Sobre o Infinito
Esse texto foi retirado de meu livro O Universo Inacabado (E ditora N – 1) 2018
Minha formação de cientista, me induz a tratar a questão do infinito sob um olhar particular. Em um primeiro momento, seleciono alguns territórios naturais para esse exame: a matemática e a lógica, a física e a cosmologia. Há uma outra vertente, de caráter psicológico e enfim a investigação filosófica e os filósofos do infinito. Uma tal análise deveria exibir as variadas formas de aparição do infinito envolvendo uma multiplicidade de tópicos dentre os quais podemos particularizar os seguintes:
A aparição fantasmagórica, imprecisa, do infinito no começo da ciência moderna;
O infinito, o universo e os mundos: Giordano Bruno;
Deus e o infinito;
Sisifo e a eternidade da angústia;
Um só infinito? A entrada em cena de um visionário maravilhoso. Georg Cantor e os transfinitos;
O horror metafisico do infinito na física do século XX;
Exaltação do zero: a produção do que existe a partir do que não existe nas lições da física do século XX (mundo quântico e gravitação);
Sobre o infinito, o que diz a cosmologia?
Catástrofes cósmicas;
Caminhos que não levam a lugar algum;
Bifurcação no cosmos: como construir somente um cosmos?
U-topia e U-chronos ( fora do espaço e fora do tempo)
A representação infinita.
Eu me limitarei aqui a visitar alguns desses tópicos. Para começar nossa caminhada escolhi recorrer a Giordano Bruno. Eu poderia procurar muito lá atrás, em Euclides, nos filósofos gregos que refletiram sobre o uno e o múltiplo e consequentemente tiveram que enfrentar o zero e o infinito. No entanto minha escolha se deu porque Bruno encara fortemente o destino trágico que permeia o pensador que ousa ser diferente, pensar contra o establishment, se opor ao que a sociedade dos sábios consagrou como verdade. E porque Bruno simboliza esse caminhar inevitável para o fogo que consome.
Infinitos mundos
Giordano Bruno, no século XVI, antes de ser queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma se dedicava, entre outras coisas, a entender como conciliar a multiplicidade dos infinitos mundos que constituía uma das bases de sua cosmogonia e a unidade de Deus. Em seu texto O infinito, o universo e os mundos encontramos um longo discurso envolvendo duas afirmativas: o homem é finito. Deus é infinito.
Da aceitação da infinitude espacial conclui que o universo é eterno, e a partir daí, baseando-se nessas certezas, encontra o estofo com que constrói sua religiosidade. Identifica Deus com esse universo múltiplo e institui seu discurso de exaltação divina usando as propriedades do infinito, dando origem ao estabelecimento de um modo bem distante do sistema religioso então no poder e que acarretará sua desgraça.
Bertrand Levergeois, seu tradutor para o francês, argumenta que Bruno não sonhou esses outros mundos, não os colocou como uma forma de proposição fantasiosa, como uma ficção cientifica, mas sim apresentou-as como consequência de um pensamento racional a partir de premissas e conhecimentos que tinha à sua disposição e cujo discurso obtinha validade graças à sua coerência interna. Giordano Bruno não se deixava levar como alguns de seus contemporâneos a apoiar-se em propostas fantasiosas para reformar a sociedade —como encontramos em Thomas More e sua Utopia (1518), A Nova Atlântida de Francis Bacon (1620) ou A cidade do Sol de Campanella (1623).
O projeto de Bruno não se restringe a propostas de mudanças, pequenas ou grandes, que poderiam ser produzidas na sociedade, provocando o aparecimento de um novo homem. Ao inverter o procedimento convencional, a ambição de Giordano Bruno vai muito além: ele propõe, ao reformar o céu, gerar uma nova visão do mundo e consequentemente adaptar o destino humano à sua cosmologia. E somente então, a partir dessa grandiosa reforma, tomando como ponto de partida uma visão da multiplicidade do que existe, apoiando-se na certeza apriorística e para ele evidente, de uma profunda conexão entre a finitude do mundo terrestre e o Cosmos infinito, só então seguiria daí uma natural, consequente e profunda reforma da sociedade. É a abertura e o conhecimento dos mundos infinitos que permitirá que compreendamos a nós mesmos. Levergeois conclui afirmando que o caminho escolhido por Bruno permite imaginar que para ele é a lógica do infinito que determina, em última análise, toda a história social. Ao invés de construir um cosmos a partir da racionalidade da ordem social que lhe era oferecida por seus pares, inverte os fundamentos desse modo, preferindo atribuir ao universo a imagem a ser perseguida na estruturação da sociedade humana. Posto manu militari a decidir sobre seus propósitos terrestres e seu futuro, sendo-lhe imposto a questão da escolha entre render-se aos processos que a cidade lhe cobra com ênfase na tragédia da finitude da vida ou o esplendor do cosmos infinito, Giordano Bruno não hesita. E como prêmio, como se lhe fosse dado servir como exemplo para aqueles que não comungam da ordem exercida pelo poder do Estado, foi queimado vivo em 1600.
Finitude do homem, infinitude divina
A evidência da finitude humana e a hipótese da infinitude de Deus foram reconhecidas como verdades estabelecidas ao longo da história da humanidade desde seus primórdios. Uma tal relação, simples, ingênua mesma, produziu-me intuitivamente uma associação — que ao primeiro momento me pareceu estranha, esdrúxula — que desembocou em uma analogia inusitada entre arcaicos mitos e algumas propostas recentes da ciência. Fui levado, nessa divagação, a imaginar que seria possível associar o destino de Sisifo, herói grego, ao matemático Georg Cantor a partir de certezas matemáticas por ele formuladas no século XIX. Como essa conexão me apareceu? E como dar sentido a essa relação? É o que farei no texto que segue. Antes porém, alguns comentários preparatórios se fazem necessários.
Tratar a questão do infinito me fez pensar nos meandros pelos quais o sentimento de finitude humana é entendido como um problema. É a partir desse ponto de análise, centrado em uma preocupação humana convencional, cotidiana que posso começar a investigar a seriedade da solução que levou à necessidade de introduzir essa aparição, o infinito.
