Um trabalho de Sísifo para Deus
não com um estrondo, mas com um lamento.
T S Eliot
Este artigo foi escrito em homenagem a Luiz Carlos Bombassaro sobre sua inestimável contribuição ao conhecimento da obra de Giordano Bruno em nosso país. Tratarei aqui de alguns aspectos da Cosmologia dos séculos XX e XXI que, talvez, despertem mais estranheza no homem moderno do que no filósofo italiano. Infinitos Mundos, uma releitura de Giordano Bruno seria um título bastante apropriado para esse texto.
Preâmbulo ou no limiar da ciência
A evolução da cosmologia nos últimos cem anos procurou associar o universo a um sistema rígido a partir da extensão ilimitada das leis físicas terrestres. Essa orientação baseava-se na hipótese de que ao examinar as leis físicas nos laboratórios terrestres os cientistas estariam desvendando a estrutura rígida das leis cósmicas, válidas para todo o universo.
O prolongamento do alcance de aplicação das leis físicas para além da região onde ela foi observada efetivamente é um modo natural de iniciar a descrição cientifica do desconhecido. No entanto, seu uso absoluto resultou ser tão impositivo e foi usado de modo tão amplo que inibiu qualquer forma de crítica, mesmo naqueles territórios onde essa extensão das leis não possuía nenhuma observação.
Essa forma de limitar o pensamento, na tentativa de descrição racional do universo levou à subordinação a leis rígidas, fixas, imutáveis, incontroláveis e cuja origem estaria para todo o sempre inacessível.
No entanto, um movimento subversivo estimulado por cientistas como Paul Dirac, Andrei Sakharov, Cesar Lattes, Fred Hoyle e outros alterou profundamente a descrição do universo ao instaurar o exame da possível variação das leis físicas com a evolução do universo.
As leis físicas terrestres produziram um sistema de ordenamento do funcionamento dos corpos e suas interações que conduziu ao desenvolvimento tecnológico que sustenta a atual sociedade globalizada.
Ao propor que as leis físicas descobertas na Terra e em suas vizinhanças, possam variar com o tempo cósmico global liberta-se o universo de uma hipotética rigidez, a partir da impossibilidade de aprisionar a evolução do universo em um único esquema de pensamento, de leis, de modo de pensar o cosmos em um limitado programa antropomórfico.
A partir dessa orientação concluímos que o universo está em formação, é inacabado, eternamente inacabado, submetido a um processo contínuo de formação, criação e destruição para além das limitadas descrições do espaço-tempo. Ou seja, não se trata de uma estrutura única, o espaço-tempo, que está sendo modificada, mas todo esse substrato onde poderíamos referenciar um mundo, o que, no entendimento atual, inclui a geometria e a topologia do cosmos.
Não creio ser absurdo imaginar que se fosse vivo, Giordano Bruno se juntaria certamente àquele pequeno grupo de cientistas criadores de um pensamento cósmico revolucionário.
Embora a análise que descrevemos nesse texto seja técnica e possivelmente dificulte a compreensão por parte de não-especialistas, existe uma questão associada que permeia todo esse discurso e que, esta sim, possui caráter geral. Ela pretende atingir principalmente aqueles para os quais o desenvolvimento da ciência produz uma descrição única da realidade. É dessa univocidade perdida que trataremos.
Aceita-se, como herança e consequência do sucesso obtido pela ciência e sua filha mais exposta, a tecnologia, que seu discurso tenha maior probabilidade de estar correto do que qualquer outra forma não-cientifica, associada de imediato e com uma grande dose de preconceito, a um caráter imaginativo fantasioso incontrolável pela razão. Mais do que isso atribui-se um caráter absoluto e inquestionável à univocidade da descrição cientifica.
No entanto, recentemente, na chamada Teoria da Relatividade Métrica (Novello e Bittencourt) mostrou-se que a atividade explicativa da ciência permite descrições alternativas, ou seja, não existe um só modo de descrever os fenômenos. É então que começa a aparecer com destaque a questão do monopólio da descrição do real. Afinal, é desse território onde se estabeleceu esse monopólio que toda a estrutura do poder politico se estrutura e se mantém. Para além dos esquemas de repressão da sociedade, é no fundamento da prática científica que se ergue esse espectro de dominação da sociedade moderna.
