Todo abismo é navegável a barquinhos de papel: no limiar com Rosa e Cortázar
ARTIGO /
Mariana Souza de Almeida //
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“Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro”
(Mário de Sá-Carneiro, 7)
Sugere certa imagem de Julio Cortázar, presente em sua Prosa do observatório,que a realidade é uma “jubilosa dança”, “onde anverso e reverso deixarão de se desgarrar” (Cortázar apud Bernardo, 2010: 23). João Guimarães Rosa, por sua vez, afirma em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras que “Tudo, pela metade, é verdade. Os extremos já de si sempre se tocam, antes que tese e antítese se proponham” (Rosa apud Novis, 1989: 29).
Se, por um lado, a escrita dos dois autores não nos transmite uma oportunidade óbvia de estabelecimento de intercomparações, por outro, a despeito das várias diferenças literárias, entre o argentino e o brasileiro o diálogo é possível sobretudo no que tange à questão do limiar. Concebido como o espaço da tensão de contrários em complementaridade e do esmaecimento de fronteiras, o limiar é a imagem do entre-lugar, entre-opostos, que os reúne ao mesmo tempo em que os separa, que os é concomitantemente a não sê-los. Seu exemplo mais claro talvez seja a figura do horizonte, que em si une e divide o visto e o não-visto, irredutivelmente internecessários. A realidade compreendida a partir da imagem da liminaridade não se configura una, mas dual, convertendo oposições excludentemente antagônicas – nossa dicotômica herança platônica – em pares de contrários que, em jubilosa dança, apontam para lados opostos e, ao mesmo tempo, complementam-se ao invés de se anular.
É nesse sentido que se pode afirmar que tanto Rosa quanto Cortázar são autores que realizam poeticamente o horizonte, colocando constantemente a realidade em tensão por meio de suas obras. São contos emblemáticos relativos a tal questão os rosianos “O espelho” e “Desenredo”, bem como “Continuidade dos parques” e “Instruções a John Howell”, de Cortázar.
No caso de “O espelho”, mesmo antes de se começar a leitura do conto, a imagem do entre-lugar já se faz perceptível. Afinal, mais do que uma lâmina de vidro refletor, o espelho é uma forma de limiar. Geralmente entendido sob o signo da mimese, como uma representação fiel da realidade, tal objeto seria o limiar entre o real e a representação do real, idênticos entre si. No entanto, quando um indivíduo se põe frente ao espelho, será que ele se vê como de fato é? Não seria o espelho uma forma de mediação? E não seria o seu próprio olhar um outro elemento mediador, capaz de deformar essa realidade?
Ao invés de um movimento unilateral, observa-seuma relação de interdependência entre ambas as imagens. A imagem projetada depende da imagem dita real, uma vez que dela parte. Se não houvesse aquilo a que chamamos real, o espelho não refletiria nada. Mas a imagem do lado de cá também depende da imagem do espelho, já que um indivíduo nunca consegue conhecer a si mesmo a partir de si; é necessário um distanciamento. E mesmo o distanciamento não é capaz de nos fornecer a resposta da tão procurada pergunta “quem sou eu?” – apenas amplia a questão.
Como afirma Ronaldes de Melo e Souza,
É digno de riso quem crê que seu olhar revertido para dentro de si alcança o que ele é ou que em si há algo que lhe reflete a imagem. O olho não se vê a si mesmo. Por mais que se aprofunde, o olhar não atinge o eu que é em si por si mesmo. Dentro no homem está, de um lado, o eu-objeto, o eu que se objetiva, o ‘mim’ e o ‘me’; o eu-sujeito está do lado oposto como eu inobjetivável, como subjetividade irredutível a toda objetivação, porque é o antecedente ou o concomitante de todo o objetivar. (…) Por mais que se multiplique em objetivações, o eu que se procura permanece sempre o desconhecido prodigalizador de tudo que é conhecido (Souza, 2000: 35).
Assim, o espelho, para além de duplicar o real, funciona como um objeto engendrador de alteridade. Ver a si mesmo através do espelho é ver a si mesmo através do outro, desdobramento de si, que nunca corresponde, na realidade, ao eu propriamente. Mais do que fronteira entre real e representação do real, o espelho funciona como mediação necessária entre o si e o si mesmo – ou entre o si e o outro que nos tornamos diante de nós mesmos, à maneira do poema de Mário de Sá-Carneiro que aqui serve de epígrafe.
A respeito das mediações, afirma Gustavo Bernardo: “temos acesso ao real apenas através da mediação dos discursos; todo discurso elabora ficções aproximativas à realidade, portanto, todo discurso funda-se pela ficção; logo, todo discurso é ficcional” (Bernardo, 2010: 15). Dessa forma, o espelho, sendo um discurso mediador entre o si e o si mesmo, realiza-se não como limiar entre o real e sua representação fiel, mas entre real e ficção.
