Topologia e filosofias virtuais
Este texto foi resultado de minha apresentação no simpósio Real e Virtual, promovido pela revista Cosmos e Contexto e pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Ele acabou sendo integrado a um novo livro que estou concluindo e que se chama Oceanos: a Topologia entre os Continentes, as Margens e a Terra. Alguns conceitos se referem a esse contexto maior da topologia desenvolvida nesse livro.
O Virtual
O Oceano sempre esteve presente como uma unidade conceitual e como uma imagem da metaempiria. Uma imagem do infinito tangenciando a mente e o mundo. E, ao mesmo tempo, a filosofia produziu um escoamento do Oceano em direção ao abismo do esquecimento. E assumiu a centralidade da ilha como ponto fixo e seguro para a investigação racional. Por isso, a condição elemental e elementar da filosofia deve ser reconduzida a sua metaorigem: Oceanos. E, para acessarmos essa metaorigem, devemos necessariamente pensar o virtual. Pensar o virtual é pensar a ilha a partir do oceano e não o oceano a partir da ilha. Esta frase pode ser entendida como um axioma. E esse axioma como um dos eixos que orientam o leitor neste livro-labirinto. Esse axioma seria um dos âmagos da filosofia virtual. E seria a pedra angular desta proposta de uma nova topologia: a topologia virtual. Ao mesmo tempo, um espanto ronda esses acessos ao Oceano. O espanto de perceber que uma das categorias mais importantes do pensamento foi uma das categorias mais marginalizadas e permanece como uma das categorias mais denegadas: o virtual. Toda filosofia não foi nada mais do que uma constante e percuciente atividade de imersão-emersão. Uma tentativa de compatibilizar o oceano do universo e o oceano da mente. A partir do virtual, podemos construir os fundamentos de uma filosofia virtual. Um sistema racional e real dos infinitos modos pelos quais se produziu essa compatibilização. E, a partir dessa filosofia virtual, podemos definir as especificidades dessa nova área do conhecimento e do ser: a topologia. Este livro explora as virtualidades do pensamento a partir de uma topologia de obras, conceitos, autores, matrizes, axiomas, modelos e categorias das mais diversas áreas, tempos, espaços, culturas e vertentes. E navega pelas mais variadas regiões imaginais do mundo, extensivas e existentes, experienciais e reais, efetivas e cotidianas, pois a topologia parte da premissa de que não existe nenhuma cisão entre conceitos, imagens e seres. Uma viagem sem volta em direção às virtualidades cada vez mais opacas do Oceano. Uma dissolução excêntrica da consistência e da constituição de todas as ilhas, extintas pela submersão. Deleuze dizia que a ilha não seria um isolamento ou um fim. Seria a imagem de um novo começo. Essa é uma forma de virtualizar a ilha. Compreendê-la a partir das potências que a constituem e das singularidades que a levam a se tornar sempre excêntrica em relação a si mesma. Para realizar essa viagem em direção à excentricidade, exploro justamente a natureza inacabada que caracteriza o gênero ensaio como forma da literatura. Esse inacabamento sinaliza para as esferas virtuais e submersivas de tudo que foi interditado pelo pensamento. E sinaliza para toda ordem de seres e de eventos que, submetidos à hegemonia de alguns regimes de atualizações e de centralizações, foram praticamente reduzidos à inexistência. E esse inacabamento materializa as vinculações entre linguagem e pensamento, entre conceito e forma, entre mente e mundo. O tema do virtual permeia minha vida há muito tempo. Talvez desde que tenha começado a explorar as relações entre filosofia, ciência e arte, em um momento cuja origem não me recordo. E esse tema tem me ajudado a pensar algumas das categorias que considero as mais desafiadoras da filosofia, tais como infinito, contingência, causalidade, tempo, espaço, relação, dentre outras. Para começar essa abordagem da topologia, devemos ressaltar um dilema milenar que existe na identificação entre duas categorias: o real e o racional. E a exclusão do virtual da determinação e da definição tanto da realidade quanto da racionalidade. Lembremos o axioma bem conhecido de Hegel, segundo a qual o real é racional e o racional é real. Embora corresponda a um aspecto pequeno da imensa obra hegeliana, trata-se de um operador axial. Uma matriz de seu sistema. Como se sabe, Hegel contempla essa realidade-racionalidade a partir do Absoluto, a fonte de virtualidade da filosofia hegeliana. E esse aspecto demonstra a centralidade de Hegel para pensarmos a categoria do virtual. Entretanto, de modo geral, as vertentes hegemônicas do realismo metafísico desde a Antiguidade instituíram essa relação inextricável entre razão e real e entre real e razão. Embora seja um conceito que deveria ser primordial e uma das condições fundamentais do ser e da razão, o virtual acabou sendo escamoteado. E neste livro procuro retificar essa marginalização. O virtual se encontra no coração da topologia. Para sanar essa lacuna, em primeiro lugar devemos pensar a partir de uma tricotomia: razão, real e virtual. E não a partir de uma dialética dual razão-real. Sugiro então introduzir o virtual como uma condição sine qua non para que pensemos o real e a racionalidade. Desse ponto de vista, não há razão sem virtualidade. Não há real sem virtualidade. O real, obviamente, não se reduz à empiria. E essa redução pode ser entendida como um dos problemas da ciência moderna que as ciências da complexidade procuram superar. Não se trata de reduzir a ciência moderna ao empirismo. As estruturas dedutivas, o indutivismo, o falibilismo, os processos abdutivos de Charles Sanders Peirce, dentre outros processos. Todos eles concorrem para a ciência experimental moderna. O empirismo entretanto acabou adquirindo predominância nas ciências experimentais. E isso levou a um certo confinamento do real ao empírico. E esse confinamento traz alguns problemas que precisamos investigar. Embora o empirismo não esgote o vasto campo da ciência, boa parte dos procedimentos experimentais da ciência podem ser assimilados e explicados a partir de dados da empiria. Por mais que o empirismo seja uma linha nuclear da filosofia, de Aristóteles a Francis Bacon, de Hume a William James, assimilar a filosofia à empiria seria um contrassenso. A filosofia é uma metateoria: uma teoria acerca das teorias. Uma atividade metaconceitual que investiga os conceitos concernentes à realidade e não uma realidade propriamente dita. Mesmo do ponto de vista da ontologia, entendida como estudo do ser enquanto ser e, por conseguinte, do real enquanto real, a empiria seria apenas um subconjunto do real. E a filosofia quase sempre concebe o real e empiria como termos disjuntivos. E isso ocorre porque primordialmente o real diz respeito ao transcendental. Platão identifica a realidade às formas. E essas ideias-formas são estruturas arcanas e transcendentais que constituem uma realidade primeira e última. Platão é um realista das formas. Assim como Aristóteles é um realista das substâncias, pois mesmo se apoiando na empiria, não associa real e empiria. Nesse sentido, as formas, os arquétipos, as estruturas eidéticas e as substâncias fazem parte da natureza. Elas são a realidade. E são aquilo que estrutura o cosmos de modo racional. Há aqui uma convergência entre transcendentalidade, racionalidade e realidade em uma dimensão metaempírica. E essa é uma das bases do realismo metafísico: apoiar-se na empiria para fornecer uma estrutura transcendental que a negative. Nesses termos, o realismo metafísico se estende desde a Antiguidade até alguns de seus expoentes século XX. Todos herdeiros dessa metafísica substancialista e do realismo das formas. Essa é uma espinha dorsal do pensamento no Ocidente. E se relaciona com a topologia dos Continentes, que pretendo abordar em um momento oportuno. A despeito de seu valor, precisamos pegar atalhos e caminhos alternativos a essa grande autoestrada. Como diria Deleuze, o pensamento não se encontra nas autoestradas. Encontra-se nos atalhos, nos caminhos paralelos, nas bifurcações, nos acostamentos. E apenas por meio desses caminhos emaranhados e menos evidentes conseguimos pensar o virtual, extremamente minimizado e ignorado por essas filosofias.
Diante disso, como definir o real? Uma definição breve e (acredito) eficaz seria: o real é a unidade imanente ou transcendental da razão. E aqui, quando falamos em unidade, surge outra questão espinhosa: as relações entre unidade e totalidade. Um dos aspectos mais importantes a ressaltar nessa relação é a natureza não necessariamente conjuntiva entre esses quatro termos: real e razão, unidade e totalidade. Diante dessas relações não-conjuntivas, o real necessariamente pressupõe um processo de unificação dos seres e dos fenômenos. Esse processo entretanto não demanda necessariamente totalidade. Essa reconversão entre unidade e totalidade e entre totalidade e unidade há muito tempo é a gênese de muitos falsos problemas. E a sobreposição desses pares razão-real e unidade-totalidade aprofundou ainda mais esses problemas. Por quê? Porque podemos produzir diversas unidades parciais. Sejam unidades perceptivas de um determinado espaço observável. Sejam unidades conceituais de um determinado ser. Sejam unidades processuais de um determinado evento. Isso não nos autoriza a afirmar que essas percepções, seres e eventos estejam inseridos dentro de um grande meta-ser chamado totalidade. A crença nessa transposição de n-unidades parciais e condicionais a uma arquitotalidade efetiva sempre foi uma fonte de ilusões, como veremos aos poucos nos desdobramentos da topologia e de um de seus operadores matriciais: o transverso. Seguindo nessa mesma linha, as conversões e reconversões entre real e racional se apoiam nessas falsas passagens da unidade à totalidade. E, por isso, durante tanto tempo, tanto a física quanto a filosofia se empenharam em comprovar que apenas uma totalização do universo pode produzir uma possibilidade de racionalização desse universo. Ora, para pensar em que medida essa totalização é efetiva, basta pensarmos em que medida temos acesso a essa totalidade chamada universo. Nesse ponto e em tantos outros, a metacosmologia do cosmologista brasileiro Mario Novello é decisiva[1]. Não apenas por propor alternativas a impasses das cosmologias moderna e contemporânea. Ela é decisiva por resolver impasses perpetrados inclusive pela filosofia ao longo de séculos. À medida que definimos o cosmos como tudo que existe, e a cosmologia como o estudo de tudo que existe, não temos acesso à totalidade de tudo que existe[2]. Nesse sentido, devemos contemplar necessariamente as virtualidades de existências e de existentes aos quais não temos acesso. Para acessar essas zonas virtuais do cosmos e da cosmologia, e para uma compreensão mais vasta e racional do universo, devemos contemplar as virtualidades de geometrias e de topologias capazes de gerar cosmologias distintas. À medida que se baseia em algum grau de totalização, nenhuma cosmologia fundada em apenas uma geometria-topologia pode fornecer um acesso seguro ao cosmos. Se o cosmos é tudo que existe e se tudo que existe não é totalizável, a única cosmologia capaz de fornecer meios seguros de acessar e descrever o cosmos seria a metacosmologia[3]. A metacosmologia nesse sentido é essencial para pensarmos esses universos virtuais que não se encontram dados em uma totalidade. E por isso a metacosmologia pode mesmo ser definida como uma cosmologia virtual. Paralelamente a essas aporias do virtual, outro problema que ronda a categoria do virtual, e que infelizmente é bem comum na teoria da informação e na teoria da comunicação, é a redução do virtual aos aparelhos digitais, aos computadores, às máquinas e às redes comunicacionais que nos cercam. Toda essa rede informacional infinita é extremamente importante e trouxe alterações radicais para o sapiens, a vida e a Terra. Entretanto, mesmo em sua magnitude, essa rede não passa de um fenômeno pequeno dentro da escala universal e transversal desse conceito de virtual. Essas concepções que reduzem o virtual ao digital geram filosofias igualmente reducionistas e catastrofistas[4]. Embora seja importante sempre ter em mente apocalipses potenciais, ainda mais em se tratando do capitalismo computacional cada vez mais devastador em que viremos, essa redução do virtual ao digital quase sempre nos leva a diagnoses imprecisas sobre o mundo que nos cerca. E obstrui a construção de uma filosofia virtual em toda sua potência subversiva e pampsiquista, baseada na indiscernibilidade absoluta entre real e virtual[5].