Não quero tocar a questão do horror gerado pela angústia da finitude da vida. Essa não é minha função. Deixo essa tarefa para meus colegas filósofos e psicólogos que podem cuidar desse tema com propriedade, como Kierkegard e outros, desesperados com essa finitude. Não posso me furtar, no entanto, a comentar mesmo que brevemente essa questão que identifico como associada ao sentimento trágico da existência que percorre nossa civilização (como descrito por Sartre e outros), mesmo se me limito às questões que a ciência colocou a esse respeito.
Vivemos um modo finito. Para nos livrar dessa limitação, avançamos sobre nossos desejos e produzimos o infinito. A aceitação do infinito transforma essa angústia e expande os caminhos por onde procurar o significado da existência.
Esse discurso me conduz para um território que se assemelha mais a um labirinto do que a uma estrada a ser seguida, mesmo que ela não me conduza ao imprevisível, mas sim a uma angústia. Não é esse meu intuito aqui. Não pretendo situar minha análise no centro de uma discussão existencial mas sim enumerar umas poucas propostas que construímos para dar sentido a essa estrada que não termina. Para isso organizei uma lista das questões que a análise do infinito em um contexto cientifico produziu. Vamos então começar com um comentário envolvendo um mito grego e um matemático alemão do final do século XIX.
Sisifo e a eternidade da angústia
Talvez uma das imagens mais dramáticas da angústia associada ao sentimento da eternidade seja o castigo a que Sisifo foi submetido por sua ofensa aos deuses gregos. Ele deveria arrastar uma pedra do sopé até o alto de uma montanha e ali chegando, deixá-la rolar montanha abaixo, para em seguida conduzi-la novamente ao alto, deixá-la rolar novamente e assim sucessiva e eternamente. Segundo Camus, os deuses haviam pensado, com alguma razão, que não existe castigo mais terrível do que um trabalho inútil e sem esperança.
Essa sequência infindável de uma ação inútil é, sem dúvida, de um trágico terrível. E no entanto, esse esforço continuo, esse castigo que requer um trabalho físico superior e que impõem um desgaste formidável do corpo, seria pequeno, menor mesmo, se sua ênfase se limitasse ao corpóreo. O destino de Sisifo só é verdadeiramente trágico ao compreendermos que associado ao castigo de seu corpo se encontra um não-acabar mais de sua consciência. É essa infinitude consciente que lhe dá seu caráter dramático e infeliz.
Mas nós, humanos, não vivemos no encantamento dos mitos. Para interromper esse destino e encerrar o castigo, o homem encontrou a morte. Essa ruptura de uma sequência única e pessoal, intransferível, que amedronta e encanta, permite explicitar que afinal a eternidade nada mais é do que uma expressão vazia e sem sentido, que amedronta e persegue. Para esvaziá-la de seu mal-entendido existencial tentamos domá-la pela razão e, isso aceito, não parece existir forma mais eficiente para isso do que controlá-la pelos aparelhos impessoais ofertados pela lógica.
Sim, fizemos isso. E mais até, pois os matemáticos não se limitaram a produzir uma forma racional para pensar a noção de infinito a partir da teoria dos conjuntos, foram bem além: produziram uma infinidade de infinitos!
A proteção máxima ou Cantor esse Sisifo moderno
Assim como os antigos, mergulhados em um modo místico, identificavam o infinito como a qualidade que permite definir a grandeza divina por excelência, podemos também, sem incorrermos em êrros ou desvios, reconhecer uma outra vertente, de natureza psicológica, que se insere insistentemente no imaginário coletivo associada à noção de infinito.
Assim como limita, o infinito concede a máxima proteção e controle. O domínio que ele cerca e que transforma uma fronteira de passagem em portas intransponíveis de uma prisão, não pode ser penetrado por invasores de fora, como também não permite dali sair. A analogia com nosso corpo é evidente, mas pode ser mais do que isso: se exploramos essa conotação linguística, indo além da superficialidade de uma metáfora, acabamos por penetrar em uma dimensão nova e construir uma ponte entre a alma humana e uma questão que aparece ao primeiro momento de natureza cientifica e impessoal, típica de sua pertinência ao território da matemática ou da física.
Há na verdade uma dupla função: o infinito protege e castra, como todo limite que não pode ser ultrapassado. Mas se trata de uma ilusão, como um tigre-de-papel, não é real, não está ali como um verdadeiro animal a defender seu território. Trata-se de uma invenção, a produção de uma imagem, nada mais do que isso. O infinito assim pensado, deve ser temido ou desejado?
Afinal, estamos em face de uma vertente psicológica (devemos procurar proteção e esquecer o mundo do lado de lá dessa fronteira de muro infinito?) ou de uma postura lógica (consequência do estabelecimento rigoroso de uma razão matemática e de regras não auto-contraditórias completas?) ou ainda se trata de imposição que a natureza, os fenômenos do mundo que a ciência observacional detecta e horroriza os cientistas com a possibilidade de situações-limite que envolveriam valores infinitos de forças a requerer uma alteração na descrição desses processos ou a limitar o alcance da observação – de uma vez para sempre?
Essa proteção que os lógicos organizaram ao desenvolverem o conceito de infinito permite que a angústia do além, do inalcançável possa ser gerida. Quando ao final do século XIX essa proteção já se estabelecera formalmente na razão matemática, quando a noção de infinito ocupava já um lugar convencional na ciência, eis que chega Cantor que produz uma reforma profunda e destrói essa paz.
E fez-se então de novo o desespero com Cantor. Não porque ele negou o infinito e nos expôs novamente a um território sem limites, sem proteção absoluta, mas sim porque ele alargou desmesuradamente essa função, na formação de vários infinitos, multiplicando seu alcance a um nível jamais visto e que uma vez mais anuncia a chegada de uma angústia cósmica, desta vez a mais absoluta. Muito além da figura de um deus com poder infinito, a matemática reconheceu que a representação dos poderes envolvendo processos de intensidade infinita e que foram tradicionalmente associados a uma função divina — podem ser menores, bem menores, infinitamente menores do que novos e múltiplos infinitos que a razão, pelas mãos de Cantor, conseguiu produzir. Como consequência natural, essa estrutura formal que passou a permitir realizar operações com esses infinitos gerados por Cantor produziu no imaginário transcendental a diminuição da função do deus infinito que até então pairava absoluto sobre o mundo.
