Uma Filosofia do Fogo (os transaberes enquanto cosmoteísmo)
O estudo engendra o conhecimento.
O conhecimento suscita o amor.
O amor revela a semelhança.
A semelhança produz a abundância, também chamada comunidade ou familiaridade.
A comunhão gera confiança.
A confiança, virtude.
A virtude, a dignidade.
A dignidade, a potência e a potência realiza o Milagre.
Gerárd Dorn
Se minha casa pegasse fogo, o que eu salvaria?
O fogo!
Jean Cocteau
Aqui e agora, o fogo insiste. Eis aqui uma relação em que estamos naturalmente implicados: devires queimam. Escrevo porque a incandescência me obriga, polifonicamente me chama.
A alquimia é chamada filosofia do fogo. Sabemos que só existe o fogo. No Egito Antigo, o deus Kheper movimentava os raios de sol, promovendo os renascimentos de Rá. O filósofo Marula Karenga, em seu “Maat: The Moral Ideal in Ancient Egypt”, propõe traduzir a palavra “kheper” por devir. Sabemos que o Irã era palco de transações comerciais entre Egito e Grécia[i], cujos saberes eram também intercambiados. Assim, emergiu a obra de Heráclito, o Obscuro, em que nos poucos fragmentos de sua obra que chegaram a nós, lê-se: “O fogo, sobrevindo, há de distinguir e reunir todas as coisas.”
Essa filosofia, em que o fogo é seu elemento primordial e no devir, sua expressão conceitual, fará com que a alcunha “obscuro” de Heráclito, persiga todos aqueles que ardiam nessa chama: os estoicos, os magos herméticos, alquimistas, Spinoza, cujas sabedorias, por apreenderem um cosmoteísmo[ii], foram perseguidos pela Igreja, pois ameaçavam a reserva de mercado dos pontífices: a falsa lacuna entre Deus/Cosmos e o humano.
O filósofo Giorgio Agamben, talvez evocando “A parte do fogo” de Blanchot, em seu “O fogo e o relato”, afirma que toda a literatura é memória da perda do fogo. Ora, se Rumi, Franz Kafka, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges, Albert Camus, Philip K. Dick, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Alan Moore, Gonçalo Tavares, Lourenço Mutarelli, entre inúmeros outros, se queimaram tanto pra nos trazer relatos do fogo, é preciso, mais do que honrá-los, alegrá-los, ao tramar suas linhas enquanto trampolim para o fogo cósmico, para celebrarmos nosso cosmoteísmo.
Se do laboratório alquímico nasceu a ciência, da alquimia diferencial e matematizada de Isaac Newton[iii] começou a emergir a Revolução Científica. Newton, como todo grande alquimista, acredita na transmutação da matéria. Blindando seu “Principia ”, retirou dela tal afirmação, realocando-a sua “Optica”, onde traria menos impacto. Provavelmente temendo a Inquisição, Newton deixou de publicar seus textos alquímicos. Ironicamente, com essa autocensura, explicita-se que Newton estava longe de ser newtoniano e a ciência, que nasce da forja no fogo, apaga parte de sua chama, rumo à representação numérica.
No entanto, a transmutação da matéria há de insistir. O físico Werner Heinseberg, descobridor do Princípio da Incerteza da Mecânica Quântica, vai dizer, em seu precisamente chamado “Física e Filosofia”, acerca dos fragmentos de Heráclito: “Se substituirmos a palavra fogo por energia, poderemos quase repetir suas afirmações palavra por palavra, segundo nosso ponto de vista moderno”. Essa labareda vai se alastrar na obra do físico Ilya Prigogine, que, em “A nova aliança”, co-escrita com a filósofa Isabelle Stengers, escrevem que a Mecânica Quântica vai “construir a ponte entre essa ciência do ser e o mundo do devir”. Fogo e devir ressoam uma vez mais no laboratorium.
No século XX, cosmoteístas como Henri Bergson e Gilles Deleuze – que entre suas alunas encontrava-se Stengers – incorreriam em menos riscos: a filosofia do fogo se esgueirava pelas universidades parecendo apenas excêntrica ao seus pares. Os praticantes, como Crowley, Spare e Carroll, condiziam suas magias com algum ruído, seja ele o ritual ou o sigilo que representa. A antropóloga T. M. Luhrmann, em seu “Persuasons of the Witch’s Craft”, mostrou em sua etnografia com bruxas inglesas que elas alocavam o plano espiritual “fora” do mundo físico. A Igreja conseguiu inocular sua “falta”, sua ilusória necessidade de pontes, até mesmo nas descendentes das cosmoteístas queimadas pela Inquisição. A própria Teosofia, que outrora trouxe da Índia a kundalini[iv] – o fogo de Shiva que destrói e cria -, com Alice A. Baley, em seu “Um Tratado do Fogo Cósmico”, subdividiu infinitamente o fogo, inoculando um indesejável aristotelismo onde até então ele era impossível.
Se nas universidades, a filosofia do fogo se tornou discreta ao olhos do mundo, uma nova vertente irá alastrá-lo como nunca: o rock’n’roll. Nas encruzilhadas do rio Mississipi, Robert Johnson se voltou profundamente ao fogo e tocou o violão como se fosse Legião. O blues foi eletrizado por Muddy Waters em seguida, compondo “Rollin’ Stone”, o petardo que traz a inconstância do fogo. O que acordou um cosmoteísta que ganharia o mundo: Keith Richards. Ao emergir os Rolling Stones, fidelizando-se à egrégora de Waters, Richards dissemina incansavelmente a filosofia do fogo no século XX e ainda hoje, cuja trilha ígnea ecoa “Play With Fire”, “Hang Fire”, “Sympathy For The Devil”, “Paint It Black” etc. Ainda viriam na esteira dos Stones, Jimi Hendrix com “Fire”, The Doors, com “Light My Fire”, o Black Sabbath e tantas outras centelhas.
As equações da Mecânica Quântica, os riffs do rock’n’roll, as linhas da literatura e os conceitos da filosofia do fogo nos servem de trampolim para o fogo cósmico. Estamos dispostos a incendiar o século XXI? Podemos – aqui e agora – crepitar no atemporal? Nós apreendemos os transaberes[v] enquanto o cosmoteísmo do século XXI. Nos transaberes, em que alquimia, filosofia, mecânica quântica e rock’n’roll modulam-se em vibrações, fazendo o fogo transmuta-se em vórtex. Nosso conceito de vórtex é o trampolim para nossa prática, o exercício em vórtex, que, por sua vez, é o trampolim para o fogo cósmico, o impensável.
Enquanto os poderes gélidos nos oprimem com a onipresença cibernética e uma pandemia que só proliferou pois esses mesmos poderes aglomeraram pessoas em grandes centros, por sua vez a potência dos transaberes se auto-organiza em pequenos grupos ressoantes, que incendeiam o medo, a hierarquia e os símbolos. A cibernética é usada apenas como mais um trampolim, nunca como modo de vida. Nosso modo de vida é a incandescência, nossa egrégora é ígnea. Ao ler este texto, estamos alastrando nosso fogo cósmico aqui e agora.
Let it burn!
Notas
[i] Thomas McEvilley, “The Shape of Ancient Thought: Comparative Studies in Greek and Indian Philosophies”.
[ii] Pierre Hadot, “O Véu de Ísis”.
[iii] Betty Jo Teeter Dobbs, “The Foundations of Newton’s Alchemy”.
[iv] Helena Blavatsky, “A voz do silêncio”.
[v] Nelson Job, “Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica”.