Qual seria então a definição de virtual que proponho e que gostaria de seguir? O virtual seria o conjunto de informações espaciais, temporais e causais desconsideradas durante a edificação de um determinado sistema, de uma filosofia ou de uma cosmologia. Se informações espaciais, temporais e causais são desconsideradas quando edificamos um determinado sistema, isso significa que essas informações desconsideradas se virtualizaram em relação a esse sistema. Essas informações virtualizadas são essenciais para a constituição de uma categoria nuclear da topologia: a cibernesis. Por isso, justamente sobre essas informações que temos que concentrar nossa atenção. A partir disso, fica ainda mais claro por que é extremamente redutor pensarmos a virtualidade como sinônimo de computação, de computadores e de redes digitais. À medida que temos inputs informacionais dentro de um computador ou de qualquer sistema, todas as informações que foram excluídas desse sistema e desse computador se virtualizaram em relação a esse sistema e a esse computador. Temos então aqui algo curioso: uma virtualização do virtual. À medida mesma que o universo computacional e digital se constitui, esse mesmo universo virtualiza as informações mesmas que foram excluídas de seus sistemas operacionais. Essa virtualização do virtual precisa estar em nossa rede de atenção. E é para essa natureza de virtualização que temos que nos endereçar. Como em uma linha de fuga em direção a esse Oceano aberto dos sistemas comunicativos, devemos seguir as linhas e as fissuras que nos conduzem a esse fora, para pensar com Deleuze e Foucault. Essa virtualização do virtual é uma das potências de uma filosofia virtual. É uma das formas mais efetivas de propormos alternativas à algoritmização da Terra. A globalização e a revolução digital sinalizaram para uma possibilidade de contato com uma alteridade radical praticamente infinita. Como se pela primeira vez a humanidade pudesse ser totalmente conectada. E o resultado não poderia ser mais paradoxal. Temos nos tornado presos a mais do mesmo, circulando dentro das chamadas famosas bolhas digitais. E isso para não falar da dimensão dos impactos políticos catastróficos dessa estrutura. Por esses motivos, precisamos achar meios de virtualizar o virtual. Devemos ir em busca daquilo que não foi inserido no sistema. E compreender os caminhos e as alternativas dessas virtualidades. Para trabalharmos de modos distintos essas acepções do virtual, e não negarmos a importâncias do universo digital e tampouco reduzirmos o virtual às novas tecnologias, é importante demarcar a diferença entre uma filosofia virtual e uma filosofia do virtual. A filosofia do virtual consiste em um uso da filosofia para se pensar o virtual tecnológico e mesmo ir além dos aspectos tecnológicos. A filosofia virtual seria aquela que se define em sua categorização e em seu corpus conceitual como uma filosofia virtual. Embora se apoie em filosofias do virtual, a topologia se pretende uma filosofia virtual[6]. Uma filosofia virtual necessariamente traria o virtual e a virtualidade como matrizes irradiadoras de todo o sistema e de todo o pensamento. E, não por acaso, Deleuze é o autor fundamental do século XX justamente por ser um dos maiores representantes de uma filosofia virtual.
A Contingência Pura
O que define a filosofia virtual? Em primeiro lugar, a filosofia virtual pensa a ilha a partir do oceano e não oceano a partir da ilha. E aqui começamos a especular sobre o operador matricial que atravessa este livro. E essa seria uma das prerrogativas da topologia como um todo e, mais especificamente, de uma topologia oceânica. Os Oceanos seriam a condição global, infinita e omnicompreensiva de todas as existências e existentes que não podem ser acessados a partir da ilha e tampouco podem ser reduzidos à ilha. Uma das bases para a construção dessa filosofia virtual é o que eu tenho chamado de contingência pura. Essa contingência pura dialoga com o conceito de diferença pura de Deleuze[7]. E há outras fontes bastante contemporâneas desse debate. Ele foi trazido à tona por um movimento chamado Realismo Especulativo[8]. E depois por um desdobramento desse movimento que ficou conhecido como Ontologia Orientada aos Objetos (OOO)[9]. Quem teoriza mais especificamente essa forma de contingência é Quentin Meillassoux[10]. Como discípulo de Badiou, Meillassoux parte da matematização da ontologia e da multiplicidade sem unidade para pensar uma multiplicidade de mundos. E, por conseguinte, para conceber a necessidade da contingência. Ele então inverte essas duas categorias primaciais da filosofia. A filosofia sempre trabalhou com relações de necessidade. Essas relações se referem às leis. Tudo que não pode ser diferente do que é pode ser definido como uma necessidade. E a contingência teria uma tradução mais imediata e um pouco mais cotidiana por meio do termo acaso. Eventos, condições e seres contingentes são todos aqueles que poderiam ter sido diferentes do que foram, podem ser diferentes do que são e podem vir a ser diferentes do que imaginamos que eles necessariamente devam vir a ser. Meillassoux e outras linhas da filosofia contemporânea alteram isso. E colocam a necessidade da contingência. A contingência aqui assume a posição fundamental de tudo que existe. Para pensar essa condição fundamental da contingência pura não podemos subsumir a contingência à necessidade, ou seja, pensar que tudo o que ocorra de modo contingente deva ser subsumido a leis previamente determinadas. Devemos questionar o estatuto contingente dessas leis. Como se deve imaginar, abre-se aqui um abismo. Um abismo que devemos atravessar para conceber esse novo estatuto da contingência. Ao mesmo tempo, não podemos mais simplesmente nos basear em uma dialética de complementaridade entre necessidade e contingência. Por quê? Porque esse reino da contingência pura é o reino da pura virtualidade. E devemos enfatizar essa constituição singular da contingência, entendendo-a como uma categoria livre de causas necessárias e livre dos regimes produzidos pela necessidade, dentre elas as leis. Precisamos enfatizar essa natureza de contingência para que possamos acessar esse reino da virtualidade. Justamente nesse ponto emerge a topologia. A topologia seria uma investigação sobre os espaços a partir das virtualidades desses espaços, e não a partir daquilo que se atualizou para um determinado observador, para uma determinada condição, para um determinado mundo e mesmo para um determinado universo, pois a topologia virtual questiona acima de tudo a unidade-totalidade de nosso universo. Para compreender um pouco melhor a emergência desses pluriversos, precisamos definir e circunscrever um pouco melhor o termo topologia.
Topologia, Lugares e Qualidades
Há algumas diferenças essenciais entre essa topologia que estou propondo e as topologias matemáticas e físicas definidas a partir de geometrias singulares. A primeira delas é a dimensão qualitativa. Por maior que seja a quantidade de dimensões e a complexidade das variações infinitas produzidas por diferentes geometrias, as topologias matemáticas e físicas privilegiam os quantificadores dessas relações, estruturas e funções. Por isso essas topologias geralmente são decorrentes de geometrias. Não são geometrias que emergem de topologias. Devido a isso, em primeiro lugar a topologia virtual propõe uma autonomia da topologia em relação às geometrias. E, em segundo lugar, uma topologia virtual prioriza acima de tudo as relações qualitativas às relações quantitativas. Essa autonomia da topologia em relação às geometrias e essa ênfase sobre as qualidades em detrimento das quantidades alteram praticamente tudo que se concebeu e se teorizou sobre topologia. Essa alteração exige que conceituemos a topologia a topologia a partir de uma nova matriz operacional, funcional e conceitual. Em detrimento da categoria espaço, assume o protagonismo aqui uma nova matriz: o lugar. Tanto as convenções antigas quanto as convenções modernas acerca do espaço se apoiaram em uma abstratização desse conceito para conseguir um desempenho melhor da aplicabilidade e da previsibilidade exigidas pelo modus operandi da ciência moderna. A história do espaço nesses termos é a história de um longo processo de homogeneização e de depuração das relações concretas e situadas que cada ser orgânico e inorgânico estabelece com as qualidades espaciais que o cercam. Por isso a necessidade de recuperar uma topologia dos lugares. Os lugares são dimensões espaciais qualitativas. E não podem ser abstraídos de suas qualidades sem perda essencial das condições fundamentais que os determinam como lugares. Ao mesmo tempo, os lugares são sempre situados. Não existe lugar abstrato. Todo lugar é um meio e um mundo, uma rede de relações de proximidade e de distância, um emaranhado de conexões e de comunicações. Esse emaranhado pode ser alterado. Contudo, a alteração de cada ponto, de cada linha e de cada plano desse emaranhado necessariamente altera as qualidades de cada ponto, de cada linha e de cada plano da malha relacional. E, por conseguinte, altera o conjunto infinito dos lugares emaranhados entre si. Desse modo, o espaço seria uma unidade homogênea onde os seres do universo se inscrevem. Ao passo que os lugares são o emaranhado relacional e granular de todos os existentes e de todas as existências. E não existiria um todo efetivo ou abstrato dentro do qual esses lugares infinitos se inscrevam e se totalizem. Dentre os autores que melhor compreenderam essa necessidade de criar modelos heterogêneos que dissolvessem essa aparente homogeneidade universal do espaço, dois deles se destacam: Jean-Marie Guyau e Henri Bergson.
Bergson ficou muito conhecido por ter alterado de modo significativo a categoria tempo na filosofia[11]. Uma das principais fontes para essa alteração é a obra de Guyau[12]. Contudo ambos deram contribuições decisivas para uma revisão global do conceito de espaço. Guyau parte do apriorismo de Kant e identifica um conflito entre tempo e espaço quando os propomos como transcendentais. Para concebermos o tempo como uma categoria a priori que prescinde da experiência, o espaço não poderia ser a priori porque deveria ser a fonte de dados da experiência a serem negativados pela dedução transcendental. O mesmo ocorreria para o espaço. Para que o espaço seja a priori, o tempo não poderia sê-lo. Caso o fosse, não haveria uma instância experiencial e inferencial a partir da qual poderíamos promover a transcendência da experiência como experiência. Mais do que antinomias, haveria uma contradição interna no sistema kantiano. E essa contradição consiste na impossibilidade de estruturar duas categorias fundamentais como espaço e tempo dentro do esquema do apriorismo. À medida que o acesso à esfera global do tempo e à esfera global do espaço é sempre dedutivo, isso inviabilizaria o acesso à experiência do tempo e à experiência do espaço. Em outras palavras, isso inviabilizaria a construção dedutiva do sistema transcendental. Essa condição demonstraria a impossibilidade de conciliar tempo e espaço como categorias simultaneamente a priori. Por mais que essa crítica de Guyau a Kant tenha problemas e possua alguns limites, ela é importante. Pressupõe uma codependência entre tempo e espaço. Essa codependência seria diferente da codependência estrutural do espaço-tempo de Einstein. Para Einstein, essa codependência engendra a relatividade, mas estaria estruturada em condições que não são absolutas, mas são transcendentais. Guyau questiona a viabilidade dessa dupla transcendentalidade e, ao mesmo tempo, postula uma solidariedade profunda entre espaço e tempo. Ora, essa solidariedade se encontra muito afinada com a solidariedade proposta pela topologia. À medida que todo campo conceitual da topologia se organiza a partir de propriedades emergentes, as condições contingentes de um espaço X produziria a emergência de um tempo Y. Ao passo que as condições contingentes de um tempo Z produziria a emergência de um espaço W. Os n-tempos do universo produziriam nesse sentido a emergência de n-espaços. E os n-espaços do universo produziriam a emergência de n-tempos. Contudo, essa solidarização infinita entre as n-condições espaciais e as n-condições temporais exige que postulemos uma variação universal dos tempos em relação às condições iniciais e emergentes de n-tempos. E uma variação universal dos espaços em relação às condições iniciais e emergentes de n-espaços. A topologia define essa estrutura de transvocidade, que vai ser analisada mais pra frente. Embora seguindo muitos passos de Guyau, a relação de Bergson com o espaço é diferente. Bergson identifica um problema nos conceitos de espaço da filosofia e da ciência modernas. O cerne desse problema repousa em uma concepção homogênea, abstrata e absoluta do espaço. Por mais que essa concepção tenha nuances em ciências, sistemas e pensadores diferentes, a sua hegemonia ter-nos-ia impedido de pensar uma categoria e uma dimensão espaciais fundamentais: o lugar. Bergson recorre a Aristóteles e, em alguma medida contra o aristotelismo, lê criativamente o estatuto e a posição do conceito de lugar em sua obra[13]. Resumidamente, o lugar seria heterogêneo em relação a todos os seres, qualidades, propriedades, posições, tempos, quantidades, relações, dentre outros conceitos. Ao mesmo tempo, não podemos identificar o lugar com o vazio, o intervalo, o cheio, os corpos, dentre outros seres e propriedades. Isso nos conduz a pensar uma nova ontologia a partir da ontologia dos lugares. Os lugares não seriam nem abstratos e homogêneos como espaço. E tampouco podem ser reduzidos às determinações contingentes dos seres situados que ocupam lugares singulares. Em diversos sentidos, essa constituição composta, complexa e relacional dos lugares proposta por Bergson se assemelha à constituição reticulada, granular e emaranhada do espaço proposta por algumas linhas da teoria quântica. Isso nos conduz a um aspecto nuclear da topologia: as relações entre temporalidade, espacialidade e causalidade. E, mais do que isso, as relações transvetoriais e transfinitas entre tempo, causa e espaço. A maioria das topologias diz respeito a alterações de dimensões e de padrões espaciais. E essas alterações são determinadas sobretudo pelas variações de geometria. Exceção feita à estrutura do espaço-tempo de Einstein, raras vezes a topologia incide sobre o tempo. E mais raras vezes ainda engloba sistemas causais. E, quando o faz, acaba por preservar o tempo e a causa como constantes universais ou como metaunidades abstratas capazes de unificar os dados da experiência e totalizar o cosmos. A topologia virtual propõe uma pulverização infinitesimal do tempo, das causas e do espaço. Uma subsunção dessas categorias aos mesmos modelos emaranhados dos lugares. E, mais do que isso, uma assimilação dessas categorias emergentes de n-tempos, n-causas e de n-espaços à contingência pura. Ora, essa virtualização infinita do tempo produz não apenas uma infinitização do tempo. Essa virtualização infinita do espaço produz não apenas uma infinitização do espaço. Essa virtualização infinita das causas produz não apenas uma infinitização das causas. Essas virtualizações produzem uma infinitização das condições iniciais contingentes de cada linha causal, de cada linha temporal e de cada linha espacial. Essa topologia virtual baseada na solidarização transversal e transvetorial de tempos, espaços e causas em torno da infinitização de n-lugares causais, espaciais e temporais abre caminho para o grande operador dessa topologia: o transverso. Para compreender um pouco mais a constituição dessa nova topologia, vamos investigar um pouco alguns dilemas do binômio atual-virtual.