O matemático Georg Cantor, esse Sisifo dos tempos modernos, produziu uma reforma na natureza jamais vista. Ele mostrou, pelos caminhos da razão, como essa qualidade infinita que havia sido associada aos deuses, pode ser diminuída, exibindo o modo pelo qual podemos ir muito além dessa infinitude graças à criação de distintos infinitos, em verdade de um número ilimitado de infinitos. Reduziu assim a visão tradicional de infinito pela qual havia-se concedido aos deuses uma disponibilidade espaço-temporal sem limite, posto que poder-se-ia ir muito além desse “simples infinito de primeira ordem” do qual o pensamento religioso se apoderara. A novidade de constituição de um imaginário capaz de lidar e gerenciar inumeráveis configurações múltiplas sem limite possível, permitiu pensá-las muito além da eternidade divina, para além de qualquer ação infinita até então organizada.
Ao associar a infinitude do mundo à morada de deus, os antigos aceitavam que essa extensão não requer um corpo, mas se alimenta da ideia de que a multiplicidade de coisas e processos que é identificada ao uno representa a estrutura da divindade. Cantor transformou essa situação que permanecera imutável por milhares de anos no imaginário coletivo.
Roubar a formação do infinito, uma prerrogativa exclusiva dos deuses, torna Cantor o Sisifo dos tempos modernos? Essa ousadia de desafiar a grandiosidade divina merece igualmente o castigo eterno dos deuses? Afinal, esse trabalho inútil e sem esperança – a produção dessa multiplicidade de infinitos – modifica e amplia a grandiosidade de nossa reflexão sobre isso e aquilo ou provoca uma nova angústia face à nossa finitude?
Deveríamos aceitar que aquele – nós — que produz esses mundos infinitos é superior a seu destino limitado e trágico, e não precisa se esconder por reconhecer que esse caminho não requer conceder nem mesmo propor um sentido à existência?
Sisifo rouba aos deuses e os ofende. Na tradição, a finitude humana se confronta com a infinitude da morada divina. Ao mostrar que existe mais de um infinito exige-se dos deuses que sejam transferidos para outros mundos, para infinitos maiores. Essa ofensa de Cantor poderia ser resolvida pela saída divina para infinitos maiores ou de modo definitivo, empurrando os deuses para um novo imaginário absoluto: o maior dos infinitos. Assim, atingido aquele espaço mais abrangente, alcançável somente por eles, pelos deuses, continuaria a ser possível açambarcar tudo que existe e impor sua presença embebido em uma totalidade maior. Mas instala-se aqui precisamente a maior das crises ao perguntarmos a Cantor sobre a estrutura do maior-dos-infinitos e, em um segundo momento, em como alcançá-lo. E, finalmente, a mais terrível das questões: existe verdadeiramente um tal incomensurável infinito que possa ser apontado como o maior-dos-infinitos?
Cantor nos surpreende uma vez mais ao responder com um imenso não! a essa questão, empreendendo assim um trabalho gigantesco que o transforma no maior desafiante dos deuses, reduzindo o ato simbólico de Sisifo por sua ofensa aos deuses contada pelos mitos, como nada mais do que uma pequena, uma quase infantil transgressão.
Resta enfim a tarefa individual e angustiante de decidir se a Cantor – a nós? — deveria ser aplicada a mesma sorte de Sisifo.
É preciso primeiro esclarecer uma questão e precisar o que fez realmente Cantor. Que sentido dar a essa multiplicidade de infinitos que ele produziu? Sob qual manto simbólico devemos situar esse caçador de infinitos, esse construtor de estruturas inesperadas que contém mais coisas do que a totalidade das coisas do mundo? Trata-se somente de ilusões forjadas em um território distinto onde se debatem verdades matemáticas, distantes de nosso mundo? E qual a alternativa àquela pergunta anterior que permitiria reconstruir o poder dos deuses de dominar e controlar o mundo apoderando-se do maior-dos-infinitos? Antes de decretar seu destino simbólico devemos entender um pouco o que o matemático Cantor realizou.
Sobre o infinito: o que diz a matemática e a lógica?
Georg Cantor alterou tão profundamente a questão do infinito e de um modo tão completo que eu ousaria dizer que essa tenha sido a proposta mais estranha e vertiginosa que jamais um matemático ousou fazer. E mais, de um modo tão simples – característico das ideias fundamentais – que podemos discursar sobre ela até mesmo sem que seja indispensável penetrar nos formalismos matemáticos exotéricos que só uns poucos – aqueles que se dedicam ao exercício dessa ciência – sabem lidar.
Vamos visitar essas ideias de Cantor e deter nosso exame em três questões:
Existe um só infinito?
Existe uma hierarquia desses diferentes infinitos?
Existe um infinito maior do que todos os outros?
A teoria matemática dos conjuntos é certamente o instrumento mais adequado para entendermos a noção de infinito na matemática moderna. Um conjunto M contém elementos {a,b,c,…}. Podemos contar a quantidade desses elementos de M fazendo uma contagem um-a-um associando a cada elemento de M um número. Por exemplo o conjunto {a,b,c} possui 3 elementos.
Com esse conjunto M de 3 elementos podemos fazer vários outros conjuntos a partir de seus sub-conjuntos. Assim, o conjunto N = {a,b} é um sub-conjunto próprio de M pois todos os elementos de N são também elementos de M. Descobrimos assim, até mesmo por contagem e construção direta, que existem 8 sub-conjuntos que podem ser criados a partir de M. Em verdade, mostra-se que se um conjunto possui n elementos então pode ser construídos 2^n sub-conjuntos. No nosso caso, n=3, então podemos construir aqueles 8 que comentei acima. O notável é que os matemáticos mostraram que o número de subconjuntos é sempre maior que o número de elementos do conjunto. Surge então a pergunta: e quando o número de elementos do conjunto for infinito? Uma vez mais os matemáticos espantam o senso comum ao mostrar que 2^n é sempre maior que n mesmo que n seja infinito!
Mas isso requer antes que esclareçamos como decidir que um dado conjunto tenha um número infinito de elementos sem que sejamos obrigados à impossível tarefa de contá-los. Um método bastante simples e eficiente consiste em utilizar o mapeamento de um conjunto em outro. Suponhamos dois conjuntos A= {a, b, c} e B = {m, n, k}. Façamos uma correspondência arbitrária entre A e B de tal modo que a cada elemento de A corresponda um e somente um qualquer elemento de B. Assim, por exemplo associamos
a→m
b→k
c→n.
