Um delírio de aniquilação mascarado de salvação
Sartre, em seu texto A questão judaica, aponta uma questão fundamental dos nossos dias: o respeito e o valor dado à opinião. Sabemos, desde os gregos, que a opinião é fruto do modelo do poder democrático, da falência da forma eficaz de dizer. A chamada palavra eficaz só pode ser assim considerada em razão de sua associação com o caráter mágico-religioso daquele que a pronuncia. No caso dos primórdios da sociedade grega, o rei-divino.
Como ensina Jean Pierre Vernant (1989), o rei é aquele que, por sua natureza divina, só pode enunciar a palavra exata, a fórmula sem oposição, a narrativa sem disputa. A ideia de uma palavra que não conhece contrário desaparece do horizonte grego no momento do surgimento da vida democrática, quando ocorre uma profunda alteração na estrutura de poder daquela sociedade, levando ao desaparecimento da figura do rei-divino e de toda a base hierárquica que a caracterizava.
O mundo democrático, criação grega do século V a. C, será o mundo do agón, isto é, o mundo do combate, da disputa, do confronto agonístico, sobretudo, no que diz respeito ao falar. Ao não mais se identificarem como divinos, os homens se compreendem como iguais e como tais, prontos a rivalizarem no que dizem, nas suas construções discursivas, nas suas disputas jurídicas e nos seus posicionamentos políticos.
É paradoxal a condição do homem no mundo democrático, pois ao mesmo tempo tem com os demais cidadãos um laço de filiação política, na medida em que habita a mesma polis, tem igualmente em relação a outro homem a responsabilidade de sua condução; e, ao mesmo tempo, tem com seus pares uma relação de intensa rivalidade, de oposição em suas pretensões que se expressam em vários domínios.
Ocorre aos sujeitos da democracia duas grandes perdas: a perda da figura organizadora e condutora de sua existência, bem como a perda da referência da palavra como fórmula justa. Tais perdas colocam o homem diante de duas novas responsabilidades: ser, juntamente com os demais participantes da esfera política, o responsável pela vida da cidade e a convivência permanente com a possibilidade do erro e do engano. São dois grandes desafios ao homem cumprir: em primeiro lugar, conciliar a rivalidade, já que na condição de iguais, não é possível colocar um homem acima de outro homem; em segundo lugar, conviver, de modo definitivo, com a precariedade da palavra dessacralizada.
Do ponto de vista das decisões políticas, para se chegar aos acordos e proposições que possam decidir os destinos da polis, os gregos inventarão alguns critérios como o debate, a persuasão, a coligação, a maioria, a votação com braço estendido. Mas, do ponto de vista metafísico, é o problema da verdade que está aqui se apresentando – com toda a clareza e intensidade que lhe é próprio.
Se a palavra do diálogo entre os cidadãos já não diz necessariamente o que é, quais os critérios que podem ser usados de modo sólido e concreto, para distinguir a palavra verdadeira? Ou, como pergunta Platão, como distinguir a boa da má opinião? Não sendo mais sagrada, a palavra não possui marca de distinção. Ao ser enunciada, pode ser aclamada ou desprezada, sem que se saiba, efetivamente, se o resultado desse juízo é o melhor para os homens.
É esse problema que faz nascer a filosofia e o conceito como caminho que se diferencia da opinião. Como diz Deleuze, “o pássaro-solilóquio-irônico que sobrevoava o campo das opiniões rivais aniquiladas” (1992, p. 15). Mas, o caminho da filosofia é um penoso caminho. Há que se aprender a pensar, há que se dispor a pensar, o que implica mais do que disposição, implica dedicação às ideias; dedicação ao que é, muitas vezes, desalento. Há que se compreender a dimensão complexa dessa tarefa, que não deve buscar soluções imprudentes, apressadas, simplórias ou que satisfaçam as ambições humanas, demasiadamente humanas.
Assim, a via da filosofia não é via da opinião, da discussão, do excesso de conversação. A via filosófica, a via do conceito, é a via da compreensão dos problemas e da criação dos conceitos, a via socrática inaugural, cuja ironia desmascara e faz ver a precariedade e a inutilidade das pretensões do filodoxo, do amante da opinião.