Atual-Virtual e Potência-Ato
Um dos principais dilemas enfrentados por esse binômio é a sua milenar sobreposição a outro binômio: potência-ato. A confusão desses dois binômios ocorre justamente pela força com que essa dialética entre potência e ato se desenvolveu como formadora do Ocidente. Para começar, vamos daquele exemplo bastante simples de Aristóteles: a imagem da semente. Toda semente traz em si a potência de se tornar árvore. Toda semente seria assim uma árvore potencial. E a árvore seria uma semente em ato. Devido a isso, os medievais, sobretudo Tomás de Aquino, definem Deus como ato puro. Em outro momento, definem-no como puro existir. Por quê? Porque Deus seria o modo omnicompreensivo de todas as potências que podem vir a ser. a existência omnímoda de todos os existentes. Deus seria o conjunto infinito e as infinitas modalizações de todas as potências que podem vir a se tornar ato. Deus seria, nesses termos, a necessidade absoluta. Como esfera plena e puramente formal que doa existência a todos os existentes, Deus seria uma instância existenciadora: doa existência a todos os seres sem precisar que a sua existência lhe seja doada por Outrem. Ao passo que todos os existentes, em suas potencialidades singulares e mesmo em sua tendência ao ato, seriam contingentes e parciais. Essa visão tem diversos problemas. E, no entanto, ela foi hegemônica durante mais de dois milênios. Podemos começar destacando apenas dois problemas.
O primeiro problema dessa tradição baseada em ato e potência é destacado pelo filósofo Giorgio Agamben[14]. Agamben propõe que a metafísica ocidental não apenas se desenvolveu a partir dessa matriz potência-ato. Desenvolveu-se a partir de uma necessidade do não-ser vir a ser. E a pergunta de Agamben é: por que o não-ser precisa necessariamente ser? Ou seja: por que a potência necessariamente precisa vir a se constituir e a se consumar em ato? Agamben então constrói uma filosofia do não-ser. essa filosofia não constitui de maneira nenhuma uma filosofia da impotência. E, por isso, para essa distinção, cunha um neologismo: o impoder. Pensar o impoder não seria pensar a impotência ou a despotencialização dos seres que não se realizaram em ato. Uma filosofia do impoder seria uma filosofia da potência de não se consumar em ato. Em outras palavras: uma potência do não. Uma renúncia ao ato e à necessidade de se constituir como ato. Há muitos momentos da literatura, das artes e da filosofia em que se pode visualizar isso. Um dos momentos mais claros é materializado pelo personagem Bartleby, da novela de Herman Melville, autor de Moby Dick[15]. Bartleby trabalha em um pequeno escritório em Nova York. E, um dia, sem nenhuma explicação, recusa-se a cumprir a função que lhe cabe. A explicação parcial é dada apenas por uma frase repetida à exaustão e que funciona como um leitmotiv da obra: “Preferiria não fazer”. Bartleby seria uma alegoria da desativação do sistema financeiro estadunidense. E, ao mesmo tempo, uma alteração decisiva da metafísica ocidental, baseada há milênios no imperativo dos seres se realizarem em ato. Essa seria assim uma guinada produzida a partir do impoder. Uma potência dos potenciais não se tornarem ato. Essa guinada possui uma consequência política. Baseia-se na premissa de uma ontologia da inoperosidade. Uma ontologia cujo modus operandi seria o anarquismo e um projeto de desativação do sistema capitalista. Essa abordagem de Agamben nos conduz ao cerne do virtual. Devemos aqui imaginar que a semente poderia madurecer um pouco mais. A semente pode vir a ser outras árvores X, Y ou Z, distintas da árvore que se espera que ela seja. E, na acepção de Hegel, dependendo do campo de virtualidades que essa semestre acesse, ela pode se transformar não apenas em uma árvore futura radicalmente distinta da árvore presente na qual tornar-se-ia. Ela pode se tornar um ser radicalmente diferente do que possa ser definido como árvore, alterando-se em sua essência e em sua substancialidade. E tudo isso desde que a semente consiga renunciar ao ato. E consiga se preservar pelo maior tempo possível na máxima tensão de uma expectativa inconclusiva, potencializando a cada instante o seu impoder. O limite dessa concepção de Agamben consiste em se manter presa a concepções do virtual que podemos definir como privativas. Não podemos reduzir o conjunto infinito das virtualidades a um conjunto de potencialidades que apenas renunciaram a ser ato. Essa concepção vincula de modo excessivo a constituição e a especificidade da esfera virtual às recusas dos atos aos quais essas virtualidades estão destinadas dentro das leis fornecidas pela necessidade. Não haveria aqui uma demarcação, uma legitimidade e uma autonomia da esfera virtual dos seres, independente das determinações potenciais privativas desses seres renunciarem a se efetivar como X, como Y ou como Z em ato.
O segundo problema da tradição da metafísica antiga é o problema da identidade. Isso foi diagnosticado por Hegel. E por esse e diversos outros motivos, Hegel é um divisor de águas da filosofia virtual. Qual é a questão hegeliana essencial? Há um postulado bastante conhecido de Aristóteles sobre o princípio de não-contradição. Se X é X e Y é Y, X não pode ser Y e Y não pode ser X. Durante dois milênios, esse princípio foi tão auto-evidente e constitutivo para o pensamento ocidental que qualquer tipo de alteração ou de questionamento desse princípio seria considerado algo da ordem da loucura. Se determino uma árvore X e um cavalo Y, a arvoridade da árvore e a cavalidade do cavalo, a quididade do cavalo e a quididade da árvore, como queriam os medievais, como em sã consciência eu posso dizer que o cavalo é árvore e a árvore é cavalo? Hegel implode o castelo conceitual da identidade. E o faz a partir de uma concepção nuclear: o infinito negativo. O infinito negativo se relaciona com o Absoluto. O que seria esse infinito negativo? Comumente o infinito negativo é conhecido como devir. Para compreendê-lo, devemos imaginar uma linha infinita negativa rasgando a natureza. Como ela é infinita, ela infinitiza natureza. E como ela é negativa, dissolve e negativa em si toda positividade do universo e de tudo que existe, incluindo Deus. O infinito positivo é Deus. O infinito negativo de Hegel é o demônio. Não há Deus que subsista ao dinamismo e ao demonismo do sistema hegeliano. E, quando há, Deus seria o resultado de um infinito processo de nadificação e de negativação de tudo que foi chamado de Deus e de divino durante a evolução do sapiens. E por isso as analogias com a filosofia de Hegel e a filosofia de Goethe, sobretudo no Fausto. Se o infinito rasga a natureza em sentido negativo, ele a subdivide infinitamente. Isso significa que ôntica e logicamente, em algum momento do Absoluto, X foi Y e Y foi X. O cavalo foi árvore e a árvore foi cavalo. Por mais estranho que isso possa parecer, há uma absoluta e infinita racionalidade nesse postulado. E o que sustenta a absoluta racionalidade do sistema hegeliano diante dessa afirmação? O simples fato de analisarmos a teoria da evolução de Darwin a partir de Hegel. Durante o Pré-Cambriano, 530 milhões de anos atrás, das virtualidades dos Oceanos e de organismos multicelulares, emergiram as condições de todos os seres vivos da Terra, humanos e não-humanos. E, de alguma maneira, o cavalo, a árvore e todo vida da Terra estavam inscritos nesse princípio: a virtualidade da vida arcana e primitiva se encontrava nas virtualidades do programa-Oceano, do programa-Terra e do programa-universo. Aquilo que Flusser define como ovo-programa. Essa alteração abre uma imensa comporta para a virtualidade. Deixa de restringir a virtualidade àquilo a que a virtualidade se destina, ou seja, ao ato que lhe cabe de acordo com sua potência. E essa passa a ser então uma alteração nuclear para a elaboração de uma filosofia virtual.
Para exemplificar a potência dessa lógica da contradição hegeliana e dos caminhos que os virtuais podem abrir na ciência, podemos lembrar o papel da contradição em tantos aspectos da teoria quântica. O princípio de complementaridade de Niels Bohr, o continuum, a onda-piloto e a ordem implicada de David Bohm, a indeterminação onda-partícula de Louis De Broglie, o princípio de incerteza de Heisenberg, dentre tantos outros. Para nos determos em um exemplo mais específico, lembremos da argumentação de Einstein contra a teoria quântica. Einstein contribuiu de modo decisivo para a fundamentação da teoria quântica no começo de seu desenvolvimento. Depois se converteu em um de seus maiores inimigos. Definiu-a como uma teoria incompleta e cujas complexidades decorreriam não de uma complexidade da natureza, mas da incompletude da teoria. Criticou a ação à distância, postulada pela quântica. Criticou as chamadas variáveis ocultas sobre as quais a quântica eventualmente apoiar-se-ia. Nesse campo da teoria quântica, cada vez mais se comprova que Einstein estava errado. Por maiores que tenham sido as suas contribuições em outras áreas, podemos imaginar que nessas críticas à teoria quântica ele teria permanecido preso ao princípio aristotélico de não-contradição. Se ele se valesse da lógica da contradição hegeliana, talvez tivesse conseguido identificar os valores da quântica que não conseguiu identificar. Em outras palavras, Einstein não soube acessar as virtualidades da natureza e dos conceitos. E isso impediu que mesmo um cientista brilhante como ele reconhecesse como verdadeira uma teoria cada vez mais reconhecida como verdadeira. Nesse sentido, o paradoxo desempenha um papel seminal na ciência, na filosofia, nas artes e na produção de conhecimento em geral. Talvez o paradoxo não deva ser considerado uma estrutura fundamental e nem uma lei do universo ou da natureza. O paradoxo seria o signo da contradição emergente das atualizações do universo e da natureza. Como diria Heráclito, a natureza ama ocultar-se. Esse processo infinito de ocultamento da natureza não seria um processo místico. Seria apenas o descompasso racional entre as redes virtuais infinitas e as entidades atuais finitas a que temos acesso. Quando as atualizações da natureza se manifestam sob a forma do paradoxo, estariam apenas nos conduzindo à necessidade imperativa de acessar as esferas e campos virtuais que a constituem. Como um conjunto de signos da contradição das atualizações, o paradoxo exige que investiguemos as camadas virtuais desses fenômenos aparentemente paradoxais. E essa passagem das atualidades-ilhas finitas às virtualidades-oceanos infinitas pode ser considerada uma das forma mais efetivas de produção de conhecimento, na ciência, na filosofia e nas artes.
O sistema hegeliano por sua vez tem uma limitação. A negatividade é o fundamento da filosofia hegeliana. E ela é um dos principais operadores do processo de determinação e de indeterminação dos seres. Esse processo parte da condição mais indeterminada do ser em-si. Uma primeira negatividade converte o ser em-si em uma instância radicalmente determinada: o ser-aí. À medida que o ser-aí se torna um ser para a consciência, a consciência opera sobre ele uma nova negativação. Converte-o em ser para-si. E quando essa negatividade da consciência é negada pelo devir, chegamos a um quarto momento do percurso negativo: o ser-em-si-para-si. A reabsorção desse percurso da negatividade posiciona o ser mais uma vez em uma condição de universalidade generalizada e indeterminada, mas em um momento diferencial e diferenciado do tempo e pelo tempo, pois, no sistema hegeliano tudo que existe, existe na ordem do tempo. Esse processo em Hegel é essencial para pensar a determinação e a indeterminação dos seres, e, ao enfatizar a indeterminação, enfatiza as virtualidades das existências e dos existentes, dos seres e dos mundos, dos eventos e dos processos. Há entretanto um conceito em Hegel que circunscreve o campo dessa fenomenologia e dessa ontologia das esferas virtuais: a efetividade (Wirklichkeit)[16]. De certa maneira, essa efetividade diz respeito ao real e ao campo fenomênico de sua realização. E, desse modo, restringe o conjunto infinito dos virtuais. A partir da estrutura bipolar real-virtual, a filosofia de Hegel abre imensas comportas oceânicas para identificarmos o virtual e o Absoluto. E, ao mesmo tempo, reduz as dimensões oceânicas desse Absoluto ao pensar a efetividade real como aquilo que se manifesta e não como aquilo que se retrai e se virtualiza ad infinitum. Esse problema central da filosofia hegeliana se consuma em uma conceito: a teleologia. A teleologia e o dinamismo causal unilinear são os aspectos mais criticados do sistema hegeliano no pensamento contemporâneo. E um dos objetivos primaciais da topologia virtual é combater, reconstruir e desativar os sistemas unilineares, monocausais e finalistas. A despeito disso, Hegel criou um sistema imenso e complexo, que admite diversas leituras. A teleologia contudo é um dos âmagos do sistema e um dos pontos centrais dessa odisseia de efetivação da consciência de si em uma fenomenologia do Espírito. A teleologia seria também uma maneira de restringir esse campo da contingência pura. A despeito disso, em muitos sentidos Hegel pode ser entendido como um aliado. E pode ser lido como um ponto de virada da filosofia virtual.