Vemos que todos os elementos dos dois conjuntos estão relacionados, isto é, não sobra nenhum elemento nem de A nem de B ao fazermos essa aplicação entre os dois conjuntos. Dizemos assim que A e B tem o mesmo número de elementos.
De outro modo, os conjuntos A = {a, b, c} e C= {m, n} não possuem o mesmo número de elementos e podemos induzir que o conjunto A possui mais elementos do que o conjunto C.
Pois bem consideremos agora dois conjuntos especiais bem conhecidos:
O conjunto dos números inteiros
N= {1, 2, 3, 4, 5, …}
e o conjunto dos números pares
P= {2, 4, 6, 8, 10, …}
Façamos a mesma operação de mapeamento que construímos anteriormente e a cada número inteiro do conjunto N façamos corresponder o número par correspondente de P. Assim, temos
1→ 2
2→ 4
3→ 6
4→ 8
5→ 10
E assim sucessivamente. Podemos induzir que todo elemento de N terá um elemento correspondente no conjunto dos pares P. E, vice-versa, todo elemento de P terá um correspondente em N. Concluímos assim, pelo que definimos anteriormente, que os dois conjuntos N e P possuem o mesmo número de elementos. Note entretanto, que o conjunto P é um subconjunto próprio de N, pois todos os elementos de P estão contidos em N mas nem todos os elementos de N estão contidos em P.
Ou seja, a operação de mapeamento permitiu mostrar que é possível existir um conjunto que pode ser posto em correspondência biunívoca com um seu subconjunto. É essa propriedade que os matemáticos usam para definir um conjunto que possui um número infinito de elementos. Ou seja, um conjunto é dito infinito (isto é, possui um número infinito de elementos) se ele pode ser posto em correspondência biunívoca com um seu subconjunto.
Essa definição permite imaginar uma possibilidade até então escondida e referente à questão que vimos examinando: é possível existir mais de um infinito. Ou melhor, é possível construir ou somente imaginar dois conjuntos infinitos que não tenham o mesmo número de elementos? Suponhamos que dois conjuntos A e B sejam infinitos e que todos os elementos de A possam ser relacionados de um modo biunívoco a uma parte do conjunto B mas não à sua totalidade. Isto é, sobram elementos do conjunto B nessa operação de mapeamento entre A e B. Dizemos então que o conjunto A é menor do que o conjunto B, embora ambos conjuntos possuam um número infinito de elementos.
Cantor estabeleceu essa profusão de infinitos a partir da noção de correspondência que introduzimos acima e conseguiu então responder à questão que havíamos proposto anteriormente, a saber: existe um conjunto que possa ser considerado como o maior de todos os demais? Existe um infinito maior do que todos os infinitos? É nesse momento, quando Cantor demonstra que a resposta é não, que aparece a dúvida: o que fazer com isso? Como conciliar a finitude humana com esses infinitos sem limite? Podemos tranquilamente continuar com essa análise formal, simbólica, e abdicar de transformar com ela nossa realidade? Pode essa verdade matemática servir para imaginar universos que escapam a nosso controle?
Para que possamos elaborar respostas um desvio nessa análise se faz necessário comentarmos como a questão do infinito aparece no mundo da física.
Sobre o infinito: o que diz a física?
Embora o zero e o infinito estejam intimamente relacionados, a atitude dos físicos face a esses dois extremos é distinta. Enquanto o infinito produz horror aos físicos, o zero não provoca essa reação. Ao contrário, um procedimento bastante generalizado entre os físicos, o zero – que tradicionalmente representa o vazio, ausência de quantidades físicas – é utilizado como ponto de partida para uma descrição completa de tudo-que-existe. Como foi isso possível?
Construindo o que existe a partir do que não existe
Hans Blumenberg argumenta que o homem lida com objetos que não percebe. O ponto máximo disso seria propor à física que ela iniciasse um programa completo de sua ciência por construir o que existe (os objetos, os corpos materiais, os campos de força) a partir do que não existe (os conceitos que irão nortear as funções dos objetos e lhes permitir existir).
Por mais estranho que isso possa parecer, ao longo do século XX, e sem que isso fosse entendido como um verdadeiro procedimento metafisico as duas mais fundamentais teorias da física (Teoria Quântica dos Campos e Relatividade Geral) propuseram construir o que existe a partir do que não existe. Como foi isso possível e porque esse procedimento não produziu nenhuma dificuldade de princípio no arcabouço positivista da física é o que me interessa comentar aqui.
A matemática produz uma simplificação na descrição das propriedades formais do mundo da física que permite uma formidável amplidão de consequências formais. Em vários momentos essa produção remete a questões que transcendem a experimentação e fazem apelo a configurações não-observáveis. Até o início do século XX essa ausência de uma visão positivista da física era considerada inaceitável. A situação mudou completamente ao longo daquele século.
Ao contrário do que poderia imaginar um físico positivista do início do século passado, a ideia de que somente observáveis devem fazer parte do arcabouço formal de qualquer teoria é hoje entendida como ultrapassada. Eu não diria que ela é inaceitável, mas está-se muito próximo disso. Conceitos que não possuem exemplos de uma realidade fazem parte do instrumental hodierno da física ou a situações que podem ser consideradas como parte desse real somente através de uma abstração de influências de diversos tipos e que devem ser especificadas em cada exemplo.
Uma dessas situações envolve o que parece familiar a qualquer físico: a estrutura do espaço-tempo de Minkowski. Essa estrutura é uma idealização que se realiza ao abstrair o campo gravitacional, sempre presente.
Não devo entrar em detalhes que desviariam a atenção do leitor por serem específicos do formalismo dos físicos. Devo somente dizer que no começo do século XX fez-se uma modificação profunda nos conceitos newtonianos de espaço absoluto e tempo absoluto com os quais se representava o pano-de-fundo que servia para situar e apontar os fenômenos do mundo. Ao final da primeira década daquele século uma nova estrutura (igualmente apriorística e absoluta) apareceu: o espaço-tempo, uma união formal daquelas duas estruturas absolutas com as quais os físicos representavam todo território possível.