De todo modo, a via da opinião é a via comum aos homens, a via acessível a todos os falantes, em sua inércia relativa ao ato de pensar. E é aqui que aparece a questão posta por Sartre: a palavra opinião sugeriria uma equivalência entre os juízos (1995, 36), isto é, cada vez que uma opinião é emitida, essa opinião se expressa em um juízo e esse juízo é equivalente em valor a todo e qualquer outro juízo que também emita uma opinião, incluindo os juízos contraditórios a ele. Há como que uma equiparação natural que estratifica todos os juízos ou todas as opiniões, como se, diz Sartre, se tratasse de uma questão de gosto.
Com isso, o filósofo francês destaca o aparente caráter inofensivo da opinião, sendo portanto, sem maiores consequências a emissão do mais amplo espectro de ideias, não sendo possível, como diz o velho clichê, discutir o que jaz por detrás de seu enunciado.
O texto de Sartre, publicado em 1946, portanto, logo após o fim da segunda guerra, trata do anti-semitismo e das opiniões anti-semitas que, em nome da liberdade de opinião, reivindica o direito de se manifestar, se expressar, se fazer ouvir e reproduzir por aqueles que entendem ser ela uma ‘fórmula justa’.
O próprio Sartre chama a atenção para o fato de que o anti-semitismo não é apenas uma atitude que alguém adota perante os judeus, mas com seres humanos de modo geral, com a história e com a sociedade. Trata-se, em realidade, de uma visão de mundo, de uma paixão (1995, p. 14). Assim, em que pese a questão própria do anti-semitismo no que tange aos acontecimentos abomináveis da Segunda Guerra e toda a perseguição, preconceito e ódio dedicado ao povo judeu, essa visão de mundo contida no anti-semitismo é também uma visão de mundo própria dos neo-fascismos ou do ‘Ur-fascismo’, do fascismo eterno, como conceitua Umberto Eco. O Ur-fascismo se faz presente em outras formas de fanatismo, está presente ao nosso redor, muitas vezes em trajes civis (2019, p. 60).
Sartre também reconhece que o tipo de sociedade próprio aos anti-semitas permanece em estado latente em períodos normais (1995, p. 22), ou seja, é uma estrutura permanente da comunidade em que vivemos e ainda hoje, no ano de 2021, seus pressupostos sociais perduram e estão entre nós. Que seu disfarce não nos engane. Conhecemos suas formas e suas intenções: seu discurso de morte. O Ur-fascismo não conhece limites e não permite pausas; seu caráter totalitário visa a aniquilação e não há regras ou salvaguardas que possam ser impostas à sua arbitrariedade impiedosa.
É em razão da permanência desses pressupostos sociais que torna possível a atualização ou a reativação do fascismo em qualquer época histórica que leva Adorno a empreender seu estudo sobre a personalidade autoritária. O autor tem por objetivo compreender as estruturas do indivíduo potencialmente fascista, isto é, não os declaradamente fascistas, mas os sujeitos que estariam dispostos a aceitar o fascismo se esse se tornasse um movimento social forte e respeitável. Ou seja, seu estudo não trata do fascismo de estado, da ideologia totalitária de extrema direita do terceiro Reich ou do regime de Mussolini na Itália, mas sobre a mentalidade fascista presente de forma visível ou subterrânea nas sociedades modernas, mesmo nas ditas democráticas.
Umberto Eco diz que o Ur-fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes e nosso dever é, a cada dia, em cada lugar do mundo, apontar o dedo para cada uma de suas novas formas (2019, p. 61). Por isso, digamos as coisas com rigor: esses enunciados que reivindicam, em nome da democracia (pasmem!) sua liberdade de expressão, como uma inofensiva e legítima opinião, não podem ser incluídos na categoria de pensamentos que o direito de livre opinião protege. Diz Sartre expressamente: “recuso-me a chamar de opinião uma doutrina que visa expressamente pessoas específicas e tende a suprimir-lhes os direitos ou exterminá-las” (1995, p. 9).
Ou seja, Sartre está negando a tal forma de pensar sequer a condição de opinião, e portanto, algo que deva ser protegido em nome da igualdade e dos preceitos constitucionais. Isso porque não se trata de um pensamento, mas de uma paixão que pode até se exprimir por discursos de aparência racional, mas que não passa de uma afecção de ódio ou de ira (1995, p. 14). Enquanto paixão, é um discurso onde a indagação, os argumentos, as ideias passam a ter papel subalterno, se mostrando impermeável a qualquer demonstração ou racionalidade.