Nesse sentido, dentre os autores que mais potencializaram a filosofia virtual no século XX, dois se destacam: Heidegger e Deleuze. Em que medida Heidegger nos ajuda a pensar a questão da virtualidade? Em primeiro lugar, por meio da relação disjuntiva que Heidegger estabelece entre ser e ente. O ser descreve o conjunto infinito de existências diferenciadas em relação às estruturas naturalizadas e intramundanas de uma determinada zona de facticidade. Esse conjunto é o conjunto dos entes. O destino do ser sempre foi e sempre deve consistir em uma alteridade e uma outridade radical em relação à totalidade dos entes: Outrem. A partir de Heidegger, o ser se converte em um conjunto infinito de virtualidades ainda não identificadas e ainda não determinadas. Para se preservar na esfera emergente e diferencial infinita do ser, esse conjunto nunca pode ser totalmente determinado ou identificado. A esfera do ser tampouco consiste em uma esfera cristalizada pelos conceitos ou reduzida pela técnica. E, nesse caso, nem o real e nem o virtual podem ser reduzidos a um conjunto de entes. Esse movimento é o movimento de retração do mundo em relação ao ser-aí (Dasein). As coisas, os seres, os eventos estão sempre se retraindo do pensamento, e esse é modo mesmo de ser e de essencializar das coisas, dos seres e dos eventos. Os eventos , os seres e as coisas se retraem sobretudo das mãos. Não conseguimos manipular o mundo quando acessamos o ser. E para acessar o ser devemos fenomenologicamente colocar entre parêntesis a atividade manipuladora e redutora do mundo às mãos. Diferencial em relação aos entes, quando acessamos, capturamos e codificamos o ser necessariamente o entificamos. O mundo estaria então o tempo todo em um refluxo em relação às mãos, em relação à capacidade operacional dos conceitos e em relação aos dispositivos classificadores da mente. Essas são as condições para a crítica de Heidegger a toda filosofia e sobretudo à técnica, ambas entendidas como resultado de um milenar processo de esquecimento do ser e de entificação da natureza processual e diferencial da existência. Essa visão descortina um horizonte pluralista. Uma abertura para mundos virtuais e para infinitos seres-aí que são infinitas constituições mundanas e infinitos mundos que se virtualizam uns aos outros. Não conseguimos ter um ponto de apoio ou um ponto de sustentação unificado em relação a todos esses mundos. Ligia Saramago demonstra com agudeza os caminhos e os descaminhos dessa topologia do ser que permeia toda obra de Heidegger[17]. E propõe uma reconstrução singular e potente de toda filosofia de Heidegger a partir do projeto de uma filosofia do espaço. Esse projeto se encontra em um ensaio chamado Ser e Espaço, esboçado por Heidegger e abandonado. Hoje em dia quem tem levado mais longe essa topologia do ser entrevista por Heidegger é Peter Sloterdijk, autor nuclear para a topologia. Mesmo diante dessas contribuições, há uma limitação na obra de Heidegger concernente a essas relações virtuais-atuais. E essa limitação diz respeito a uma amorfia das virtualidades. Como Heidegger implodiu toda filosofia e se propôs começá-la do zero, ateve-se à questões e aos problemas da diferença ontológica. Mesmo o seu pensamento posterior à reviravolta (Kehre), conhecido como segundo Heidegger e marcado pela noção de evento, essa amorfia é detectada. E isso sinaliza um problema constitutivo de seu pensamento para as demarcações formais e para as articulações do campo virtual. O que seria essa amorfia? Por mais que o virtual não seja acessível diretamente, deve-se pensar as suas constituições emergentes. A amorfia obstrui essa categorização das unidades existenciais e formais do plano das virtualidades. Ocorre aqui uma limitação semelhante às limitações da obra de Agamben. Não podemos definir a esfera infinita dos virtuais apenas como formas privativas desses virtuais se emanciparem dos atos quais se destinam. Tampouco podemos conceber os virtuais como meras retrações que se negam a aderir ao processo de entificação universal. Em ambos os casos, os virtuais não são pensados em sua efetividade, em sua autonomia, em sua racionalidade e em sua realidades singulares. São tomados como espelhos invertidos dos processos negativos que sequer são imanentes à sua emergência e à sua constituição. De qualquer forma, podemos dizer que a categoria do virtual foi sinalizada e expandida por Heidegger. E uma topologia e uma filosofia virtuais devem seguir adiante e expandir cada vez mais as esferas concêntricas desse Oceano para solucionar essas limitações de Hegel e de Heidegger. Para solucionar essas limitações e construir um novo horizonte para a filosofia a partir do virtual, uma das linhas mais potentes na filosofia e da ciência modernas e contemporâneas é a linha das chamadas monadologias.
Monadologias
A importância das monadologias para a filosofia e a ciência contemporâneas começa por Deleuze, um dos expoentes da filosofia virtual de todos os tempos e um dos maiores herdeiros e recriadores das monadologias. Essa vinculação de Deleuze à monadologia ocorre por diversos caminhos, quase todos elados a tradições da filosofia de língua inglesa, como a filosofia do processo de Alfred North Whitehead e o pragmatismo o William James[18]. A filosofia processual é uma filosofia baseada em virtualidades não-discretas, modelizadas a partir de uma compreensão organicista do universo. Essa modelização organicista encontra diversas convergências com o programa pragmatista de William James, notadamente em seu conceito de experiência. E culmina no empirismo radical e em um de seus conceitos mais luminosos: os pluriversos. Declinado no plural e em termos mais estritos, o termo monadologias se refere a Leibniz, que estabilizou o conceito de mônada, e a Gabriel Tarde, que o desenvolve. Entretanto, paralelamente podemos pensar em autores pertencentes ao âmago da filosofia virtual, mesmo sem serem considerados monadologistas stricto sensu. O pragmaticismo de Charles Sanders Peirce possui diversos pontos de contato com a filosofia processual de Whitehead e com o pragmatismo de James. Assim como por diversos motivos podemos definir como pensadores virtuais Darwin, Louis-Auguste Blanqui e John William Dunne, dentre outros. Estes autores são representantes do que podemos definir como cosmologias virtuais. E, dentre as suas herdeiras atuais, encontram-se a topologia e a mesologia, a teoria dos lugares e a teoria dos meios que tenho desenvolvido. Por que as monadologias são tão importantes para a filosofia virtual? Por um motivo central: a infinitização. Em todos os momentos da filosofia ocidental nos quais o virtual é tematizado, vemos uma neutralização do conceito de infinito e uma assimilação da contingência à necessidade. Como os atomistas da Antiguidade, os monadologistas modernos pela primeira vez procuram pensar o infinito em sua legitimidade e legalidade. E procuram de modo inusitado enfrentar a contingência pura. Por esse motivo, tantos autores contemporâneos têm se dedicado a pensar a partir de Leibniz, do pluralismo corpuscular e da contingência atomista.
O que Leibniz tem de mais essencial a nos oferecer sobre a virtualidade? Em primeiro lugar, uma questão central: a teoria dos universos compossíveis. Para Leibniz, na origem do universo e de tudo o que existe, haveria universos compossíveis. Seriam possibilidades de universos que gozavam de equipolência: tinham uma mesma potência de vir a se tornar este universo que conhecemos. Contudo, essas compossibilidades equipolentes apresentam um problema: por que então o universo veio a ser justamente este universo em que vivemos? Leibniz precisa solucionar isso do ponto de vista racionalista. Deve explicar racionalmente por que o universo existe deste modo singular. E por que apenas existe um universo e não muitos. Para isso, ele se vale do princípio da razão suficiente. Esse princípio designa as condições racionais mínimas exigidas para explicar por que o universo que existe é o universo que deveria ter existido. O princípio de razão suficiente é um operador de necessidade. Um meio de controlar a contingência pura que se encontra na ontogênese e na cosmogênese do universo. Ora, é interessante notar algo aqui. O princípio de razão suficiente é em primeiro lugar um princípio: uma razão axiomatizada sem a qual a natureza não pode ser compreendida. Em segundo lugar, ele é um princípio racionalista: demarca uma necessidade imperativa e uma razão imanente à natureza capazes de justificar a existência de nosso universo exatamente como nosso universo se realizou em sua existência em ato. Contudo, o termo suficiente deve ser analisado com mais vagar. Ele significa que essa efetividade do nosso universo singular exatamente como ele veio a existir é apenas suficiente, não é absoluta. Se essa necessidade é apenas suficiente, em que medida ela pode ter de fato interditado a proliferação das compossibilidades iniciais do universo ao longo de todas as cadeias causais deste universo atualizado em que vivemos? Em outras palavras, uma razão suficiente pode explicar por que o universo é o que é. Mas em que medida essa razão suficiente seria capaz de eliminar a irradiação de n-compossibilidades ao longo de todas as linhas causais, espaciais e temporais do universo? Essa leitura pode parecer heterodoxa para os especialistas e leibnizianos. Mas é uma leitura que se justifica quando a articulamos à teoria das mônadas. Por quê? Por mais que o sistema leibniziano possa parecer uma submissão da contingência à necessidade, ele é permeado do começo ao fim pela noção de multiplicidade de substâncias. A cosmologia de Leibniz é regida por um pluralismo substancial cujas unidades matriciais são as mônadas. Como quartos sem janelas e como unidades celulares de um universo-organismo, as mônadas se irradiam, propagam-se e se multiplicam, umas espelhando as outras. A unidade desse labirinto infinitesimal de espelhos seria Deus, mônada das mônadas. Essas imagens-conceito do espelho, dos organismos, da multiplicidade e da especulação devem ser compreendidas no sentido de uma filosofia especulativa e especular. Uma filosofia fundada a partir de espelhos e de espelhamentos[19]. Essa propagabilidade nos autoriza a imaginar que as compossibilidades das condições iniciais do universos não foram totalmente controladas e muito menos erradicadas. Elas atravessam toda extensão do nosso universo como linhas, pontos e planos virtuais infinitos. Essas emanações virtuais seriam ressonâncias da cosmogênese. E cada agregado das multiplicidades que compõem o universo efetivo em que vivemos traria consigo um emaranhado de n-agregados virtuais que podem ter se atualizado em determinadas condições do universo passado e podem vir a se atualizar em novas condições do universo futuro. Desse ponto de vista, nosso universo seria um emaranhado de multiplicidades infinitas e de composições atuais-virtuais. Assim como na evolução da vida a ontogênese recapitula a filogênese, na evolução do universo tanto a ontogênese quanto a filogênese recapitulariam a cosmogênese: o emaranhado emergente das compossibilidades imanentes às condições iniciais de todos os sistemas do cosmos. Quando analisamos essas perspectivas fornecidas pelas monadologias, e quando as entendemos como sistemas marginalizados dentro das teorias hegemônicas, vemos como o caminho da filosofia poderia ter sido muito diferente do que foi, caso essas linhas não tivessem sido denegadas ou mesmo perseguidas pela filosofia ocidental. E isso se torna bem claro na obra Gabriel Tarde.
Tarde é um monadologista extremamente importante. E um dos fundadores da Sociologia, ao lado de Max Weber, de Marx e de Durkheim. E, no entanto, é gritante o silêncio em torno de sua obra monumental. E o descompasso em relação a tantos outros pensadores sobrevalorizados. Como Tarde incorpora e altera a monadologia de Leibniz?[20] Ele parte do sistema leibniziano para pensar a vida e a biologia. E, por conseguinte, concebe as estruturas dissipativas da vida a partir das associações. Cria o conceito de associações como alternativa ao conceito de sociedade, pois este conceito teria sido marcado desde a origem por um dualismo entre natureza e cultura e entre humano e não-humano. Para compreender essas associações vivas-não-vivas, naturais-artificiais e humanas-não-humanas, concebe o princípio da variação universal. Esse princípio é extremamente instigante para pensar a biologia e inclusive para construir uma cosmologia. Tarde pensa a evolução da vida na Terra a partir de prerrogativas da teoria da evolução de Darwin. Em uma passagem maravilhosa, Tarde nos diz: “Existir é diferir”. Essa frase sintetiza bem o seu sistema e ao mesmo tempo o diferencia de Darwin. Coloca-o na vanguarda das filosofias da existência, da filosofia da desconstrução e da noção de diferença de Derrida. O princípio da variação universal é um princípio de diferenciação infinita depreendido a partir das associações e do estatuto ontogênico da vida. Se existir é diferir, tudo que existe, existe apenas à medida que se diferencia de Outrem e produz diferenciações na cadeia geral dos existentes e das existências. Essa concepção instaura um problema profundo na taxonomia da biologia. Antes de transpormos os seres vivos para as generalização das espécies e para outras generalizações ainda mais abstratas, devemos pensar os seres singulares como singulares, na sua infinita singularidade e em sua singular irredutibilidade. Vale lembrar que essa primeira grande generalização, a passagem dos seres singulares às espécies, sempre foi um dos desafios de Darwin na formulação da teoria da evolução. Justamente devido aos problemas e desafios fundamentais apresentados pela categorização das espécies, Darwin aborda esses problemas e desafios logo no começo de A Origem das Espécies[21]. E não por acaso uma das obras mais importantes da humanidade é sobre a origem das espécies. E não sobre a origem dos reinos, dos filos, do gênero, dos clados, dentre outras zonas abstratas da arquitetura conceitual da vida. A maior dificuldade seria justamente definir as criteriologias capazes de descrever a contento as informações radicalmente singulares de um ser e, ao mesmo tempo, proceder a uma primeira abstratização desse ser que não comprometa aspectos essenciais. Ora, a teoria da evolução é um dos maiores golpes contra o conceito de essência da metafísica substancialista. Se tudo que existe se encontra em devir e em metamorfose, como definir o que é acidental e o que é essencial? Como definir o que seria produto de leis-necessidades e o que seria produto de um puro acaso-contingência? Por esses e outros motivos, Darwin mergulhou a vida, a Terra e o universo no reino da contingência pura. E, por esse e outros motivos, Darwin é um autor matricial para pensar a topologia e a filosofia virtuais. Tarde aprofunda essas camadas de virtualidade e de contingência puras, latentes na teoria da evolução. Aprofunda-se nas zonas diferenciais e infinitas de cada ser singular. Lê todos os seres a partir de suas virtualidades. Para usar uma imagem recorrente em sua obra, quanto mais aproximamos nossa lupa de um ser determinado, mais esse ser se indetermina e se diferencia de si, ao limite de sua pulverização. E cada vez mais emergem outros seres que, à primeira vista, sequer existiam[22]. Essas monadologias sugerem a possibilidade de edificarmos cosmologias virtuais.
