encontrada foi extremamente engenhosa e permitiu entender como a aplicação dessa propriedade ao processo de evolução do universo não provoca dificuldade formal. Isso se deu, nos cenários descobertos nas últimas décadas do século passado, porque esses modelos de universos cíclicos (apresentados de modo completo no artigo Bouncing Cosmology) são produzidos por campos físicos (eletromagnético ou escalar) gerando configurações descritas como fluidos perfeitos, nos quais a entropia permanece constante.
- No limiar do cosmos completamente solidário
Vimos atrás a percepção de que existem dois grandes cenários na cosmologia. Não é difícil perceber que no cenário onde o universo poderia admitir configurações que não estariam temporalmente conectadas, sem interação, idealizados universos paralelos, não podemos sequer imaginar como a solidariedade se exerceria entre eles.
Assim, para nossa interpretação dessa função cósmica, a solidariedade, somente em universo único e continuado, sem começo nem fim, essa característica poderia vir à tona. Em verdade, o sucesso absoluto da solidariedade em uma das múltiplas configurações das fases de colapso e expansão, seria talvez o limiar dessa sequência que poderia ver seu fim em uma entrada suave para uma fase de um cosmos totalmente solidário. Como poderíamos imaginar essa configuração é uma tarefa que deixarei para tratar em outro lugar.
Como essa pequena digressão sobre processos cósmicos pode trazer de volta os modos de pensar que Giordano Bruno considerou intimamente relacionados a questões sociais, no bojo de suas divagações religiosas?
Ao aceitarmos a extensão desse conceito, a solidariedade, associando-o a processos coerentes, para além de sua especificidade no Direito, somos levados a afirmar que se trata de um modo unificado de definição que pode ser aplicado tanto a um homem, a um conjunto social humano, a um conjunto de processos biológicos e, levando a seu extremo, até mesmo à totalidade que chamamos universo.
Tratando os processos do universo sob a interpretação de solidariedade, nada mais natural do que, seguindo o sonho de Giordano Bruno, trazer esse conceito para a sociedade humana. Invertemos assim o procedimento convencional de procurar estender solidariedade humana ao universo. Aqui, é dos exemplos de solidariedade no cosmos que retiramos o comportamento social de solidariedade.
Assim como não devemos aceitar a existência de uma explicação teleológica para a variação das leis físicas no universo, devemos igualmente admitir a ausência de uma intenção ulterior na solidariedade cósmica.
É nessa perspectiva de solidariedade que podemos entender a possibilidade de existência de diversos ciclos do Universo, sem que uma singularidade destruidora apareça.
A natureza, o universo, essa entidade organizada, o Cosmos, possui um processo escondido de autodestruição, precisamente naqueles cenários especiais onde a solidariedade não desponta hegemônica.
O universo que existe persegue a solidariedade como forma de continuar existindo.
Se essa solidariedade não aparece, se ela é eliminada ou impedida por algum processo natural, o resultado é simples de entender: o universo mergulha inevitavelmente no não-ser.
Mario Novello é Professor Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Esse texto foi redigido para ser apresentado na Conferência Política e Diferença a ser realizada em 18 de novembro de 2021 e organizada por Auterives Maciel.
Referência
Mario Novello, Quantum e Cosmos (introdução à metacosmologia), Editora Contraponto, 2021.
Mario Novello e Santiago Bergliaffa: Bouncing Cosmology in Physics Report 463, 127 (2008).
Supiot, Alain et al. La Solidarité (enquête sur un principe juridique) Ed. Odile Jacob, 2015.