No conto, o protagonista narra seu incômodo diante do espelho e o percurso de autoprocura que, a partir disso, empreende – ou seja, todo o seu caminho em busca de tentar desver todas as máscaras presentes na sua imagem e achar, através do outro que é a imagem do espelho, o eu que existe por detrás de si mesmo. E não mais “quem sou eu?”, o personagem se pergunta, agora distanciado de si: “Você chegou a existir?” (Rosa, 2005: 120). Busquemos, nesse sentido, Maria Lucia Guimarães de Faria:
“O espelho” (…) narra uma catábase. O homem que se repugna com a imagem que no espelho se mostra empreende uma descida ao núcleo cordial de sua própria alma. Depor todas as máscaras que compõem o disfarce do rosto externo é realizar a travessia do espelho. Atravessá-lo significa transpor em vida os umbrais da morte (Faria, 2005: 19, grifo nosso).
Diante do espelho – agora metafórico – põe-se também o protagonista de “Instruções a John Howell”, conto que narra a ida um tanto insólita de um homem ao teatro. De acordo com Bernardo, a metaficção é “um fenômeno estético autorreferente através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma” (Bernardo, 2010: 9). No caso dos quatro contos aqui postos em diálogo, a metaficção não se apresenta da forma mais clara – a ficção não fala explicitamente de si mesma, por meio de parábases realizadas pelo narrador –; seu duplicamento interno é mais sutil, embora também mais vertiginoso.
Em “Instruções a John Howell”, a ficção teatral, contida na ficção literária, já é capaz de criar tal dimensão metaficcional. A inserção de uma obra na outra constrói uma estrutura de encaixe que gera um certo incômodo ao abrir a possibilidade de uma projeção indefinida de histórias e de leitores ou espectadores, como se os diferentes planos – reais ou ficcionais – fossem bonecas russas e houvesse a possibilidade de nós, leitores, não sermos a boneca maior.
É o que percebemos também – e ainda mais claramente – em “Continuidade dos parques”, que já se abre instaurando essa dimensão de infinito. Sua primeira frase, “Começara a ler o romance dias antes” (Cortázar, 1974: 11), nos sugere que nós, leitores, lemos um conto sobre um homem que lê, de dentro de sua casa em um parque de carvalhos – conforme somos levados a saber depois –, um romance sobre o encontro de dois amantes em um outro parque de carvalhos. Essa continuidade de parques a que alude o título é instaurada, então, por tal estrutura de encaixe, que faz com que a fronteira entre os parques, ou melhor, entre os diferentes planos, reais ou ficcionais, seja esmaecida. Assim defende Bernardo:
A circunstância de nos encontrarmos lendo uma pessoa que também está lendo é perturbadora: parece que somos indiscretos; parece que nosso queixo repousa no ombro de alguém para lermos o que este alguém está lendo. Emerge a sensação desagradável de que outrem também possa ler o que estamos lendo, ou seja, de que outrem possa estar com o seu próprio queixo pousado no nosso ombro. (…) Essa multiplicação de leitores e leituras afeta a continuidade dos parques, transformando-a em uma multiplicação infinita de parques e de lugares. Portanto, já na primeira frase do conto encontramos uma série possivelmente infinita de babushkas (Bernardo, 2010: 31).
Por esse motivo, o fato de a ficção conter-se a si mesma, já no início de “Instruções a John Howell”, por si só já nos coloca diante de um texto que se constrói entre a ficção e a metaficção. Tal situação se adensa ao longo do conto, quando o personagem Rice é obrigado a participar da peça a que está assistindo. De espectador, metamorfoseia-se em ator, que logo se transmuta em personagem da peça – chamado Howell –, como na seguinte passagem: “Percebendo que não devia falar assim, Rice disse: ‘Mas eu não sou um ator.’ (…) ‘Precisamente por isso’, disse o homem alto. ‘O senhor percebe muito bem a diferença. Não é um ator, é Howell’” (Cortázar, 2002: 139). E a conjuntura se intensifica à medida que Rice crescentemente acredita que ele, que se supunha tão real, de fato é um personagem de nome Howell. Forçado a acatar o pacto ilusionista, que trata a ficção como realidade, acaba a ele aderindo, embora parte de si ainda mantenha distância crítica e atribua ao fenômeno um caráter absurdo. Entre o absurdo e a realidade, já de volta à posição de espectador, Rice acaba por empreender uma fuga que parece despropositada, em meio à qual se depara com o ator que o substitui no papel de Howell, ou melhor, com o próprio personagem Howell. Olho no olho, refletem-se por este limiar propiciador de catábase: o espelho, literal ou metafórico. Homem, ator e personagem, unidos quase como desdobramentos de um só ser, terminam por entrelaçar profundamente real e ficção.