Universo Serial e Cosmologia Virtual
Outro caminho virtual se desdobra em bifurcações e emaranhadas infinitos nas cosmologias de dois autores excepcionais: Louis-Auguste Blanqui e John William Dunne. Além de ser um dos maiores expoentes da teoria comunista e um precursor de Marx, e devido a esse atividade ter passado grande parte da vida na prisão, onde escreveu a maioria de suas obra, Blanqui perpetrou uma outra revolução cuja magnitude ainda precisa ser devidamente estudada: criou uma cosmologia virtual. A cosmologia contemporânea trata da teoria das cordas, de multiversos, de universos-holograma, de Teoria M, de hiperespaço, dentre tantas outras linhas. E, no entanto, muitas vezes se esquece de retroagir a esses dois fundadores, quase completamente esquecidos. Não entrarei aqui nos pormenores da obra de Blanqui. Em linhas gerais, a partir da teoria das probabilidades de Laplace e das observações dos meteoros, Blanqui encontra as bases para postular um universo dinâmico e eterno[23]. Se o universo é eterno, significa que ele existe no infinito do tempo. Contudo, os elementos e propriedades químicas e físicas do universo são finitos. A consequência racional que Blanqui extrai dessa condição é algo que nem a ficção seria capaz de entrever. Significa que ao longo da eternidade, todos os seres, agregados, composições e estruturas materiais finitas devem necessariamente se repetir. Como compatibilizar racionalmente esse espaço composto de seres finitos e esse tempo que se desdobra pela eternidade? Concebendo um universo-espelho. Tudo que existe em nosso universo é replicado, copiado e multiplicado em universos paralelos. Todos os seres e todos os eventos do universo possuem seres e eventos sósias, em alguma dimensão coextensa ao nosso universo. Essa propagabilidade é limitada pela circunscrição dos seres finitos e de suas constituições materiais. E, ao mesmo tempo, essa replicabilidade é infinita, pois todo novo ser ou evento que emerge do Oceano da existência deve possuir seu sósia replicado ao longo de um tempo infinito. Como um precursor do eterno retorno de Nietzsche, Blanqui é um autor-cesura na cosmologia virtual. Um nome decisivo para pensar tudo que se refira a virtualidade. O mesmo se pode dizer de John William Dunne. Por mais que os cientistas possam reduzir sua obra a uma mera curiosidade especulativa, Dunne atacou um dos problemas mais graves da história da ciência e da filosofia: a causalidade temporal[24]. E o fez a partir de uma premissa absolutamente racional: a necessidade de se pensar as condições iniciais, a temporalidade e a causalidade de modo disjuntivo. Quando se concebe o infinito do tempo ou o infinito do espaço, em geral se produz problemas, aporias e antinomias relativas a cada um desses infinitos. Quando pensamos em um infinito espacial, geralmente o definimos como uma infinidade de mundos. E surge a necessidade de unificar essa multiplicidade infinita de mundos e de universos. Quando pensamos em um infinito temporal, quase sempre essa infinitização é identificada ao conceito de eternidade. E o infinito temporal seria imediatamente ajustado a uma categoria relativamente homogênea. Ou seja: não se concebe uma multiplicidade de pontos, de linhas e de planos infinitos de tempo. Em certo sentido, essa identificação entre infinito do tempo e eternidade produziu uma homogeneidade e um controle das relações virtuais entre tempo e infinito. Esse controle se apoia na eventual possibilidade de sincronização entre as condições iniciais, a temporalidade e a causalidade a partir da metacategoria da eternidade. Esse controle fornece as bases para outro controle: o controle do infinito espacial. Podem existir mundos e universos atuais e virtuais infinitos. E pode existir um tempo infinito. Se esse tempo for relativamente homogeneizado por meio da eternidade, os mundos e universos infinitos por sua vez também devem adquirir uma relativa unidade. Dunne promove um colapso nessas relações justamente ao propor que as condições iniciais, a temporalidade e a causalidade estabelecem entre si relações disjuntivas. Ou seja: elas não são necessariamente sincronizadas. Diante disso, como não existe uma separabilidade absoluta entre tempo e espaço, a extensão espacial e a extensão temporal do universo também se alteram a partir dessas relações causais, temporais e iniciais disjuntivas. Quais seriam as consequências mais imediatas dessa alteração? Não existiria uma única linha de tempo infinita chamada eternidade. Dependendo das condições iniciais de um dado sistema X do universo, essas condições iniciais podem gerar uma sequência de leis, de propriedades e de eventos distintos daqueles gerados pelas condições iniciais de um dado sistema Y do mesmo universo. Se as condições iniciais determinam consistências distintas de um mesmo universo, significa que no fundo não existe um mesmo universo. Existem n-universos correndo paralelamente e cujas consistências, causalidades, estruturas, geometrias e leis podem ser radicalmente distintas. Georg Cantor descreveu a necessidade de se conceber matematicamente infinitos maiores e menores uns em relação aos outros. Assim definiu os transfinitos: uma estrutura exponencial de n-infinitos e de infinitos-infinitos. Dunne propôs que não existe uma eternidade. Haveria n-eternidades emaranhadas, cada uma emergente de condições iniciais diferentes. Condições iniciais distintas em relação ao espaço gerariam espacialidades globais distintas e, por conseguinte, universos distintos. Condições iniciais distintas em relação ao tempo gerariam temporalidades globais distintas e, por conseguinte, universos distintos. E condições iniciais distintas em relação às causas gerariam causalidades globais distintas e, por conseguinte, universos distintos. A cosmologia de Dunne pode ser definida como uma cosmologia serial. Em outras palavras, uma cosmologia virtual que postula n-universos atuais-virtuais que se desdobram em n-espaços, em n-causas e em n-tempos atuais-virtuais – todos eles infinitos.
Por fim, Whitehead talvez seja um dos maiores pensadores da virtualidade[25]. E, mais do que isso, um dos maiores nomes da ciência e da filosofia de todos os tempos. Whitehead é o Platão do terceiro milênio. Whitehead batiza o que se chama filosofia especulativa. E todos os autores atuais vinculados às premissas especulativas acabam em maior ou menor graus se reportando à sua obra. E por isso tem havido tantas intersecções fecundas entre filosofia virtual e filosofia especulativa, nos mais diversos ramos das ciências e das artes, da literatura e das tecnologias, das teorias dos sistemas e das teorias da complexidade, das teorias de tudo e das teorias emergentistas[26]. Aqui a filosofia especulativa se abisma nos espelhos. E o espelho seria uma imagem-conceito especulativo para a multiplicidade, para o pluralismo, e, por conseguinte, para as virtualidades. Há muitos aspectos da obra de Whitehead a serem destacados nesse sentido. Uma das questões principais se refere ao conceito de matéria, como elaborado pela física. Para Whitehead, toda conceituação moderna de matéria seria uma continuidade do conceito antigo e medieval de substância[27]. As antinomias da ciência moderna não se restringem aos problemas específicos da ciência moderna. Seriam antinomias presentes no pensamento desde as primeiras formulações do conceito de substância. Isso significa que não conseguiremos dirimir essas antinomias e essas contradições apenas potencializando cada vez mais o campo experimental da ciência. Para dirimir essas antinomias e contradições devemos reorganizar todo quadro conceitual dentro do qual a ciência se move. Em outras palavras, não basta nos tornarmos os enxadristas geniais no âmbito do movimento das peças. Devemos reorganizar o tabuleiro, a estrutura e o estatuto mesmo do jogo dentro do qual compreendemos as leis da natureza. Para tanto, Whitehead propõe uma metafísica celular não-substancialista. Para substituir o conceito de matéria, vale-se de alguns outros conceitos, como os conceitos de evento e de entidades. A natureza seria um conjunto de eventos. E as entidades não unidades processuais, mais performativas e transitivas do que substanciais. E há as entidades atuais. Essas entidades atuais seriam formas preendidas pela percepção. O conceito de preensão se distingue de apreensão, pois a filosofia especulativa e processual pretende se distanciar das filosofias da consciência. Haveria preensões subjetivas e preensões conceituais de sujeitos e agências da natureza. E, para que essas preensões existam, não necessitam de consciência. A preensão subjetiva e a preensão conceitual se vinculariam às estruturas da preensibilidade. Assim como um chimpanzé preende um galho com a cauda ou um inseto preende um determinado cheiro na floresta, as agências subjetivas preênseis não dependeriam de uma consciência, de um eu ou de outros atributos antropocêntricos para performarem suas ações. A esfera da preensibilidade seria uma rede de afetos, de percepções e de sentires distribuídos pelo universo. E estes não seriam exatamente abstrações cognitivas, na acepção de Descartes e de outras vertentes dualistas. Whitehead produz uma desconstrução das ontologias que se baseiam nas entidades atualizadas para compor seus sistemas. E acima de tudo enfatiza que não se pode inferir uma cosmologia a partir de entidades atuais. Essa inacessibilidade ao cosmos a partir das entidades atuais é assegurada por uma categoria importante da filosofia processual: os objetos eternos. Os objetos eternos não seriam ideias arquetipais, como em Platão. Os objetos eternos seriam as formas de unificação desses fluxos de virtualidades infinitas. E por que o sistema precisa desses objetos eternos? Porque os objetos eternos atravessam épocas cósmicas diferentes. E isso significa que Whitehead propõe um universo eterno e, ao mesmo tempo, um emaranhado de unidades celulares e de universos-bolhas coimplicados uns nos outros. Esses universos possui épocas distintas, como as durações distintas de regiões distintas de nosso universo, com defasagens de bilhões de anos de umas em relação às outras. Haveria contudo zonas intersticiais entre esses pluriversos e entre essas épocas distintas do cosmos que flutua na eternidade. Diante desse modelos, apoiado no infinito temporal e no infinito espacial, o plano das virtualidades permanece infinito. A cosmologia de Whitehead descreve assim um horizonte infinitamente virtual. Um horizonte que excede as determinações geradas a partir das entidades atuais. Tudo se passa como se tivéssemos aberto um abismo de virtualidades. E por isso Whitehead é o grande divisor de águas e o grande autor para a formulação da contingência pura, da topologia e da filosofia virtual que proponho neste livro[28].
Retomemos o axioma: precisamos ver a ilha a partir do oceano e não o oceano a partir da ilha. Devemos criar uma filosofia que não reconstrua as virtualidades do oceano a partir dos meios de acesso fornecidos pelas entidades atuais que são o conjunto de atualizações que constituem a ilha. Devemos reverter essa ordem de anterioridade e posterioridade. Devemos posicionar a ilha no oceano da contingência. Se devemos sobretudo identificar ilha e universo, por mais complexas que as condições do pensamento se apresentem mediante essa identificação. Devemos tem em mente que as condições iniciais para a constituição desse universo-ilha não podem ser mais explicadas a partir do princípio da razão suficiente de Leibniz. Devemos imaginar que as compossibilidades virtuais e infinitas permanecem infinitas e virtuais em cada ponto e em todos os pontos atuais do universo. E, por isso, como Blanqui e Dunne, não podemos deixar de conceber a necessidade racional da existência de n-universos virtuais correndo paralelamente ao universo paraconsistente em que nos encontramos. Esse Oceano emaranhado de universos atuais-virtuais e esse emaranhado de oceanos-ilhas virtuais-atuais não teria sequer uma distante sombra de misticismo. Razão, virtualidade e realidade. Real, virtual e racional. Esses três termos não podem ser separados. A separabilidade desses termos é que sempre produziu e deve continuar a produzir proposições irracionais, por mais que à primeira vista possam parecer racionais.
Diferenciação, Simulacro e Agenciamentos
Para concluir esse conjunto de janelas-mônadas sobre a filosofia virtual, pensemos em três conceitos nucleares da filosofia de Deleuze. E, ao abordar Deleuze e a filosofia virtual, um dos nomes centrais na recepção e Deleuze e na construção desse novo campo da filosofia virtual é Manuel De Landa[29]. Deleuze dizia que a sua obra era uma tentativa de fornecer uma metafísica à ciência moderna e contemporânea[30]. De Landa lê Deleuze justamente nessa articulação entre filosofia virtual, ciência e metafísica. E propõe o conceito de ciência intensiva como cerne gerador dos planos, pontos e linhas de uma virtualização integral do pensamento. A partir dessa virtualização integral, três conceitos que nos ajudam a construir e a compreender essas máquinas virtuais e organismos gerativos de sua obra. O primeiro é o conceito de diferença pura. A diferença pura é uma acepção de diferença que não se subordina a uma identidade ou uma substância previamente determinadas. E essa é uma das grandes contribuições de Deleuze e Guattari: ter criado meios para se pensar a diferenciação infinita[31]. A diferenciação infinita nos conduz ao segundo conceito e a outra dimensão matricial dos virtuais: a teoria do simulacro[32]. Nesse sentido, a filosofia virtual seria uma filosofia da simulação e do simulacro: uma filosofia cujas fronteiras entre o original e a reprodução estariam borradas desde sempre e para sempre. O potência singular deflagrada simulacro é que ele não consiste em uma imitação. Ele seria uma imitação da imitação. Quanto mais adentramos o universo da diferença da diferença, da imitação da imitação, dos espelhos dos espelhos, mais os lugares se proliferam, multiplicam-se e se irradiam em suas qualidades infinitesimais. Essa replicabilidade de informações não é vista como uma defasagem em relação a um ser eventualmente original. Ela é vista como uma potência de multiplicidades-afetos e de imagens-realidades virtuais e esquizos geradas pelo desejo. Quanto mais abandonamos o reino das essências eternas, autossuficientes e substanciais, mais o desejo libera sua potência replicante e geratriz. Em outras palavras: mais o desejo e o universo se aproximam de sua metamatriz gerativa. Quanto maior a inoriginalidade, maior a capacidade do desejo acessar as zonas virtuais. Quanto mais o desejo acessa as zonas virtuais, mais se distancia das miragens de um original e mais imerge nos processos subjetivos da autoria. Um autor deve se tornar cada vez mais autoral e cada vez mais potente na medida mesma em que consegue transpor os limites da originalidade e se conectar aos vasos comunicantes, infinitos e gerativos do ser, universal e anônimo. Por isso o desejo não representa realidades. O desejo produz realidades. Devemos abandonar os modelos teatrais, baseados na mimesis. E devemos incorporar os modelos gerativos, baseados nas usinas. A realidade não é um outro do desejo. Não se encontra em algum lugar fora do desejo. A realidade é a cartografia infinita e infinitesimal de lugares produzidos pelos processos de subjetivação desejante. E por isso aqui entra em cena o terceiro conceito. Um operador essencial dos virtuais: o agenciamento.
