Um convite da espécie humana para a espécie humana e talvez outras.
It is a long road for the man who “acts and suffers” until the recognition of the fact that he is, ultimately, a man “capable” of certain accomplish.
A formulação de convites sinaliza destinatários e remetentes. Quem remete e a quem remete? O onde, o quando e o como faziam parte da rota dos itinerários. Para Alice, era angústia receber um convite enquanto lutava contra um afogamento no imenso lago de suas próprias lágrimas! Era a famosa e incompreensível Alice a destinatária do convite. Imersa em seu lago, ela percebia um desconhecido ser, e jogava redes até encontrar um nome que informasse, pelo menos, seu nome e as maneiras adequadas de aproximação. Depois de algumas hipóteses, que passavam pela doce gatinha Diná, por aversão provocada, concluiu que o ser em questão era um rato!!!!!Apesar da tradicional inimizade, ela ainda acreditava no poder da linguagem que deveria substituir a violência. Mas ele saberia falar inglês, saberia compreender o francês?
Nada disso era relevante diante da primeira evidência de que gatos e ratos não são amigos!!! O ser Rato impunha limites bastante claros. O primeiro deles era a profunda e forte aversão entre o ratinho e a gatinha Diná de Alice cuja descrição de calma e beleza de nada adiantaram. Ofendido pelas tentativas de Alice em integrá-lo ao mundo da gatinha e depois entre outras espécies acionou seu instinto de fuga. Alice persuasivamente mudou o tom de sua voz. “Chamou com voz bem suave: – Volte, querido Rato, volte! Não falaremos mais nem de gatos nem de cachorros, já que você não gosta! – Ao ouvir isso, o Rato fez meia volta, e começou a nadar vagarosamente na direção dela: seu rosto estava completamente lívido (de raiva pensou Alice) e ele murmurou, em voz baixa e trêmula: – vamos para a praia. Eu lhe contarei minha história, e você compreenderá porque odeio gatos e cães. Já era tempo de sair, pois a lagoa estava ficando cheia de aves e outros animais que tinham caído dentro dela: havia um Pato e um Dodó. Um Papagaio e um Aguioto, e várias outras criaturas curiosas. Alice tomou a frente e o grupo todo a seguiu, nadando para a praia.
Com evidentes deformações significativas, podemos dizer que homens são formações simbólicas de corpo, alma, espírito e de CULTURA. Uma cultura que não é apenas um poder, mas um contexto no qual se pode aprender modos inteligíveis de ser e sentir, mas sobretudo compreender como Alice, o alcance daquilo que é passível de ser comunicado e recebido. Alice expõe inicialmente possíveis valores de comunicação entre cães, ratos, gatos e papagaios com base em sua própria compreensão daquilo que deveriam ser porque assim tinham sempre sido. No entanto, surgem variáveis que exigem abertura a outras formas de compreensão sobre um si mesmo costumeiro como outro.
Então, o aforismo de Heráclito de que “tudo vem a ser segundo a necessidade e os seres conciliam-se através de antagonismos e que tudo tem alma e está repleto de divindades, pode, de fato, confirmar o sentimento de um tempo longínquo e perdido no qual a história era proveniente da vida. Cada vez mais, a expansão de um processo civilizatório ocidental compreendido como progresso e destino compulsório, imprimia sobre a diversidade das formas sociais, econômicas e culturais, seus parâmetros praticamente inquestionáveis.
Neste ponto, podemos retomar o bate papo cujo teor incide sobre a escrita da história do tipo eurocêntrico que não pode mais apostar na universalidade da expressão heraclitiana. Se hoje a aceitamos é porque nossa percepção constata uma superabundância do tempo que nos permite a saída do espaço platônico da caverna para nos aproximarmos da angústia de Pascal diante do silêncio infinito das extensões cósmicas.