Dito isso, seria necessário, imprescindível mesmo, empreender o estudo que esclarecesse essa relação. No entanto, isso me afastaria do caminho que resolvi seguir neste texto. Espero voltar a ela em outro lugar. Aqui me limito a descrever o cenário onde tal questão pode ser colocada e algumas de suas consequências.
Detalhes técnicos
Há uma questão que tem deslocado o centro da atenção da atividade científica para a cosmologia e que pode ser sintetizada em uma pergunta: como organizar a ciência em um universo no qual as leis físicas variam com o tempo? Para entendermos a extensão do significado e da importância dessa questão e em que contexto ela ganha significado prático, é necessário examinar, ainda que de modo condensado, a história da cosmologia nos últimos cem anos que pode ser dividida claramente em quatro momentos:
- 1917 – 1935 (Origens da cosmologia relativista);
- 1964 – 1979 (singularidade e boucing);
- Dirac, Hoyle, Lattes, Sakharov e outros (variação das leis físicas);
- Século 21: O universo inacabado (a consequência inesperada).
Origens da cosmologia relativista ou do fracassado modelo cosmológico de Einstein à eternidade do universo
O ano de 1917 trouxe duas grandes novidades que ficaram à margem das terríveis dificuldades que a primeira grande guerra do século XX trouxe. Uma delas, de natureza politica, foi a Revolução Socialista de outubro na Rússia, transformada em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A segunda foi a produção do primeiro modelo cosmológico no interior da ciência. Embora hoje ambas tenham cedido lugar a outras modificações, podemos sem dúvida considerá-las como dois fatos marcantes que o século XX nos legou. Não irei fazer comentários sobre a Revolução russa, concentrando-me na ciência. A acreditar em Giordano Bruno, essa dissociação do político com a descrição dos fenômenos físicos observados na natureza é um erro de princípio que nenhum verdadeiro cientista deveria cometer. E, no entanto, sem negar esse pecado formal, deixarei essa associação para pensá-la em outro lugar.
Dois anos depois de produzir uma alteração profunda na interpretação newtoniana dos fenômenos gravitacionais, estabelecendo o que chamou Teoria da Relatividade Geral, A. Einstein examinou as consequências da nova teoria sobre a visão que os cientistas possuíam sobre o universo. Para entendermos a dificuldade dessa tentativa, , bem como sua grandiosidade formal, é importante ressaltar que naquele momento a comunidade cientifica não demonstrava nenhum interesse nessa questão consubstanciada na ausência de qualquer observação de caráter global. Embora vários importantes momentos da história da cosmologia seriam forjados no século XX creio que podemos aceitar que somente a partir dos anos 1960 a cosmologia adquiriu um lugar de algum destaque nas atividades cientificas. Em sua proposta de descrição global do universo, Einstein parece ter sido guiado somente por sua intuição formal e suas idiossincrasias filosóficas, dentre as quais a mais crítica foi aceitar a visão pré-relativista, newtoniana, de que o universo deveria ser uma configuração estática. A proposta de cenário cósmico que Einstein propôs se baseava em três hipóteses que se revelaram incorretas, a saber:
- A topologia desse universo é fechada. A seção espacial é finita mas ilimitada. Ou seja a tri-curvatura é constante e igual a 1.
- A geometria que descreve o universo é estática;
- A principal fonte da energia controladora da geometria do universo é constituída por matéria incoerente, sem interação entre suas partes; além dela existe uma energia misteriosa de estrutura desconhecida, imaterial, a que deu o nome de constante cosmológica.
Esse primeiro modelo cosmológico proposto por Einstein não possui suporte observacional. Com efeito, o modelo padrão da cosmologia atual afirma que:
- A seção espacial do universo é euclidiana, ou seja, a curvatura do tri-espaço é nula;
- O universo é um processo dinâmico: a curvatura da sua geometria varia com o tempo cósmico;
- As fontes da geometria se concentraram, ao longo da história do universo, ou sob forma de radiação (a densidade de energia dos fótons dominou o cenário cosmológico nos momentos iniciais da atual fase de expansão) ou como matéria ponderada (galáxias e aglomerado de galáxias). Embora, é importante notar que nos últimos anos a constante cosmológica ressurgiu como um possível fator capaz de produzir uma explicação alternativa para a possível aceleração do universo, entendida agora como energia escura.