Na década seguinte, e graças à interpretação dos processos gravitacionais como modificações na estrutura da geometria do espaço-tempo, aquela configuração formal – o espaço-tempo de Minkowski – deixou de constituir uma estrutura fundamental e passou a ser nada mais do que uma idealização associada à ausência de forças de gravitação.
Ora, isso é certamente um inobservável, posto que por definição do que existe, todo corpo material e toda forma de energia provoca inevitavelmente uma alteração, por menor que seja, na geometria do mundo. Costumo mesmo afirmar em minhas aulas no CBPF que uma definição da palavra existir pode ser obtida a partir da universalidade do campo gravitacional. Com efeito, todo corpo material ou energia sob qualquer forma possui interação gravitacional. Não é possível, assim pelo menos os físicos acreditam, que um corpo material ou energia não produza ou não sinta os efeitos da interação gravitacional. Costumo enfatizar essa propriedade afirmando “caio, logo existo!” Ou seja, tudo-que-existe sente a atração gravitacional.
Pois bem, embora esse absoluto vazio de matéria, energia e qualquer campo de forças, esse espaço-tempo de Minkowski, seja uma idealização, uma abstração associada a uma configuração especial, ele passou a ser entendido como o estado fundamental dessa estrutura unificada, o espaço-tempo. Assim, toda geometria associada a um corpo material (ou energia) ao provocar um processo de interação gravitacional é interpretada como uma perturbação sobre esse estado ideal, absoluto e inobservável: a geometria de Minkowski. (O leitor interessado em detalhes sobre a evolução dessa ideia pode consultar algumas das referências).
A partir da identificação da universalidade da gravitação com a geometria do mundo, imediatamente se classificou que a estrutura idealizada da geometria de Minkowski deveria ser entendida como um acessório, definido por oposição negativa, a partir da ausência do campo gravitacional. Entende-se então porque somente em situações especiais pode-se afirmar esse espaço de Minkowski como real, pois do que vimos acima, ele deveria constituir não uma estrutura base da teoria mas sim um estado-limite, idealizado, realizado somente assintóticamente.
E no entanto, a prática da ordem cientifica inverteu esse processo e passou a tratar o espaço-tempo de Minkowski como ontologicamente mais fundamental e de tal modo a inverter o modo de pensar: o campo gravitacional (abstraindo de sua universal influência) passou a ser entendido como uma perturbação (maior ou menor) desse estado puro, a ausência de matéria e energia sob qualquer forma, ou seja, como um ente matemático transcendental.
Reservatório inesgotável
Assim, o estado do vazio da geometria do mundo passou a ser considerado como uma espécie de fundamento do real. Essa situação se generalizou quando na microfísica deu origem a um modo de pensar tudo-que-existe, as partículas elementares que compõem todo corpo material ou energia, a partir de um estado fundamental que não se identifica com nenhum corpo material nem nenhuma forma de energia conhecida: aquilo que dificilmente um físico dos séculos passados aceitaria atribuir a esse estado a palavra existe.
Uma elaboração matemática permitiu construir no domínio da microfísica um formalismo que representa a matéria — todos os corpos — a partir de um agrupamento interativo de partículas elementares, como se fosse gerada a partir de um estado fundamental contendo zero partículas. Ou seja, tudo que existe, os corpos materiais, nada mais seriam do que perturbações desse estado de vazio, que constitui assim, um verdadeiro reservatório de toda a matéria. O zero passou a ser entendido como o conceito a partir do qual se elaboraria qualquer descrição material do mundo. Devemos reter que não se trata de uma questão linguística, mas sim ontológica, pois esse estado representado pelo zero teria uma realidade e é a partir dele, de perturbações de diferentes formas que tudo-que-existe irrompe no mundo.
E quanto ao infinito?
O horror metafisico do infinito na física do século XX
Em 1968 recebi de meu orientador de tese de mestrado, o físico José Leite Lopes o seguinte tema: examinar os modos de eliminar os infinitos das teorias que descrevem os campos clássicos da física e, em particular, da interação eletromagnética. Nem por um breve momento ele achou necessário satisfazer minha curiosidade e apresentar argumentos que justificassem empreender essa investigação e impulsionar os físicos a se dedicarem à tarefa de eliminar os infinitos de toda teoria física.
Em verdade, ele estava simplesmente fundamentado na aceitação geral da comunidade dos físicos, de que qualquer ciência da natureza não pode admitir como verdadeira uma teoria na qual algum processo possa assumir o valor infinito. Ou seja, o aparecimento do valor infinito em uma situação física é a prova de que a validade dessa teoria se esgota ali. De modo semelhante à atitude dos físicos em relação ao eletromagnetismo, Einstein no começo dos anos cinquenta sugeria que para evitar os infinitos que podem aparecer em certas situações descritas por sua teoria da relatividade geral, as equações dinâmicas dessa teoria deveriam ser alteradas quando a intensidade do campo gravitacional ultrapassasse certo valor, com a única justificativa de que o infinito não é uma quantidade aceitável em uma configuração real. Essa auto-critica de Einstein deveria ter servido para evitar a propagação da ideia superficial e irrealista da proposta de que o universo em que vivemos teria tido um começo singular a um tempo finito de nós. Infelizmente, não foi assim que os físicos trataram o modelo mais comum do universo, o chamado bigbang como veremos a seguir.
No caso do eletromagnetismo o infinito aparece ao examinarmos o campo gerado por uma carga elétrica. Mais grave ainda: esse infinito ocorre continuamente ao longo de sua trajetória. Devemos notar que essa característica não é exclusiva da força eletromagnética, mas igualmente ocorre no outro tipo clássico de forças conhecido, a interação gravitacional. Essa dificuldade admitia duas alternativas: ou se mudava a teoria de Maxwell que descrevia a dinâmica do campo eletromagnético permitindo o aparecimento de processos não-lineares ou então se procurava uma solução no interior dessa teoria capaz de contornar essa dificuldade.
O modo mais simples seria alterar a dinâmica quando a intensidade do campo crescesse acima de um certo valor. Como esse valor muito possivelmente nunca seria atingido por experiências realizadas em laboratórios, essa solução tinha a vantagem de não modificar nada da teoria conhecida e fartamente corroborada pela experimentação ao longo dos tempos. No entanto, havia uma outra possibilidade, menos convencional e que despertou interesse de alguns, como o físico inglês Paul Andre Maria Dirac.