Nós, com Michel Serres, de alguma forma sentimos no mundo aquilo que Pascal chamava de angústia com o maravilhamento de quem flutua de corpo e alma numa duração em ritmos e distâncias que proliferam de maneira quase infinita, desafiando a intuição tanto na formação das coisas quanto na brevidade do momento. Aqui vale a pena ler o paradoxo intitulado “O que a tartaruga disse a Aquiles” (Lewis Carroll). Neste caso, Alice, ao mudar o tom de sua argumentação passou a considerar que “ nunca imagine que não ser diferente daquilo que pudesse parecer aos outros que você fosse ou poderia ter sido não seja diferente daquilo que você tendo sido poderia ter parecido a eles ser de outro modo”.
Então, há símbolos articulados em alguma forma e objetos que um dia, talvez, tenham sido funcionais. Entre a diversidade de figuras e marcas humanas não devemos transformar nossa legítima ignorância em suposições passíveis de interpretação.
Como sinaliza Eudoro de Sousa, esses vestígios não são a narrativa de nossa origem, mas a origem de nossa narrativa. Uma narrativa que afirma que o homem é o animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuitamente lhe dão. Adão, como referência de um primeiro homem, marca um orgulhoso triunfo sobre o Exílio. A Recusa do Paraíso é então, a versão já humana do próprio acontecer humano, a primeira afirmação do homem, que é um querer firmar-se ele em si mesmo. Então, ele só aceita aquilo que é feito por suas próprias mãos. Porém, é da condição humana que tudo que se constrói é fruto de destruições.
“O Exílio Adâmico” é um mito que segundo Eudoro de Sousa, corre paralelamente à História, mas se Adão pôde sair do Paraíso, o homem não pode exilar-se da Natureza e ela não é o mundo do Homem. Se o mundo do homem é reconhecido como algo feito por ele, há um equilíbrio entre o homem deste mundo e o mundo deste homem. Compromisso entre obra e obreiro e entre obreiro e obra. Qual o ser deste homem, qual o ser deste mundo? Como eles vão do mesmo ao outro, e do outro ao mesmo? Um e outro homem, cada qual em seu mundo. Este homem e este mundo são interdependentes, co-pertinentes !
As reflexões até aqui abordadas são fruto minucioso do trabalho de Luiz Costa Lima, nosso professor e incansável mestre. Uma vida dedicada a questões cruciais que jamais minimizam ou abandonam a dimensão humana. Como ele mesmo nomeia, seu trabalho O Controle do Imaginário (1984) é sobre a “martíria humana”. Ele trata, então, de como a imaginação e seu produto socialmente disposto, o imaginário, somente existem em uma rede complexa de controles, estes positivos e negativos, e que estes controles são mais eficientes do que qualquer censura ou cesura que possa apresentar risco a vida do pensante
Luiz intui, antes da Antropologia Filosófica tão cara aos alemães, que a compreensão do controle em suas variadas formas, incide sobre a manifestação social da carência e fragilidade humanas. Para ele, existem duas bifurcações básicas do controle, a primeira é negativa e se manifesta como cerceamento do próprio pensamento. Como exemplo, tradução latina de mimesis como imitatio impõe ao objeto de arte (no qual se inclui desde a pintura até a literatura) uma medida de verossimilhança, onde o real é definidor de sua existência.
A verossimilhança pura rebaixa, deste modo, a arte, o objeto estético, ao patamar de mera representação do real. O que está apresentado tem como limite, o próprio real. Assim, o pensamento não consegue avançar para além desse mesmo real. A realidade e o real se tornam valores absolutos e sua crítica se limita à aprovação ou reprovação do mesmo, uma vez que a obra de arte é somente verossimilhante. O pensamento encontra esse teto que limita da possibilidade de se pensar o outro, as alteridades e as mudanças sobre esse mesmo real. Essa modalidade negativa de controle, a qual exemplificamos também coma verossimilhança, atua não no conceito em si, mas nas impossibilidades e proibições que vão passar a existir.