Havia um outro problema adicional ao modelo cosmológico de Einstein e diz respeito à demonstração de que esse modelo é altamente instável. Ou seja, um universo controlado por aquela geometria não teria existido tempo suficiente para gerar configurações estáveis e permitir o aparecimento de vida, dos planetas, da Terra, da espécie humana.
Há no entanto duas características da proposta de Einstein que permaneceram. A primeira diz respeito à sua formulação ao propor a separação do espaço-tempo quadridimensional em três dimensões de espaço e uma de tempo. Longe desta proposta configurar um retorno a ideias pré-relativistas, uma tal escolha de sistema de coordenadas simplificou muito as equações que descrevem a evolução da geometria que representa o universo.
A segunda característica do cenário cosmológico de Einstein, mais importante, tornou-se uma questão crucial da Cosmologia inserida sub-repticiamente em seu programa e que depende da existência da constante cosmológica contida em sua terceira hipótese, a saber, a proposta revolucionária de que a Cosmologia não se esgota na Física.
Anos depois, ao final da década de 1930, Lemaître, Hubble e outros mostraram que as observações astronômicas poderiam ser interpretadas à luz da teoria da relatividade geral desde que abandonássemos a hipótese de que o universo possuía uma geometria estática. Essas observações eliminaram completamente o modelo cosmológico de Einstein.
Friedmann e a questão singular
Em 1922 aparece, em uma revista alemã, o famoso artigo do cientista russo A. Friedmann no qual um cenário dinâmico substitui a ordem congelada do mundo einsteniano. Segundo Friedmann, o universo teria um começo singular no qual o volume total teria o valor zero e cuja data de criação seria dada pelo valor inverso da expansão do universo. Essa singularidade estaria associada ao valor infinito da densidade de energia que estaria curvando o espaço-tempo.
Façamos uma breve descrição da cosmologia segundo Friedmann.
- A totalidade do volume espacial do universo varia com o tempo cósmico. Há uma dinâmica que carrega as origens do cosmos para um tempo longínquo, possivelmente no passado infinito. Entendemos isso como um processo, com diferentes tipos de energia dominando a cena cósmica, em períodos de condensação distintos;
- Essa dinâmica é uma evolução. No cenário convencional, padrão, impõe sua descrição a partir de leis físicas dadas a priori, constantes, imutáveis;
- Processos elementares, como a desintegração da matéria, nesse cenário, são configurações congeladas, fixas, ocorrendo de modo idêntico em qualquer momento da evolução do universo, mesmo quando o universo estava extraordinariamente concentrado. Isto é, são fenômenos descritos da mesma forma, tenha esse processo ocorrido há alguns bilhões de anos ou no laboratório terrestre, no cern ou no Fermilab. Essa univocidade é entendida pelo establishment sob o rótulo de coerência.
O modelo de Friedmann se tornou padrão da cosmologia graças a duas observações astronômicas:
- A descoberta do afastamento das galáxias interpretado como variação do volume global do espaço tridimensional, ao final dos anos 1930;
- A detecção em 1964 de uma radiação cósmica de fundo, interpretada como consequência de uma fase extremamente condensada do universo.
1964-1979 (Singularidade inicial e o universo eterno)
O primeiro modelo cosmológico sem singularidade (Novello e Salim) correspondendo a um universo eterno, proposto em 1979 fez apelo a uma modificação da teoria linear do eletromagnetismo. Com efeito, a teoria linear de Maxwell produz um universo singular, como se houvesse uma expansão infinita dando origem a um universo com um começo que restaria para sempre desconhecido.
Ao propor um processo não-linear para a energia eletromagnética aqueles autores introduziram a possibilidade de gerar um modelo de universo que se estenderia indefinidamente para o passado. Ou seja, a não-linearidade (da energia geradora da curvatura do espaço-tempo) permitiria a perpetuidade desse cosmos.