Dirac adquirira notoriedade na comunidade cientifica por seus importantes trabalhos na organização da teoria quântica, e em particular por sua sugestão da existência de anti-matéria, comprovada mais tarde. Ele levantou a suspeita de que o aparecimento do infinito ao longo da trajetória do eletron (em verdade, de qualquer corpo carregado) estava relacionado a certos pré-conceitos causais. Segundo ele, essa dificuldade estaria sendo introduzida pelo modo pelo qual os físicos têm lidado com exemplos práticos da teoria de Maxwell do eletromagnetismo. Para mostrar a coerência e a razoabilidade de seu argumento, elaborou um modo de descrever o movimento convencional do eletron a partir da hipótese de que a ação do campo eletromagnético sobre essa partícula consistia de dois termos, sendo que um deles havia sido negligenciado e desaparecido dessa descrição. Havia o efeito convencional do campo sobre o eletron por influência causal na qual a fonte do campo envia um emissor (fótons) que do passado do eletron o influenciam; mas além dessa ação haveria uma outra que consistiria em fótons carregando mensagens vindas do futuro do eletron. Isso coloca em questão o sacrossanto principio de causalidade. Não é esse o lugar para desenvolver as questões técnicas que envolvem essa proposta de Dirac. O que sim devemos reter é o resultado dela: como em um milagre formal, os infinitos desaparecem. O preço a pagar seria trocar os infinitos e suas dificuldades por uma violação da causalidade clássica.
Se cito brevemente essa formulação é porque quero retirar dela uma consequência que tem permanentemente perseguido os físicos, a saber, para evitar e inibir o aparecimento de infinitos em uma teoria devemos sacrificar alguma forma de apriorismo que tenha sido travestido em lei universal. No caso em questão, dever-se-ia abandonar o princípio causal de que somente ações do passado podem influenciar um corpo. Embora tenhamos cotidianamente e sempre exemplos de que a causalidade local é um princípio bem fundamentado, não podemos ignorar que – como Gödel nos alertou – a estrutura causal global associada ao universo pode não ser uma consequência da causalidade local e vice-versa, ou seja, a causalidade global pode não impor restrição intransponível à estrutura causal local. Antes de passarmos à questão cosmológica, um comentário sobre a representação dos corpos materiais como estruturas altamente localizados.
A delta de Dirac ou a localização extrema
Paul Andre Maria Dirac foi um dos cientistas mais imaginativos do século XX. Depois de formular a versão quântica moderna do eletron, construindo uma teoria que levou à descoberta da anti-matéria, ele se voltou para o exame do modo clássico (isto é, não-quântico) de descrever o eletron. (Esse comentário se aplica a qualquer partícula elementar; se me detenho em especial na partícula eletron é para simplificar minha exposição e porque se trata de uma partícula estável, isto é, que não se transforma expontâneamente em outra).
Todo corpo, toda matéria elementar, o que costumamos chamar uma partícula, é tratado classicamente como um objeto puntiforme, isto é, altamente localizado e praticamente sem dimensão. Isso, claro está, é uma simplificação que a física sempre fez. A questão que nos interessa aqui é menos as propriedades dessa estrutura sem volume, mas sim sua descrição formal; dito de outro modo: como descrever em linguagem matemática uma tal ideia? Como representar um corpo que tem a propriedade de estar localizado em um volume de raio zero?
As dificuldades formais para essa descrição são conhecidas de há muito. O professor Dirac propôs uma nova forma matemática de lidar com esse tipo de configuração, inventando um conceito hibrido, à semelhança de um animal mítico, metade homem, metade cavalo à qual chamou de função- delta. Essa delta é definida pela inesperada propriedade: ela tem o valor zero em todo o espaço exceto em único ponto onde assume o valor infinito. Ou seja, é certamente um conceito matemático esdruxulo. Com efeito, mais tarde se reconheceu que não se tratava propriamente daquilo que os matemáticos consideram ser as propriedades típicas para receber o nome de função, mas sim um caso particular de uma nova figura matemática que veio a receber o nome de distribuição. No entanto, a delta de Dirac serviu para que os físicos exibissem um modo prático e convencional de realizar operações formais capazes de serem aplicadas ao que os físicos chamam de partícula elementar puntiforme. Ou seja, embora o infinito não seja uma figura aceita pelos físicos, ele pode aparecer nos instrumentos formais que usam. Tudo se passa como se o infinito devesse ser colocado sob a proteção de uma configuração matemática de tal forma que ele não apareça em nenhum observável podendo no entanto ter um papel importante nos procedimentos formais intermediários. Dito de outro modo: o infinito é aceito na linguagem formal, mas deve ser banido da experiência realizada em qualquer medida fisica; pode-se falar do infinito, não se pode procurar observá-lo.
Sobre o infinito: o que diz a Cosmologia?
A cosmologia moderna se baseia na teoria da relatividade geral de Einstein que nada mais é do que uma forma especial de descrever a força gravitacional. Antes de examinar a questão do infinito na cosmologia precisamos responder à questão: por que podemos afirmar que uma teoria da gravitação fundamenta uma Cosmologia? Por que somos levados a aceitar que uma modificação da descrição dos fenômenos gravitacionais, isto é, a construção de uma nova teoria da gravitação, permite fundar uma Cosmologia? Por que não podemos dizer, por exemplo, que uma modificação na descrição de fenômenos eletromagnéticos cria uma nova Cosmologia? Por que o conhecimento das forças nucleares não cria uma Cosmologia? Estas questões admitem uma mesma resposta simples mas que, como veremos mais adiante, não as esgota completamente. Vamos aqui tratar somente de uma resposta imediata, deixando para outro lugar uma análise mais completa. Esta resposta simples, vamos encontrá-la na própria caracterização e divisão das forças que existem na natureza. Quantas e quais são as forças que os físicos identificaram no mundo?