É nesse sentido que o autor afirma que “se o judeu não existisse, o anti-semita o inventaria”. O que significa isso? Significa que a questão fundamental do anti-semitismo não é o judeu, mas a disposição injuriosa que se dirige ao outro, o ódio como profissão de fé, o desvario que pode causar as piores consequências.
Sartre chama a atenção para o fato de que o anti-semita não tem ilusões sobre si mesmo e sabe-se um homen mediano e mesmo medíocre, embora não ache sua mediocridade vergonhosa, se comprazendo com ela e tendo por ela optado (1995, p. 17). Ao contrário, expressa o orgulho da mediocridade, a valoriza como prática e ideal. Trata-se do homem das multidões, que profere seus ultrajes em grupo, ultrajes esses tomados como a verdade já descoberta e enunciada, que cabe ser repetida de forma permanente, monotemática e de viés sempre dicotômico. Tal como Orwell descreve em seu 1984 (2009), fala-se uma novilíngua, um lexo pobre e uma sintaxe elementar, que inibe o pensamento, a reflexão crítica, as ideias complexas. Há que se apontar também para o fato de que o uso de uma novilíngua favorece a adesão dos seguidores com menos escolaridade ou cultura, podendo ser um verdadeiro discurso de massa, divulgado ampla e repetidamente nas diversas redes sociais, bem como nos demais meios de comunicação.
Há, diz Sartre (1995, p. 20), um componente narcisista nesse discurso de ódio, na medida em que ao colocar o outro como inferior e pernicioso, me afirmo como pertencente a uma elite, elite da qual para pertencer não preciso dispor de méritos ou bens. Tal como a aristocracia, uma vez afirmada a superioridade frente ao outro, não há como perder a condição de pertencer a um elite. Da mesma forma, Eco (2019, p. 52-53) diz que o elitismo é um aspecto típico da ideologia reacionária, fundamentalmente aristocrática. Seus adeptos pertencem ao melhor da humanidade, são os melhores cidadãos – não é de se estranhar as bandeiras monarquistas nas manifestações dos grupos que reproduzem esse ideário…
Adorno (2015), seguindo a mesma direção, diz que o discurso fascista traz um ganho narcísico óbvio, no sentido que aquele que pertence ao grupo fascista considera-se superior e mais puro relativamente aos que são excluídos dele. E é justamente o caráter narcísico que explica a violenta e raivosa reação às críticas dirigidas a esse grupo. Quando um opositor desmascara seus valores, isso é sentido como perda narcísica e, consequentemente, incita sua fúria e desmedida.
Sartre (1995, p. 29-30), do mesmo modo, diz que toda a ênfase maniqueísta anti-semita está na destruição e que nesse aspecto, o bem consiste na destruição do mal. Desse modo, sua crença é de que tão logo seja o mal rechaçado, a sociedade será purificada e haverá o restabelecimento da harmonia. Trata-se apenas de extirpar o mal, uma vez que os eleitos já conhecem e professam o bem.
A ambiguidade que espanta os que se norteiam pelas regras do intelecto diante do que dizem os Ur-fascistas, encontra explicação no texto sartreano. O anti-semita, diz ele, é aquele que escolheu ser criminoso, “que reprimiu seus impulsos homicidas, mas encontrou um meio de saciá-los sem admiti-los” (1995, p. 34). Ele é a favor da paz, mas a paz só chega pela guerra contra o oponente; ele é a favor da vida, mas para tal muitos devem morrer. Nessa inversão delirante, a raiva, o ódio, o homicídio e todas as formas de violência reproduzem a estima, o respeito e o entusiamo pelas causas mais veneráveis. Tais homens gozam com a maldade, mas esse gozo tem a aparência da consciência tranquila pelo dever (patriótico) cumprido.