O que significa um agenciamento? Significa que nunca acessamos objetos. Acessamos sempre as virtualidades dos objetos por meio dos objetos. Os agenciamentos coletivos e maquínicos, os agenciamentos de sentido e toda selva de agenciamentos humanos e transumanos seriam os meios pelos quais todos os seres da Terra tenderiam ao vortex de suas respectivas virtualidades e das virtualidades alheias. A teoria dos agenciamentos teria duas inscrições, uma mais localizada e outra mais universal. A inscrição mais localizada se refere ao combate à psicanálise e ao conceito psicanalítico de objeto. Os objetos fálicos, os objetos parciais, os objetos erógenos, os objetos do desejo: todos esses objetos criados pela psicanálise seriam maneiras de restringir as linhas virtuais do desejo às atualidades de um mundo determinado, confiscando a potência desconstrutora e subversiva dos agenciamentos. O ritornelo é um tema musical baseado na repetição de um determinado sequência harmônica, espelhada em outra ordem. Deleuze associa a madeleine de Proust ao ritornelo[33]. A madeleine seria a imagem mais clara de um agenciamento. Torna-se aqui uma madeleine-agenciamento. Marcel embebe a madeleine no chá e a leva à boca. E, a partir da malha de percepções, afetos e conceitos que emergem dessa experiência, o autor-narrador Marcel agencia os sete volumes e as mais de três mil páginas de sua obra. A busca do tempo perdido não seria uma busca: seria um evento. Uma relação imersiva-emersiva em mundos atuais-virtuais. E tempo algum se perdeu. As milhares de páginas dessa busca seriam apenas a materialização das infinitas camadas virtuais do ser, da mente, da memória, da subjetividade e da Terra. A madeleine seria uma pequena ilha e a obra proustiana seria um imenso portal de acesso às regiões abissais desse oceano de virtualidades. Nada mais importante do que esse oceano de virtualidades nos dias de hoje, nos quais temos nos tornado amebas de carbono nas gaiolas de vidro dos algoritmos. Os algoritmos computacionais e o sistema operacional da tecnocracia do planeta hoje em dia estão reduzindo infinitamente as virtualidades. Têm-nos confinado a ilhas de experiência cada vez mais restritas. Têm empobrecido cada vez mais as zonas de atualização. Proust não conseguiria escrever sua obra hoje. E, ainda que a escrevesse, talvez não tivesse leitores. Porque não apenas a leitura, mas a cognição, a mente e toda noosfera da Terra têm se estriado cada vez mais, estrangulando a subjetividade em processos cada vez mais hiperdeterminados e cada vez mais hiperidentificados[34]. Tudo isso pode ser entendido como produto da aliança entre a tecnocracia e o Capital. Ambos se universalizam cada vez mais, potencializando-se um ao outro à medida mesma que fagocitam e erradicam todas as esferas virtuais da Terra. A chave para uma revolução efetivamente universal necessariamente deve passar pela criação de uma nova ecologia. Essa nova ecologia necessariamente deve pensar todo sistema Terra, incluindo os humanos e não-humanos que a constituem, a partir de uma topologia virtual: um mapeamento das zonas virtuais inscritas em cada ser que habita a Terra. Apenas mediante essa ecologia virtual podemos reverter o colapso iminente e a extinção que nos espera. Para consumar uma filosofia uma filosofia e uma topologia virtuais, precisamos pensar algumas relações entre topologia e geometria.
Topologia e Geometria
A topologia é uma área da matemática e da física que estuda o espaço e suas transformações. E, mais especificamente, as morfologias espaciais concebidas e geradas a partir da geometria. Desde Euclides e da chamada geometria euclidiana a Descartes e Pierre de Fermat, de Carl Gauss, Nikolai Lobachevsky, János Bolyai, Eugenio Beltrami e Willem de Sitter a Bernhard Riemann e Felix Klein, de Hermann Weyl e Hermann Minkowski a Benoît Mandelbrot, Henri Poincaré, Kurt Gödel e Alexander Grothendieck, diversos pensadores conceberam e desenvolveram diversas geometrias. E as articulações e dissociações, complementaridades e contradições entre elas engendraram diferentes campos de estudo: as geometrias algébrica, diferencial, analítica, descritiva, fractal, projetiva, dentre outras. Devido à importância da geometria de Euclides e de geometrias modernas que se ofereceram como alternativas, as geometrias passaram a ser distinguir entre euclidianas e não-euclidianas. Há um emprego extensivo da topologia na teoria de Lacan e nas áreas psi influenciadas pela teoria lacaniana[35]. A topografia por sua vez é uma ciência descritiva de espaços na fronteira entre a geologia, a geografia, a geomorfologia e a astronomia. O objetivo da topografia é quantificar espaços geralmente físicos e tridimensionais em suas mais variadas propriedades e, a partir dessas quantificações, produzir cartografias desses espaços[36]. A topografia e a cartografia têm uma importância seminal para a topologia virtual. Entretanto, as relações que a topologia virtual estabelece tanto com as topologias da matemática, da física e das áreas psi quanto com as topografias e cartografias é uma relação muito singular. E essa singularidade da topologia virtual vai se esclarecer aos poucos ao longo deste livro. O termo topologia virtual por sua vez é empregado mundialmente apenas para definir uma topologia cujo objetivo é distinguir as topologias físicas e as topologias das redes da internet[37]. Ou seja: uma abordagem radicalmente distinta da topologia virtual que desenvolvo aqui.
Em um primeiro momento, as transformações do espaço que interessam à topologia virtual dizem respeito a aparentes anomalias das leis que sustentam as três dimensões espaciais que nos cercam e que oferecem experiências contraintuitivas. Algumas dessas topologias anômalas nos ajudam a compreender alguns fundamentos da topologia virtual. Justamente por causa das relações de transvocidade que estruturam o transverso da topologia virtual, uma das primeiras topologias que podem ser pensadas em suas virtualidades é a topologia do tesserato. Conhecido também como hipercubo de quatro dimensões, o tesserato é uma figura quadridimensional semelhante a um cubo no espaço tridimensional. Como se sabe, o ponto é uma representação de uma posição no espaço. Não possui dimensões e nem pode ser medido. Um ponto que se move em uma direção gera uma linha reta. Uma linha que se move na perpendicular de sua direção anterior forma uma retângulo e, caso as distâncias percorridas sejam as mesmas, um quadrado. Quando um quadrado se move na mesma distância em sentido perpendicular, gera um cubo. Entretanto, do ponto de um vista de um habitante de uma superfície bidimensional, não conseguimos mover o cubo utilizando apenas as três dimensões. As três dimensões não seriam acessadas por esse habitante. Por isso, devemos deslocar o cubo se deslocar pela mesma distância-padrão em uma direção perpendicular às três dimensões. Esse movimento transforma o cubo em um tesserato. Esse experimento nos revela que um quadrado comum é formado de linhas perpendiculares. Um cubo é formado de quadrados perpendiculares. E, para inserirmos o cubo em uma quarta dimensão, devemos recorrer ao tesserato: uma figura feita de cubos perpendiculares. Seguindo o tesserato, há três topologias fundamentais para a topologia virtual: a Fita de Möbius, a Garrafa de Klein e a Fibração de Hopf, concebidas respectivamente pelos matemáticos August Ferdinand Möbius, Felix Klein e Heinz Hopf.
A Fita de Möbius é uma topologia muito conhecida e que nos auxilia a pensar a topologia virtual. Essa fita é um objeto obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita depois de se dar meia volta em uma delas. Trata-se nesse sentido de um objeto autointerseccional: produzido por meio de uma intersecção consigo mesmo. Ela seria uma fita infinita bidimensional cuja distinção dos dois lados desapareceria mediante essa natureza autointerseccional. A Garrafa de Klein é uma superfície bidimensional na qual as noções como direita-esquerda, cima-baixo e dentro-fora não podem ser definidas de modo consistente. A visualização da garrafa é sempre parcial e demanda o movimento de um corpo em sua superfície para compreendermos suas propriedades. Uma formiga caminhando por sua superfície adentra o seu interior. Circula por seu interior e, em seguida, passa à superfície exterior. O mesmo movimento sem interrupção a conduz a uma passagem do exterior ao interior sem que haja a possibilidade de demarcar uma distinção entre interior e exterior, entre dentro e fora, entre direita e esquerda, entre cima e baixo. A Garrafa de Klein não se autointersecciona. E por isso para conseguirmos visualizar essa autointersecção devemos necessariamente vê-la em quatro dimensões. Entretanto, quando introduzida a quarta dimensão, a necessidade de auto-interseção pode ser eliminada. Tanto a garrafa quanto a fita são superfícies não-orientáveis. A fita possui bordas ao passo que a garrafa não as possui. Por essa ausência de bordas, a garrafa poderia ser associada à topologia de uma esfera. Entretanto, ela é diferente inclusive da esfera de que Einstein se vale para demonstrar que o universo seria ilimitado porém finito. Diferentemente, a Garrafa de Klein é infinita e ilimitada, como veremos em detalhe adiante ao demonstrar as limitações e problemas dessa definição do universo como unidade ilimitada e finita, proposta por Einstein. A Garrafa de Klein representa nesses termos uma estrutura infinita e ilimitada. Essas propriedades emergem de uma distinção essencial que a topologia virtual lhe fornece: a possibilidade de ser um objeto atual e virtual, simultaneamente. A inserção de n-dimensões virtuais na esfera de Einstein ocorre quando aliamos a Garrafa de Klein à topologia da fibração. A Fibração de Hopf descreve uma esfera tridimensional em um espaço quadridimensional. Essa sobreposição gera uma hiperesfera. A hiperesfera possui um conjunto infinito de círculos que interseccionam cada ponto da esfera comum. Por meio dessa topologia, Hopf conseguiu gerar uma função contínua. À primeira vista, poderíamos supor que essa função contínua e essa estrutura relacional seriam baseadas na univocidade (um para todos) ou de biunivocidade (um para um). Entretanto, emerge aqui algo diferente: uma relação de plurivocidade. A plurivocidade seria uma relação idêntica de todos para todos e de um para um. Como ocorre essa relação? A relação de plurivocidade entre a hiperesfera e a esfera emerge à medida que cada ponto da esfera gera um círculo na hiperesfera. A hiperesfera seria composta de fibras. E cada fibra seria um círculo que cruza um ponto da esfera. Como os pontos da esfera são infinitos, e tanto a esfera quanto a hiperesfera são infinitas, temos uma intersecção de infinitos. Em outras palavras: uma imagem para relações transfinitas de Cantor. A Fita de Möbius representa a univocidade: um plano bidimensional infinito que apaga a distinção entre seus lados. A Garrafa de Klein representa a biunivocidade: a identidade entre todas as informações de cada um dos dois conjuntos que o constituem, interior e exterior, dentro e fora, cima e baixo, esquerda e direita. A Fibração de Hopf representa a plurivocidade: a relação de todos para um e de um para todos.