Luiz ainda é mais complexo quando afirma que a atitude negativa é sempre a introjeção de um valor externo ao indivíduo, ou seja, não somente atua na imaginação, na abertura individual das possibilidades do mundo, mas também no imaginário, isto é, no consenso sobre o real, sobre a realidade, sobre o mundo. Essa forma de controle é fluida; não se confunde com a censura, pois ela não é uma categoria de ação, mas de uma autocensura e reconhecimento de um teto, sem o qual, o objeto de arte perderia seu sentido. Num exemplo mais pobre, seria como imaginar um cachorro sem coleira. fosse impossível, uma vez que a coleira seria a condição básica de existência do cachorro. Assim, o cachorro sem coleira não seria imaginado pois sua precondição (ou sendo Deleuziano, sua Cachorridade) não poderia existir sem a coleira. Pode parecer pura troça, mas nos lembremos dos manuais das regras da arte de Watteau ou ainda, das definições de Belo, Bom e Verdadeiro que permeiam a arte do final da idade média até o século XIX. Nada nos deve parecer tão absurdo quando se fala de controle ou valores que são naturalmente introjetados e tratados como as verdadeiras bases e condições de existência do pensamento. O trajeto de pensamento de Luiz não começa, como muitos acreditam, na mimesis e na sua diferença com os projetos platônicos e aristotélicos, mas antes de pensar o mímema para além da mera imitação e seus correlatos (representação, aproximação diferenciada, refração, apresentação…) Luiz pensou na coisa mais básica que desenvolvemos quando pensamos: o Controle.
Tal faceta do Controle não surge de uma mediação externa, mas da necessidade básica de sobrevivermos num mundo para o qual não fomos preparados. Diferente dos animais que vieram a este mundo dotados de todo um aparato sensorial e instintivo que lhes são atribuídos naturalmente, isto é, sua integração à natureza não é forçada, ela simplesmente existe, não parte da vontade, desejo (Gebierde) ou do simbolismo. Como Thüre Von Uexkull percebeu, e chamou de Umwelt a manifestação do ambiente como “mundo subjetivo do animal”. De modo bem distinto, o ser humano não possui tal abertura para o mundo ele nasce frágil, nu e carente de instrumentos que lhe permitam sobreviver em um mundo que está disposto a destruir os mais fracos.
Pode nos parecer dramático, mas a humanidade deu conta do mundo externo usando elementos que ela mesmo criou. A nossa luta, nossa corrida para a vida começa um passo atrás dos animais. É até difícil pensar que sobrevivemos a ponto de elaborar uma relação de superioridade em relação à natureza (mais estranho é pensar que essa mesma relação nos empurra diariamente para o abismo da aniquilação biológica). O ser humano desenvolve-se nesta carência, usando a sua principal diferença, sua capacidade simbólica, para compreender e transformar o mundo que o cerca. Mas qual a relação com o controle? Luiz é muito preciso nisso, o controle positivo serve para cortarmos o que interiorizamos, ele nos serve de instrumento de limitação para podermos tomar uma decisão. Como os gatos, cuja a visão se limita ao que está à frente, sem isto, não conseguiriam fazer o cálculo de seu salto. O cérebro humano tem a capacidade de interiorizar e traduzir uma quantidade impressionante de informação, ao mesmo tempo em que cria mecanismos de adequação e processamento destes dados que lhe permitam lidar com eles.
Um exemplo prático: podemos ver e ouvir muitas coisas a distância enquanto andamos, mas ninguém percebe o barulho que o sangue faz quando passa em nossas veias, o ruído nada romântico que o coração faz em seu pulsar constante ou mesmo os tremores que os olhos sofrem a cada passo. A nossa poética biológica é ensurdecida e renderizada na forma de silêncio e visão de um mundo puramente externo. Essa é uma forma de controle, precisamos dela, do contrário nossa visão seria turva como as câmeras dos anos de 1990 (que parecem ter acontecido há 70 anos) que trepidavam e muito pouco mostravam em suas filmagens com muito movimento.