Sartre diz que há nos anti-semitas uma curiosidade fascinada pelo mal que ele reputa como sadismo. Diz o filósofo: “destruidor por ofício, sádico de coração puro, um criminoso. O que ele deseja, o que ele prepara, é a morte do judeu” (1995, p. 33). Bataille define o sadismo como a transgressão que não para até chegar ao apogeu da transgressão. A negação do outro também engloba a negação de si e então só o crime importa, quem quer que seja sua vítima. O movimento de destruição se coloca acima do próprio indivíduo que lhe deu origem, adquirindo vida própria e o ultrapassando. Em sua destruição há o coroamento de uma vida que só a necessidade de destruir justifica. Ou seja, no sadismo a sua ação de negação do outro não garante a proteção de si mesmo e o sádico já não se importa com a sobrevivência do mundo, porque quer destrui-lo (1987, p. 114-115).
Deleuze diz que o sujeito ou os grupos são compostos de linhas, ou antes são diagramas de linhas. E, dentre as linhas que atravessam o sujeito, há uma linha de grande perigo, porque delas desprendem um estranho desespero, como que um odor de destruição, como que um estado de guerra no qual se sai destroçado. É quando a linha de fuga se torna destruição, paixão de abolição, linha de morte (1996, p. 112).
Do ponto de vista político, Deleuze diz que o fascismo é uma linha de fuga que se tornou mortífera – dos outros e de si mesma. Enquanto movimento perpétuo, o fascismo é um processo que apenas visa realizar seu fluxo e é por isso que quando chega-se o momento em que a guerra está a ponto de vencer os fascistas, mais se faz a exasperação e se acelera a guerra.
Deleuze relembra que o movimento sem fim fascista se torna movimento de pura destruição – chega a hora da própria morte, para o próprio Hitler que em seu telegrama 71 diz que se a guerra está perdida, que pereça a nação, que se destrua o povo, que se destrua a si mesmo. Eis o desfecho normal do fascismo, do estado suicidário, como diz Virílio (Deleuze, 1996, p. 114-115).
Em razão disso, Adorno (2015, p. 151) nos ensina que por ser a destrutividade a marca fundamental do espírito fascista, seus propagadores transformam a doutrina cristã em slogans de violência, utilizando-se, em razão da urgência política, da ideia de “derramamento do sangue de Cristo” que é transformada em “derramamento de sangue em geral”. O derramamento de sangue não parece mais algo a se evitar, mas ao contrário, algo que redimirá os homens, assim como Cristo nos redimiu. Por um efeito de inversão, o assassinato se torna um signo de sacramento.
É em razão disso, continua Adorno, que os agitadores fascistas insistem na iminência de algum tipo de catástrofe, alertando para seu perigo iminente, excitando-se com a ideia da ruína inevitável . É diz, ele, “um delírio de aniquilação mascarado de salvação” (2015, p. 152).
Ou seja, esse discurso, que sequer merece o nome de opinião, funciona como a realização de um desejo. Os que compartilham desse desejo têm o ganho narcísico de participar de uma elite, cujos objetivos não são claramente totalitários ou antidemocráticos. Ao contrário, evitam-se e mesmo repudiam-se as formulações que possam sugerir um objetivo clara ou abertamente Ur-fascista. Eles evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de anti-democráticos (ADORNO, 2020, p. 64). Não é de espantar que traga confusão a tantos, especialmente aos filhos da cultura de massa padronizada hoje existente, como define Adorno.
Assim como na distopia de George Orwell, 1984, (2009) parece haver uma inversão de todos os atributos nas instituições do Estado – o ministério da verdade é o lugar de produção da mentira; o ministério da paz é responsável pela guerra; o ministério da fartura, pela fome; ministério do amor, pela tortura, o grito de guerra alemão era: “Desperte, Alemanha!”, mas escondia precisamente o seu contrário. Embarcando nessa ficção política, satisfazendo um desejo inconsciente de auto-aniquilação, esse discurso, como diz Adorno, “transforma seus seguidores em vítimas”.
Que nossa lucidez não seja irrelevante.
Referências:
ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Unesp. 2020.
______. Ensaios sobre a psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp. 2015.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: LPM, 1987.
DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: 34, 1992.
______. Mil platôs. Volume 3. Rio de Janeiro: 34, 1996.
ECO, Humberto. O fasciscmo eterno. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia das letras, 2009.
SARTRE, Jean Paul. A questão judaica. São Paulo: Ática, 1995.
VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.