Situação análoga caracteriza “Continuidade dos parques”. Ao final da narrativa, o protagonista, que lia, da sua cadeira de veludo verde, no seu cômodo com vista para um parque de carvalhos, um romance em que dois amantes se encontram também em um parque de carvalhos e planejam matar o marido da amante, acaba também se colocando de frente para o espelho. Afinal, o conto termina com a narração dos últimos passos do amante, personagem do romance: “A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance” (Cortázar, 1974: 13).
Ou seja, o que se percebe aqui é mais do que uma projeção indefinida – e linear – de planos ficcionais. Sem dúvidas fica em aberto se esse homem, que agora também é leitor de um leitor, é esse outro leitor, se ele está lendo a si mesmo, que lê a si mesmo, que lê a si mesmo, e assim sucessivamente. Fica em aberto, ainda, se o homem está lendo o seu próprio assassinato. Contudo, esse final nos sugere que aquilo que nós supomos ser ficção pode saltar para aquilo que supomos ser real e nele intervir; insinua que essa fronteira, que cremos tão sólida, é muito mais volátil do que se imagina; que real e ficção, que consideramos tão antagônicos, tão incongruentes entre si, são dois lados de uma mesma realidade, separados e reunidos pelo espaço adimensional do limiar – como anverso e reverso, enlaçando-se indissociáveis, à maneira da imagem de Cortázar anteriormente citada.
Logo, mais do que um espelho, o que aqui se presentifica é uma sala repleta de espelhos, um labirinto de espelhos, com infinitas possibilidades de projeções, que se entrecruzam e jogam com nossas percepções, de forma a não sabermos mais o que é realidade e o que é ficção. Nesse sentido, Davi Arrigucci afirma que, em Cortázar, “a quebra irônica das molduras da ficção acaba por envolver diretamente o espaço do leitor, desequilibrando-o da sua cômoda posição de contemplador passivo, que se abandona à evasão ficcional” (Arrigucci Jr., 1995: 175).
Tal entrelaçamento entre real e ficção é perceptível também em “Desenredo”, em que o personagem Jó Joaquim é traído por sua esposa e, quando passa a sentir saudade de sua vida juntos, resolve redimir a mulher do adultério que cometeu. Para isso, “Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?” (Rosa, 2009: 74). A esse respeito, afirma Vera Novis: “Jó Joaquim examina pacientemente uma estória, a sua própria, e, não satisfeito com o caminho que, ao que tudo indica, ela vai tomar, opta pelo descaminho e decide dar, ele mesmo, rumo a sua vida, disputando com o narrador a decisão final da estória” (Novis, 1989: 135, grifo nosso).
E essa ficção que o personagem cria a partir da sua própria vida é capaz de interferir na sua realidade, como podemos perceber pela passagem: “Todos já acreditam. Jó Joaquim primeiro que todos. / Mesmo a mulher, até, por fim” (Rosa, 2009: 75), o que culmina com a frase final: “E pôs-se a fábula em ata” (Rosa, 2009: 75). Assim, ao pôr em relevo as mediações por que passam as narrativas, esse conto nos mostra como a ficção pode se tornar tão real quanto o real, podendo labirinticamente intervir naquilo a que convencionalmente chamamos real.
Nesses contos, portanto, o limiar se constitui não só como procedimento técnico, metaficcional, mas existencial. O encontro consigo mesmo, o pôr-se diante do espelho e a travessia do abismo não apenas são operados pelos personagens, mas também por nós, leitores, já que, de acordo com Patricia Waugh,
“ao criticar seus próprios métodos de construção, tais escritos não examinam apenas as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também exploram a possível condição ficcional do mundo externo ao texto ficcional” (Waugh apud Bernardo, 2010: 46).
O diálogo entre esses quatro contos, dessa forma, nos mostra que é pela criação ficcional – que assume, em cada caso, uma forma própria – que se torna possível realizar a catábase ao nada de si mesmo. Se, como nos sugere certa imagem de “Desenredo”, “todo abismo é navegável a barquinhos de papel” (Rosa, 2009: 72), é pela construção ficcional que se torna possível realizar a travessia do espelho. Nesse sentido, nós, leitores, agora na possível condição de barquinhos de papel – não mais gestados, e sim construídos –, somos capazes de navegar o abismo e nos constituirmos não mais como realidade pura e simples, mas no limiar entre o real e a ficção.
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Referências bibliográficas
ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
CORTÁZAR, Julio. Final do jogo. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974.
CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Aletria e hermenêutica nas estórias rosianas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
NOVIS, Vera. Tutameia: engenho e arte. São Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1989.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras estórias). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. Introdução à poética da ironia. Linha de Pesquisa (2000) 1: 27-48.
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Mariana Souza de Almeida é mestranda em Literaturas Comparadas na Université Paris-Sorbonne.