Essas formas de controle não são ruins, quando pensamos elementos mais complexos, como a física, a matemática e a filosofia, precisamos de uma definição do quadrante para o qual vamos jogar a atenção do nosso pensamento para que a função simbólica faça a sua mágica e possamos subsumir o real em algo nosso. Possuir é interiorizar algo que nos parece externo, mas não é, uma vez que o objeto é sempre algo de nossa percepção. Agora, o que faz este ou aquele objeto não se confundirem, os limites que damos a eles em relação a nós e entre eles mesmos. Essa limitação é um trunfo que nos separa dos animais, que se limitam à possibilidade de compreensão que sua espécie dá. Apesar de criaturas carentes de sentido, como já evidenciou Herder em 1770, podemos, no entanto, criar o nosso sentido de e para o mundo, coisa que um cachorro, com coleira ou sem, não precisa fazer, uma vez que sua cachorridade está garantida no simples fato de ser um cachorro. O ser humano não, ele não é ser se não se reconhece nele mesmo e no outro, nem é humano se não sabe definir o que é humano, estranhamente, ele sabe que não sabe naturalmente para onde ir. O controle positivo nos permite recortar a amplitude da existência em pedaços menores os quais chamamos de realidade. Luiz não é alheio a isto, uma vez que isso nos baseia em termos de pensamento, pode deixar de ser virtuoso, como tentei apresentar acima, e se tornar dogmático, vicioso, enfim, incluído na tradição consensual que afirmamos todos os dias em que acordamos.
Nos dias de hoje criamos um problema imenso. A internet conecto a nível mundial e em realidade ampliada (Pharmakon da conversa de bar) apresentam uma nova aparência da humanidade. Ao mesmo tempo em que há uma escalada e a afirmação de um modelo de sujeito que é a versão mais radical do Sujeito Auto-Centrado do Romantismo. No romantismo, como apresenta Luiz, o sujeito quer ser autor e diretor de sua vida, quer ser responsável pela sua Bildung (Formatividade) e da sua existência no mundo. O sujeito que surge no século XXI não, ele quer ser sempre solar e acha mesmo que toda a mediação do mundo parte dele. É a versão mais radical, até então, do sujeito transcendental, uma vez que ele nem precisa ser autor do mundo, uma vez que o mundo só tem validade se tomado sob seu juízo. Estranhamente, a forma liberal não sobrevive à internet, não há espaço para o outro, nem para o outro de si, apenas para o Eu, uno, fixo e sagrado, que pode ou não acionar um aplicativo ou enviar um fálico foguete para a beirinha da estratosfera. E dizemos isso do mesmo princípio que Luiz lança mão em O controle do imaginário e que vai se verticalizando ao longo de toda a sua obra. Se as duas formas de controle nos movem e nos param, se uma depende da outra para existir, da mesma forma que uma é a limitação e a outra o cerceamento do pensamento, o que dizer disso quando o ambiente do qual tentamos dar conta perde seus limiteis positivos e suas instituições eternas, quase sagradas, quando a internet permite a criação de um para-consenso que não é pautada em nada, somente na vontade desse Eu autocentrado que se torna o centro de tudo. Os controles passam a perder o sentido, o negativo / positivo, passam a ser relativizados e se tornam contingenciamento do real, ou seja, recaem na mentira e no terraplanismo, o positivo, antes o nosso trunfo de existência cai nas malhas da superinformação, do excesso de dados e das incapacidades de lidar com tanta informação.
Apesar de escritos nos anos de 1983-1984 (Que segundo a atual geração aconteceu há 200 anos atrás) ele nos surge como um grande tapa na cara, uma vez que nos permite ver e uma escala antropológica problemas que se manifestam com a mesma força na literatura e na realidade.
Alice ainda insiste em dizer: “tudo aqui é tão solitário! ”…. As coisas aqui são tão fugidias…e uma tartaruga jogando futebol …. deixou o guerreiro exausto, mas decidido a afirmar para ela , no auge do desespero, que “Contanto que você, de sua parte, não se incomodasse de adotar para você mesma um trocadilho que a Falsa Tartaruga realmente fará, permitindo que os outros possam apelida-la de TORTURUGA…….