Um dos grandes sucessos da Física no século XX foi a unificação de todos os processos, da dinâmica de todos os fenômenos a partir de uma combinação de somente quatro forças fundamentais. Não deixa de ser notável a eficiência demonstrada pelos fisicos na demonstração de que todos os processos do mundo observável que fazem parte de seu território de competência possam ser explicados como conseqüência da luta entre quatro e somente quatro forças fundamentais: eletromagnética, gravitacional, fraca e forte. Há vários modos de distinguir entre estas forças e de classificá-las. Vamos nos limitar aqui a dois modos de classificação que são suficientes para permitir-nos responder à questão que nos interessa. Para realizar essa divisão devemos nos concentrar em duas propriedades: o alcance e as respectivas intensidades destas diferentes forças.
A física anterior ao século XX e que, genericamente se costuma chamar física clássica (querendo, com esta terminologia, explicitar que ela é não-relativista e não-quântica) conhecia somente forças de longo alcance: as forças gravitacionais e as eletromagnéticas. Por esta denotação entende-se que seus efeitos se estendem por todo o espaço conhecido, uma região tão grande que tem-se tendência a afirmar, simplificadamente, que possuem alcance infinito ou melhor, sem limite sensível. Isto é, não há nenhuma evidência de que exista uma distância limite, um raio crítico, para além do qual elas não se fariam sentir, a partir do qual não teriam mais uma ação efetiva sobre os corpos. Além destas duas, no interior da matéria, ao nivel atômico e mesmo mais intimamente, no nível intra-atômico, duas novas forças foram reconhecidas e que receberam os nomes de forças nucleares fraca e forte. A primeira é responsável pela desintegração da matéria e a segunda por sua estabilidade e persistência.
Estas são forças de curto alcance, de dimensões extraordinariamente pequenas, imperceptíveis para nossos sentidos: elas se fazem sentir somente no mundo microscópico, no interior dos átomos. Esta propriedade das forças nucleares está relacionada ao fato de que partículas que intermedeiam essas interações possuem massa diferente de zero. Em verdade, pode-se mostrar que o alcance de uma interação é inversamente proporcional à massa da partícula trocada. Explico-me. Segundo o modo moderno ou melhor, quântico, de interpretar e/ou explicar o fenômeno de interação – aquilo que, tradicionalmente chamávamos de “ força ” entre dois corpos – tudo se passa como se estes corpos trocassem particulas extremamente leves e típicas de cada interação ou força. O caráter misterioso que revestia este conceito “força” foi, assim, substituído pela nova forma encontrada para descrever a interação: a troca de um número de agentes ativos, os “ emissários da interação” ou os quanta, isto é, os grãos de energia da correspondente “ força” . Embora isso possa parecer para os não-fisicos como sendo igualmente misterioso, devemos reconhecer que foi um progresso na descrição de como se dá efetivamente a interação, ao se visualizar, através desta troca energética dos quanta da respectiva interação, o efeito da ação de uma força sobre um dado corpo. Nós voltaremos a essa questão mais adiante.
Uma tal construção nos levaria a esperar, por exemplo, que o fóton, o encarregado de transmitir a interação eletromagnética, tenha massa nula. Quanto à gravitação a situação é um pouco mais complexa. Em um primeiro momento, e de modo simplista, poderíamos afirmar que, dado ao seu caráter de força de longo alcance, como a eletromagnética, os responsáveis grãos elementares (que chamamos de “ grávitons”) também deveriam ter massa nula. Essa questão, no entanto, deve ser examinada mais cuidadosamente, e deixaremos para fazê-lo em outro lugar. Do que vimos, podemos fazer o seguinte quadro representativo desta hierarquia: as forças eletromagnéticas e gravitacionais são de longo alcance; as forças nuclear forte e nuclear fraca são de curto alcance.
Um outro modo de caracterizar e de realizar um ordenamento entre estas forças pode ser feito através da utilização do conceito de intensidade. Em situações semelhantes estas forças produzem como resultado de suas respectivas ações, respostas distintas. É possível identificá-las através de certas constantes fundamentais que constituem a impressão digital de cada uma delas. Para cada força existe um correspondente valor da constante que determina a diferença de suas intensidades. Usando este critério pode-se colocar uma segunda ordem hierárquica que, começando pela mais forte, é representada pela sequência: nuclear forte- nuclear fraca- eletromagnética- gravitacional. Reconhecemos assim que a força gravitacional é a mais fraca interação conhecida. Só para dar uma idéia desta diferença: entre duas particulas de mesma carga e mesma massa – por exemplo, dois eletrons – a força gravitacional é, aproximadamente, da ordem de 10-40 vezes mais fraca que a eletromagnética. E, se é assim, por que então ao tratarmos da questão cosmológica, é através dela que começamos nossa análise, é a partir dela que estruturamos um modelo cosmológico? Por que podemos afirmar que uma nova teoria da gravitação funda uma Cosmologia? A resposta vem das propriedades destas forças. Vimos que as forças nucleares são de curto alcance, da ordem das dimensões do átomo. É razoável aceitar que, qualquer que seja a definição de cosmologia que consideremos, ela deve tratar de grandes dimensões de espaço e de tempo. Assim, forças localizadas certamente não deveriam desempenhar papel importante ao longo de sua história.
Sobram as duas forças de longo alcance. O eletromagnetismo tem a propriedade de admitir forças de sinais opostos, isto é, ela pode ser atrativa ou repulsiva, dependendo das caracteristicas dos corpos que interajam segundo esse modo. Em um universo composto de corpos neutros, como átomos e radiação, as diferentes ações eletromagnéticas se cancelam, eliminando qualquer papel importante que esta força poderia desempenhar, pelo menos em condições convencionais, no universo. A força gravitacional é a mais fraca de todas mas é universal, isto é, tudo que existe sente a força gravitacional. Não existe nenhum corpo material ou energia que não seja influenciada por um campo gravitacional – nem mesmo a própria energia gravitacional. Ademais ela tem uma outra propriedade notável que é a chave para entendermos a questão que colocamos: é somente atrativa. Isto é, não existe repulsão gravitacional. Em outros termos, não existe massa negativa na natureza. Assim, mesmo sendo a mais fraca, essas duas propriedades – universalidade e atração sempre positiva – determinam a importância maior da força gravitacional sobre as demais, quando se trata de pensar grandes porções de espaço-tempo ou até mesmo a totalidade do mundo que chamamos Universo. Torna-se então compreensível a afirmação de que uma teoria da gravitação funda uma cosmologia.