Essas três estruturas integram o coração da topologia virtual. Nessa sequência, a topologia virtual propõe um quarto grau ainda mais profundo de relações atuais-virtuais: a transvocidade. Entretanto, diferente da Fibração de Hopf, haveria ainda dois vetores adicionais: as relações de todos para um e as relações de um para todos. A transvocidade pode ser definida como o conjunto infinito de relações emergentes de todos para todos, de todos para um, de um para um e de um para todos, preservando-se sempre as mesmas valências em todos os sentidos, vetores, modulações e variações. Essa preservação consiste diz respeito ao que a topologia define como axioma da simetria. Nesse sentido, a partir da Fibração de Hopf a transvocidade integraria em si a univocidade, a biunivocidade e a plurivocidade, expandindo-as para uma quarta geometria-topologia. A fibração nos leva a conceber que todos os pontos de cada círculo da esfera é interseccionado por todos os círculos da hiperesfera. E que todos os pontos da hiperesfera são interseccionados por todos os círculos da esfera. Contudo, deve-se estabelecer aqui duas relações transversais adicionais. Todos os pontos da hiperesfera devem interseccionar todos os pontos da hiperesfera. E todos os pontos da esfera devem interseccional todos os pontos da esfera. Essas interseções horizontais dentro de cada esfera transversalizam todas as relações concebidas pela fibração. E, nesses termos, instauram uma nova geometria-topologia: a geometria-topologia transversal. A transvocidade e a teoria da transversalidade são o cerne da topologia virtual. E, como veremos, essa nova geometria-topologia transversal é o fundamento ôntico e epistêmico da topologia virtuais. A partir dessa concepção da topologia virtual, a Fita de Möbius, a Garrafa de Klein e a Fibração de Hopf não seriam apenas anomalias do espaço tridimensional. Seriam as chaves de acesso às virtualidades de todas as geometrias e de todas as topologias. Seguindo essa premissa, à medida que atravessa de modo transversal todos os planos de existências e de existentes, a transvocidade seria o grande operador metacategorial de todas as geometrias e de todas as topologias, de todos os espaços e de todas as dimensões, incluindo as n-temporalidades e as n-dimensões finitas e infinitas do tempo. Quais seriam as principais alterações que a transvocidade pode produzir nas topologias e nas geometrias em geral? Uma primeira consequência da transvocidade seria a necessidade de pensarmos que cada geometria, em sua consistência matematicamente determinada, nunca é una. Todas as variações finitas de suas propriedades imanentes são apenas atualizações das virtualidades que as constituem. Cada conjunto de informações emergentes da singularidade de uma geometria deve ser replicado em n-conjuntos de variações virtuais dessas mesmas informações. Essa natureza alteraria substancialmente o espectro de formas, o horizonte de morfologias e a abrangência espacial de cada geometria. Uma segunda consequência da transvocidade seria uma alteração das relações de anterioridade e posterioridade entre geometria e topologia. À medida que analisamos qualquer geometria a partir de suas virtualidades, a constituição virtual que subjaz a suas informações iniciais passa por conseguinte a defini-la geometricamente. O mesmo ocorre com as topologias emergentes de cada geometria singular. Isso produz uma recursividade e uma reversibilidade entre geometrias e topologias e entre topologias e geometrias. As geometrias deixam de ser apenas a matriz informacional cujas variações produzem as alterações do espaço. As geometrias passam a ser vistas também como produtos das propriedades emergentes das topologias que elas mesmas geram. A terceira consequência da transvocidade é a mais extrema e contraintuitiva. Se todas as topologias e geometrias existentes devem ser sempre virtualizadas para não as reduzirmos a suas atualizações e para que acessemos os seus horizontes virtuais, tanto as geometrias quanto as topologias devem ser pensadas como estruturas, matrizes e modelos emergentes de lugares singulares. Como os lugares não unidades puramente qualitativas e, ao mesmo tempo, heterogêneos em relação a todos os seres, eventos e existências que os constituem, pensar as topologias e as geometrias como propriedades emergentes dos lugares seria infinitizar as suas constituições atuais. Em outras palavras: virtualizar todas as propriedades das topologias e das geometrias em uma região infinita de possibilidades e potencialidades formais e espaciais. Nesses termos, os lugares deixam de ser elementos residuais de um processo de depuração, de abstração e de matematização operado pelas geometrias e pelas topologias. Eles passam a ser o fundo sem fundo emergente de todas as n-geometrias e de todas as n-topologias passadas, presentes e futuras. Para pensar a partir da Fibração de Hopf, se as geometrias são hiperesferas e as topologias são esferas, as geometrias seriam os círculos da hiperesfera que passam pelos pontos da esfera e vice-versa, em relações de plurivocidade. Essa estrutura transfinita de Hopf se encontra entretanto incompleta. Para que ela se realize em todos os seus horizontes virtuais, devemos expandi-la nas quatro matrizes relacionais mencionadas acima: relações um para todos, todos para um, um para um e todos para todos. Para que ela se realize em todos seus horizontes virtuais, devemos supor um ponto-cego dessa estrutura transfinita. O ponto-cego dessa estrutura transfinita são os lugares e as suas composições qualitativas infinitesimais. Cada ponto de intersecção entre a hiperesfera e a esfera adquire assim uma infinita opacidade. Deixa de ser um mero ponto abstrato de recursividade entre círculos e pontos, entre esferas e hiperesferas. Passa a ser o ponto de conversão das quantidades em qualidades. E o ponto de emergência de novas quantidades, em suas novas modelizações abstratas. E o ponto de emergência de novas qualidades, em suas diferenciações infinitesimais, singulares e existenciais. Em outras palavras: esse ponto-cego seria o ponto de reversibilidade dos espaços em lugares e dos lugares em espaços. Chamo esse ponto-cego de vortex.
Um aspecto importante dessa nova topologia virtual, em sua transvocidade e em sua transversalidade, diz respeito à informação. E uma mais específico de compreendermos a informação: a holografia. A holografia é o conjunto de unidades informacionais atuais-virtuais que, quando replicadas, não perdem as propriedades fundamentais de suas informações iniciais. Essas unidades informacionais são os hologramas. Essa natureza da holografia e dos hologramas abre um caminho nuclear para uma linha de estudo da topologia virtual: a holologia. A holologia se ocupa do estudo e das inscrições das chamadas esferas imaginais. Estas esferas imaginais seriam oriundas das informações projetivas atuais-virtuais presentes em todas as geometrias e topologias. Por meio desse recurso aos horizontes virtuais, a topologia virtual nos revela então que toda geometria e toda topologia possuiriam propriedades projetivas. E, por conseguinte, a topologia virtual origina uma geometria singular: a geometria hologrâmica. medida que todas as geometrias e topologias são manifestações atuais de suas informações virtuais, todas as geometrias e topologias são instâncias emergentes da transvocidade que funda a topologia virtual. A topologia virtual seria por conseguinte uma metatopologia. E a geometria hologrâmica seria uma metageometria. A holologia por sua vez seria a matriz irradiadora dessa metageometria e dessa metatopologia do ponto de vista informacional. A variação de geometria produz topologias diferentes. E a variação de geometrias e de topologias produz cosmologias diferentes. E tudo isso ocorre em um plano matematicamente homogêneo. Para seguir a racionalidade dessa mesma matematização e dessa premissa hologrâmica, devemos necessariamente conceber uma recursividade de todas as estruturas abstratas das geometrias e das topologias em relação aos lugares qualitativa e existencialmente situados. Essas relações recursivas entre geometrias e topologias, entre espaços e lugares demandam uma teoria geral da recursividade entre finito e infinito e entre infinito e finito, como veremos adiante. Explorarei ao longo deste livro algumas consequências desse cosmos-holograma subjacente a essa metatopologia e a essa metageometria, virtuais e hologrâmicas. Por ora, vale apenas pontuar alguns paralelos entre a topologia virtual e as teorias do multiverso, as teorias das cordas e a teoria M.
Multiversos, Cordas e Teoria M
Tendo em vista essas relações de transvocidade entre geometrias e topologias, entre espaços e lugares, a topologia virtual nos conduz necessariamente à formulação de uma cosmologia virtual. Como se sabe, a cosmologia de Einstein é estruturada a partir da geometria de Minkowski. A geometria de De Sitter é semelhante à topologia gerada por Einstein a partir de Minkowski, mas o espaço de De Sitter poder se construído independentemente da gravitação, o que o conduz a uma concepção mais fundamental do que os espaços einsteiniano e minkowskiano. Se Einstein se valesse de uma geometria alternativa à geometria de Minkowski, as soluções e os modelos de universo da Teoria da Relatividade Geral seriam diferentes. O cosmologista Georges Lemaître é um dos precursores do emprego da teoria da relatividade. Associou entretanto o espaço-tempo a uma geometria hiperbólica e às equações de campo de Alexander Friedmann. Gerou assim uma nova métrica, e, por conseguinte, uma nova estrutura espacial e uma nova topologia[38]. A mesma variação global do espaço e da estrutura do universo ocorre se adotarmos a geometria de Hermann Weyl, baseada em uma métrica de autocorreções: uma metamétrica[39]. E as variações continuariam se adotássemos a geometria de Gödel, que pressupõe curvas de tipo-tempo fechadas. Ou seja: a recursividade e a reversibilidade temporais sob certas condições e em algumas dimensões do universo[40]. E assim por diante. Há uma linha da teoria dos multiversos que emerge da teoria quântica, especialmente a partir das abordagens de Hugh Everett e dos desdobramentos ulteriores protagonizados por David Deutsch, no âmbito da computação quântica, da cosmologia e das teorias emergentistas[41]. A teoria das cordas e a teoria M são um campo fascinante para explorar essas variações de topologia, geometria e cosmologia. A teoria das cordas foi proposta por Edward Witten e desenvolvida por Brian Greene e Michio Kaku, dentre outros cientistas[42]. Como sabemos, uma das maiores buscas da cosmologia contemporânea é a teoria do campo unificado ou a teoria de tudo, segundo algumas nomenclaturas[43]. Essa teoria conseguiria unificar o micro e o macro, a teoria da relatividade geral e a teoria quântica. A chave para essa unificação seria a descrição e a estabilização conceitual e experimental da chamada gravidade quântica[44].
Uma das maiores dificuldades para se consumar essa unificação é compreender o comportamento dos grávitons, partículas subatômicas que seriam o elo com a gravidade universal. A gravidade se distribui de modo homogêneo por todo universo e produz as alterações de morfologia de cada uma de suas regiões, conforme as relações que estabelece com a massa e com a energia. O problema apresentado pelos grávitons se assemelha aos problemas apresentados por outras dinâmicas quânticas. Eles oferecem infinitos resultados, uma baixa previsibilidade de trajetos e de propriedades e não conseguem ser medidos a partir dos modelos padrão, seja da relatividade geral seja da teoria subatômica[45]. Assim como os fótons, a reconstrução das trajetórias para gerar previsibilidade de um gráviton pode ser infinita. E podemos nunca chegar a um número que não seja meramente aproximativo, mesmo dilema enfrentado pela incerteza, a indeterminação e os mecanismos probabilísticos da teoria quântica[46]. Um dos meios racionais de solucionar esse problema é conceber que os grávitons seriam uma corda. As cordas são unidades cujas escalas são menores do que as partículas subatômicas. E chegam mesmo a pressupor diversos tipos de partículas que não existem e que ainda não foram identificadas. Tanto a teoria da relatividade quanto a teoria quântica levaram muito tempo para chegar a soluções entre os modelos corpuscular e ondulatório. Como se sabe, desde de os primeiros experimentos matriciais de Heisenberg, da complementaridade de Bohr, da solução parcial das onda psi de Schrödinger, do continuum de Bohm ao acabamento parcial do modelo proposto por De Broglie, essa alternância onda-partícula sempre foi um obstáculo para a modelização micro e macro da natureza. As cordas nesse sentido também não apresentaria essa alternância dual. A forma das cordas seria uma linha vibracional. Uma linha que pode assumir diversas morfologias. As composições diferentes de cordas gerariam dimensões e propriedades diferentes da matéria e do universo, o que ajudaria inclusive a explicar a composição dos elementos fundamentais que constituem o universo. Há dois pares complementares importantes na física de partículas: os férmions e os bósons. Os férmions são as partículas de matéria: elétrons, múons, taus, três tipos de neutrinos e seis tipos de quarks. Os bósons são as partículas transmissoras do eletromagnetismo, das forças nucleares forte e fraca, absorvidas ou emitidas pelos férmions. Os bósons são o fóton, o glúon, o bóson Z e o bóson W. Uma das grandes forças do universo, ao lado do eletromagnetismo e das forças nucleares fortes e fracas, a gravitação se encontra desencaixada dessa grade fundamental. Isso se deve a diversos motivos. Como se sabe, na teoria da relatividade, a gravitação não seria tecnicamente uma força. Seria sim uma curvatura do espaço-tempo que varia em conformidade com a energia e a massa, dispostas heterogeneamente ao longo do universo. Nesse sentido, a compreensão dos grávitons, elos de conexão entre a flutuação quântica e o campo gravitacional, deveria ser investigada nos bósons, não nos férmions. E por isso a teoria das cordas enfatiza aqueles em detrimento destes, pois os bósons fornecem massa aos elementos e possuem propriedades relacionais. Diante disso tudo, em termos experimentais, quando o modelo das cordas é inserido em um sistema observacional, ocorre uma minimização do comportamento indeterminado e probabilístico das partículas em termos quânticos. As cordas conseguem unificar parcialmente as trajetórias das partículas em termos contínuos à medida mesma que evitam tratar essas trajetórias apenas em termos locais. As cordas ajudariam assim a compreender um dos maiores problemas da física: a descrição da gravitação em sua escala quântica. E nesse modelo fornecido pelas cordas, a gravidade quântica poderia ser mensurada. Isso ocorre porque a gravidade quântica permaneceria restrita às funções da corda específica dos grávitons que, por sua vez, passam a ser entendidos como cordas e não como partículas. Essas relações diferentes estabelecidas pelas cordas alteram profundamente a estrutura do espaço e a topologia. E, por isso, diferente das quatro dimensões da teoria da relatividade, a teoria das cordas lida com a possibilidade de 26 dimensões. E esse é um dos primeiros e principais problemas dessa teoria. A multiplicação de dimensões gera efeitos colaterais e onde antes parecia haver soluções. Um segundo problema diz respeito à relativa incapacidade da teoria das cordas estipular um valor e um lugar singular para os férmions dentro dessas dinâmicas interacionais. E terceiro problema, decorrente da multiplicação de dimensões, é a incompatibilidade que essa multiplicação produz em nossa experiência quadridimensional do mundo empírico. Para solucionar esses problemas, criou-se o conceito de supercordas ou de superssimetria. As supercordas ou a premissa da superssimetria surge de uma percepção de que essas grandes diversidades de cordas poderiam ser sobrepostas umas sobre as outras. Essa sobreposição produz uma redução das 26 dimensões para nove dimensões espaciais e uma temporal. Contudo, os desafios não param por aqui. Como todas as teorias, não existe uma teoria das cordas, universal e unânime. Haveria pelo menos cinco teorias rivais que se baseiam no modelo das cordas. A partir do conceito de superssimetria, Witten propõe uma teoria capaz de unificar essas cinco teorias rivais: a teoria M. Para essa unificação, a teoria M se baseia na superssimetria e nas dez dimensões propostas pelas cinco teorias rivais. Contudo, para se concluir como modelo efetivo, demanda ainda uma décima primeira dimensão suplementar, ainda desconhecida. As conexões entre a teoria dos multiversos, a teoria das cordas e a teoria M e a topologia virtual são muito complexas e cheias de nuances e serão analisadas em um momento oportuno. O mais importante por enquanto é demarcar um paralelismo. Assim como há uma gradação entre as topologias de Möbius, de Klein e de Hopf, há uma gradação entre a teoria dos multiversos, a teoria das cordas e a teoria M. A despeito das especificidades e das convergências entre elas, podemos identificar uma mudança significativa em termos de consistência do universo. A cosmologia dos multiversos abre a possibilidade de universos virtuais, alternativos ao nosso universo atual. Mas não expande tanto a natureza das dimensões. A teoria das cordas pluraliza as virtualidades, associando-as a diversas dimensões. A teoria M preserva essa expansão dos horizontes dimensionais e ainda propõe uma dimensão adicional ainda não identificada. Seguindo essa gradação, a topologia virtual pretende dar um passo adiante em relação à teoria M. Esse passo adiante consiste justamente na abertura de horizontes virtuais imanentes à topologia e à geometria das cordas. Desenvolver alternativas a essas três teorias é um dos objetivos da cosmologia virtual que este livro explora de modo tangencial. A porta de entrada para essa cosmologia é um operador: o Vazio.