Um segundo movimento foi responsável por outra forma de alteração do cenário padrão da cosmologia proposto pelos evolucionistas Paul Dirac, Alexander Sakharov, Cesar Lattes, Fred Hoyle e outros e que pode ser sintetizado pelos seguintes passos:
- Proposta de dependência cósmica das interações elementares provocando uma alteração importante na interpretação convencional dos processos elementares. Fazer esses processos depender do tempo cósmico é introduzir a história no processo de sua análise. É aceitar que o universo deve ser entendido a partir da evolução de suas leis físicas;
- No entanto, esse processo de historicidade é brando, ou seja, admite uma descrição em termos formais simples, associados a formalismos conhecidos e que podem ser compreendidos a partir de configurações observadas nos laboratórios terrestres. A origem formal para isso se encontra no caráter não linear das equações da interação gravitacional que descrevem esses processos;
- Como uma extensão natural, por inércia, do que lhe acontece, o homem tem a tendência de acreditar que tudo que existe tem uma criação. A ideia de que algo “sempre existiu” é quase inimaginável e certamente perturbadora. E, no entanto, a ideia de que este nosso universo em que vivemos se criou a si próprio se insere na descrição de processos não lineares convencionais na matemática. É esse caráter não linear que permite entender a autocriação do universo;
- Dito de outro modo: não é necessário sair da análise do universo físico para entender sua origem, pois um processo não linear não requer uma fonte externa que lhe dê origem;
- Ou seja, esse universo autocriado, não necessita de um agente externo para provocar sua existência.
Universo cíclico
A ideia de que o universo possa ter tido diferentes ciclos de colapso e expansão não é nova. No cenário da teoria da Relatividade Geral (RG) já nos anos 1940 apareciam propostas nas quais um cenário cíclico era tratado dentro do modelo padrão da cosmologia. Atribui-se ao físico Richard Tolman a descrição formal desses cenários no interior da cosmologia relativista. Entretanto, suas ideias não se desenvolveram por uma questão técnica que creio ser importante descrever.
Vimos, no cenário descrito na cosmologia de Friedmann, que a identificação da fonte da curvatura do espaço-tempo a um fluido perfeito implica necessariamente a presença de uma singularidade, isto é, um momento na história do universo no qual todas as quantidades físicas relevantes – como a densidade de energia, a temperatura etc. – atingem valores infinitos. Ou seja, não podem mais ser descritos pela física que é incapaz de associar uma medida realmente realizada a essa quantidade matemática, o infinito. Assim, ao atingir este momento singular toda a memória anterior se apagaria. Nesse esquema a própria ideia de universo cíclico perde sentido. Somente quando os modelos com bouncing apareceram foi possível dar sentido preciso, coerente, à proposta de que o universo possa ter ciclos. Surge então a questão: um só ciclo de contração e expansão? E como termina esse ciclo?
A ideia segundo a qual o Universo terá um fim como um grande cataclisma (big crunch) é uma proposta tão ingênua quanto o processo inverso de sua eventual origem (big bang) e só ganha sentido formal dentro da hipotética extensão ilimitada da física terrestre ao cosmos. Em verdade, como anunciava profeticamente o poeta T. S. Elliot, esse particular mundo em que vivemos terminará não com um estrondo, não com um colapso total, mas com um lamento.
Com efeito, seguindo a sugestão daqueles cientistas históricos, evolucionistas, somos levados a concluir que o universo está ainda em formação, é inacabado, eternamente inacabado, envolvido em um processo contínuo de formação, criação e destruição.
Dito de outro modo, assim como esse universo se autocriou a partir de um vazio, quando ele se autodestruir só sobrará o vazio. A partir desse vazio se construirá um novo universo.
E depois?
Não temos hoje nenhum indicio que permita afirmar que este processo de criação e destruição tenha um fim.
Referências
Mario Novello: O Universo Inacabado (2018) Ed. N – 1
Mario Novello: Quantum e Cosmos (introdução à metacosmologia) (2021) Ed. Contraponto