[1] Nesse ponto e em tantos outros, a metacosmologia do cosmologista brasileiro Mario Novello é decisiva para pensar a filosofia e a cosmologia virtuais. Conferir sobretudo: NOVELLO, Mário. Quantum e Cosmos: Introdução à Metacosmologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021. NOVELLO, Mario. Manifesto Cósmico I e II. São Paulo: n-1, 2022. NOVELLO, Mário. Os construtores do cosmos. Coordenação da Série Mario Novello: Rodrigo Petronio. Posfácio: Rodrigo Petronio. São Paulo: Global, 2023.
[2] NOVELLO, Mário. O que é cosmologia? A revolução do pensamento cosmológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[3] NOVELLO, Mário. Quantum e Cosmos: Introdução à Metacosmologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.
[4] Jean Baudrillard define a virtualização do mundo pelas novas tecnologias como a “transparência do mal”. E acredita que esse processo seja o colapso e a destruição do planeta pelo capitalismo: BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Ensaios sobre os fenômenos extremos. Papirus Editora, Campinas, 2004.
[5] David Chalmers, um dos principais defensores do pampsiquismo e de uma indiscernibilidade entre real e virtual: CHALMERS, David. Reality+: Virtual Worlds and the Problems of Philosophy. New York: Penguin Books, 2022.
[6] Pierre Lévy é um pioneiro da área de tecnologias da inteligência. E aborda o conceito de virtual não apenas no escopo tecnológico. A sua obra pode ser entendida como uma filosofia do virtual ou ciberfilosofia, como ele mesmo a define, mas fornece muitos elementos para uma filosofia virtual: LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução, Paulo Neves. São Paulo: 34 Letras, 2011.
[7] Essa contingência pura dialoga com o conceito de diferença pura de Deleuze. Conferir: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
[8] Conferir sobretudo: SHAVIRO, Steven. The universe off things: on speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off Minnesota Press, 2014. GRATTON, Peter. Speculative realism: problems and prospects. London & New York: Continuum, 2013.
[9] Harman, Graham. Object Oriented Ontology: A New Theory of Everything. London: Pelican Books, 2017.
[10] MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence, Paris, Seuil, coll. L’ordre philosophique, 2006
[11] A concepção de tempo se encontra em diversos momentos da obra de Bergson. Conferir: BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. E para as relações com Guyau: BERGSON, Henri. A idea de tempo. Curso no Collège de France (1901-1902). Tradução: Débora Cristina Morato Pinto. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
[12] Uma das principais fontes para essa alteração é a obra de Guyau: GUYAU, Jean-Marie. A gênese da ideia de tempo e outros escritos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[13] BERGSON, Henri. O que Aristóteles pensou sobre o lugar. Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado. Campinas: Unicamp, 2013.
[14] Esse problema permeia toda obra de Giorgio Agamben e a sua arqueologia da onto-te-logia política que define o Ocidente. Especialmente: AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
[15] AGAMBEN, Giorgio; MELVILLE, Herman. Bartleby, ou da contingência – seguido de Bartleby, o escrevente. Tradução de: Vinícius Honesko e Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
[16] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Dois Volumes. Tradução Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken. Introdução de Henrique de Lima Vaz. Petrópolis: Vozes, 1992.
[17] Ligia Saramago demonstra com agudeza os caminhos e os descaminhos dessa topologia do ser que permeia toda obra de Heidegger: SARAMAGO, Ligia. A topologia Do Ser – Lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. Ed. Loyola, São Paulo. 2008.
[18] O mediador entre Deleuze e as monadologias é Jean Wahl, um dos mestres de Deleuze e um dos grandes pensadores da metafísica na França, especialmente da metafísica de língua inglesa associada ao empirismo: WAHL, Jean. Tratado de Metafisica. México: Fondo de Cultura Económica, 1960. SANTOS, Bernardo Tavares dos. A metafísica de Jean Wahl: empirismo transcendental radical e afetivo. Tese de Doutorado. Orientador
Sandro Kobol Fornazari. Unifesp, 2023.
[19] Não por acaso, Deleuze lê Leibniz a partir do conceito de dobra. E Leibniz é um dos autores principais para a filosofia virtual de Deleuze:DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L. Orlandi. Campinas, SP: Papirus, 1991.
[20] TARDE, Gabriel. Monadologia e Sociologia e Outros Ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. 2007.
[21] DARWIN, Charles. A origem das espécies. Organização, apresentação e tradução de Pedro Paulo Pimenta. Ilustrações de Alex Červeny. São Paulo: Ubu, 2023.
[22] E não por acaso devemos sempre lembrar a importância de Tarde para Deleuze, talvez seja o maior pensador da virtualidade no século XX: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
[23] BLANQUI, Louis-Auguste. A eternidade conforme os astros. Organização e apresentação de Márcio Seligmann-Silva. Prefácio Jacques Rancière. Tradução de Pedro Pimenta. São Paulo: Iluminuras, 2018.
[24] Dunne atacou um dos problemas mais graves da história da ciência e da filosofia: a causalidade temporal. Conferir: DUNNE, John William. An Experiment with Time. London: Faber, 1927.
[25] WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality: an essay in cosmology. Corrected ediction. Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh during the session 1927-28. Edited by David Ray Griffin and Donald W. Sherburbe. New York: Free Press, 1985.
[26] Para as teorias de tudo e as teorias emergentistas de Deutsch: PETRONIO, Rodrigo. Introdução à teoria gerativa — parte 1: conhecimento, cosmologia e emergência a partir da obra de David Deutsch. TECCOGS — Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, n. 27, 2023, p. 67–88. Recebido em: 30 jul. 2023. Aprovado em: 20 ago. 2023. Acesso em 19.05.2024: https://revistas.pucsp.br/index.php/teccogs/article/view/64662/43716
[27] Whitehead aborda esse problema em diversos momentos, sobretudo em O Conceito de Natureza: WHITEHEAD, A. N. O Conceito de Natureza. Tradução de Júlio B. Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[28] Esses conceito de organismo, especulação, preensibilidade, sentires, entidades atuais e objetos, dentre outros, encontram-se em sua obra magna Processo e Realidade: WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality: an essay in cosmology. Corrected ediction. Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh during the session 1927-28. Edited by David Ray Griffin and Donald W. Sherburbe. New York: Free Press, 1985.
[29] Deleuze e na construção desse novo campo da filosofia virtual é Manuel De Landa: DELANDA, Manuel. Intensive Science & Virtual Philosophy. New York: Continuum, 2002, p. 41.
[30] Deleuze dizia que a sua obra era uma tentativa de fornecer uma metafísica à ciência moderna e contemporânea: DELEUZE, Gilles. Cartas e outros textos. São Paulo: N-1, 2018.
[31] No projeto Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari criaram meios para se pensar a diferenciação infinita: DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O anti-édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, 34 Letras, 1997.
[32] Em Lógica do Sentido, em seu livro sobre Leibniz, nos dois volumes sobre cinema e em diversos outros momentos, Deleuze explora o conceito de simulacro e, mais do que isso, desenvolve uma teoria baseada na potência do falso e do simulação.
[33] Lembro aqui o maravilhoso Proust e o Signos: DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
[34] E mesmo as minorias, que poderiam produzir potências menores de sublevação coletiva e de subversão universal, têm se confinado cada vez mais à axiomatização dos identitarismos e em suas de máquinas de inimizade, para parafrasear Achille Mbembe:
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
[35] Há um emprego extensivo da topologia na teoria de Lacan e nas áreas psi influenciadas pela teoria lacaniana:
NASIO, J.-D. Introdução à topologia de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.
[36] O objetivo da topografia é quantificar espaços geralmente físicos em suas mais variadas propriedades e produzir cartografias desses espaços.
[37] O termo topologia virtual por enquanto ainda e empregado mundialmente apenas como um subcampo da topologia cujo objetivo é distinguir as topologias físicas e as topologias das redes da internet: VAN OYSTAEYEN, Fred. Virtual Topology and Functor Geometry. New York: Chapman & Hall, 2008.
[38] Essa métrica ficou conhecida como métrica de Friedmann-Lemaître-Robertson-Walker.
[39] Hermann Weyl, baseada em uma métrica de autocorreções: uma metamétrica: NOVELLO, Mário. Quantum e Cosmos: Introdução à Metacosmologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.
[40] Gödel, que pressupõe curvas de tipo-tempo fechadas. Ou seja: possibilita recursividade e reversibilidade temporal sob certas condições e em algumas dimensões do universo: NOVELLO, Mário. Máquina do Tempo: Um olhar científico. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
[41] Hugh Everett e dos desdobramentos ulteriores protagonizados por David Deutsch, no âmbito da computação quântica, da cosmologia e das teorias emergentistas. Além do meu artigo cintado, segue aqui uma seleção de obras para uma introdução à obra de Deutsch: DEUTSCH, David. The Fabric of Reality: The Science of Parallel Universes — and Its Implications. London: Penguin Books, 1997. DEUTSCH, David. The structure of the multiverse. Proc. R. Soc. A458, 2002, 2911-23. DEUTSCH, David. “The Architecture of the Multiverse”. FLACHBART, Georg and WEIBEL, Peter (Editors). Disappearing Architecture: From Real to Virtual to Quantum. Basel: Birkhauser – Publishers for Architecture, 2005, p. 24-31. DEUTSCH, David. The Beginning of Infinity: Explanations that Transform the World. London: The Penguin Press, 2011. DEUTSCH, David. Constructor Theory. Centre for Quantum Computation, The Clarendon Laboratory, University of Oxford and Future of Humanity Institute, University of Oxford, September 2012 (Revised December 2012).
[42] A Teoria das Cordas foi proposta por Edward Witten e desenvolvida por Brian Greene e Michio Kaku, dentre outros cientistas.
[43] Teoria do campo unificado ou teoria de tudo, segundo algumas nomenclaturas. Mesmo Stephen Hawking poderia ser incluídos como protagonista das teorias de tudo: DEUTSCH, David. The Fabric of Reality: The Science of Parallel Universes — and Its Implications. London: Penguin Books, 1997.
[44] SMOLIN, Lee. Três caminhos para a gravidade quântica. Tradução de Walter Maciel. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
[45] Para um panorama geral do debate acerca da teoria quântica e seus desdobramentos atuais, conferir o dossiê que organizei: PETRONIO, Rodrigo. Dossiê Horizontes Quânticos. Dois Volumes. Números 27 e 28. Revista de Tecnologias Cognitivas | Teccogs. Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência da Pontifícia Universidade de São Paulo (TIDD|PUC-SP). Volume 01 (Número 27). Publicação: 15.12.2023. n. 27 (2023). Volume 02. (Número 29). Publicação: 15.07.2024. n. 29 (2024): Horizontes Quânticos 02. Acesso: https://revistas.pucsp.br/index.php/teccogs/issue/view/2915/486 Um bom panorama à teoria quântica: CASSINELLO, Andrés e GÓMEZ, José Luis Sánchez. O mistério quântico – Uma expedição às fronteiras da física. Tradução: Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Crítica, 2017
[46] E podemos nunca chegar a um número que não seja meramente aproximativo, mesmo dilema enfrentado pela incerteza, a indeterminação e os mecanismos probabilísticos da teoria quântica: PESSOA JR, Osvaldo. Conceitos de Física Quântica. Dois Volumes. São Paulo: Livraria da Física, 2003.