A questão do infinito no espaço e no tempo
Vamos separar duas questões (somente para simplificar nossa análise) – embora isso seja feito artificialmente como os cosmólogos fazem em geral para efeitos de simplificação formal e descrevamos o universo à moda newtoniana separando espaço tri-dimensional e tempo. Assim podemos tratar separadamente dos dois infinitos. O espaço tridimensional pode exibir uma estrutura finita ou infinita; e, de modo independente, mas complementar, a duração desse universo pode ser finita ou infinita.
O espaço é finito ou infinito?
Eternidade estática.
Para impedir a evolução, Einstein produz um modelo de universo fora do tempo. Sem dinâmica. Fora da engrenagem do movimento. Estático. Eterno. Um universo finito mas ilimitado. Altera a topologia euclidiana, plana, sem contorções que os físicos haviam aceito desde o estabelecimento da física newtoniana e encontra na topologia uma forma matemática para descrever um universo estático, independente do tempo, contendo planetas, estrelas, galáxias separadas dinamicamente umas das outras, sem que haja nenhuma interação entre esses componentes desse mundo. Trata-se, como se pode perceber, de uma idealização, não diz respeito ao nosso universo.
Criação finita no tempo, infinitude no espaço: modelo do big-bang
O cientista russo Friedmann elaborou um cenário mais realista de um universo dinâmico. É dele que quero tratar. Nesse modelo o universo é representado como tendo origem há um tempo finito no qual tudo-que-existe estaria concentrado em uma região singular, que é um eufemismo para substituir uma completa ignorância sobre o que ela significa.Embora tenhamos visto que os físicos têm um verdadeiro pavor por teorias que permitam o aparecimento do infinito, uma atitude oposta apareceu a partir dos anos 1970 no contexto da cosmologia. Não vou me alongar aqui nessa descrição, encaminhando o leitor interessado aos livros citados na bibliografia. Cito somente, uma situação onde o comportamento da comunidade dos cientistas vai em oposição a tudo que vimos ocorrer quanto à atitude dos cientistas face ao infinito e que seria interessante de ser examinada com mais detalhes, mas não aqui.
Nesse modelo, tudo-que-existe, toda a matéria e energia teria aparecido em um momento singular onde todas as quantidades físicas relevantes, como a densidade total de energia existente, teria assumido o inaceitável valor infinito. Ao serem perguntados por Fred Hoyle como, abandonando a tradição do horror ao infinito que permeia toda a física, eles aceitaram pacificamente a existência de um infinito naquela situação mais fundamental, a própria origem desse universo associada à presença desse começo irracional ao invés, por exemplo, da proposta de criação continua de matéria que ele, Hoyle, advogava, a maioria dos cientistas respondeu que é certamente menos desagradável conviver com a ideia de que toda a matéria tenha sido criada em um único momento do que a alternativa segundo a qual ela estaria sendo criada de modo continuo ou até mesmo, mais limitada, em diversos momentos especiais. Ou seja, nesse caso, os físicos preferiram aceitar a ideia de que a origem do universo poderia ser associada a um momento mágico, único, distinto de todos os demais momentos no qual se teria dado sua criação. Aí e somente aí se pode aceitar a aparição única e inacessível do infinito. Essa disposição a uma tal crença encontra-se igualmente em todos os mitos cosmogônicos de criação que as diversas civilizações construíram .
Eternidade dinâmica
A partir do final dos anos 1970 cenários cosmológicos representando universos sem singularidade inicial foram elaborados. Um modelo típico exibe aquilo que os cosmólogos chamam de bouncing significando eternidade para trás e eternidade para frente. Isto é, enquanto o modelo bigbang descreve um universo que inicia um processo de expansão de todo seu volume espacial, no modelo com bouncing o universo possui uma fase de colapso anterior na qual a totalidade do volume diminui com o tempo cósmico, atinge um valor mínimo diferente de zero e passa a seguir a uma fase de expansão que é identificada à atual expansão do universo.
O modelo de um universo com bouncing elimina a dificuldade associada a uma singularidade que se caracteriza pelo valor infinito que algumas de suas variáveis associadas à matéria (como a densidade total de energia existente no universo) poderia assumir a um tempo finito em nosso passado. Isso é feito estendendo o tempo de existência desse universo que então não teria um começo em um tempo finito. Ou seja, podemos prolongar a história do universo por um tempo infinito no passado. Estaríamos assim trocando um infinito espacial por um infinito temporal. Haveria a possibilidade de entender por que então um processo de colapso teria se iniciado? Sim é possível produzir uma explicação para isso.
Infinito temporal: a eternidade de Godel e as atribulações causais da teoria da relatividade geral
Vimos a questão do infinito espacial. Comentamos também a possibilidade do universo ter uma existência em um tempo ilimitado no passado, ou seja, infinito. Mas há uma outra possibilidade que os físicos criaram e que envolve a noção que podemos chamar infinito causal ou com mais propriedade infinito não-causal. O que devemos entender por isso?
Para mostrar sua amizade a Einstein e seu enorme respeito pela sua obra, em uma conferência em 1949 o lógico Kurt Godel enveredou por um caminho para além de suas contribuições usuais e nos ofereceu uma belíssima síntese dos efeitos atribulados que a teoria da gravitação como descrita na relatividade geral provoca sobre o tempo.
Godel construiu no interior dessa teoria uma configuração inusitada e extremamente difícil de ser entendida e mais ainda de ser aceita pelos fisicos: a possibilidade de existir, em algum lugar em nosso universo, uma curva capaz de se contorcer temporalmente sobre si mesmo. Essas curvas chamadas genericamente pela sigla CTC (tirada da expressão inglesa closed time-like curves), permite a um viajante cósmico passar pelo menos duas vezes pelo mesmo ponto na estrutura espaço-tempo gerada por corpos em rotação. E, logo podemos concluir, pode retornar inúmeras vezes a esse mesmo ponto no espaço-tempo.
Assim, um caminhante etéreo que tivesse sua trajetória controlada por essas curvas godelianas, poderia reproduzir a eternidade a que o mito se refere. Seria sua sorte igualmente trágica, mesmo sem ter-lhe associado um castigo divino? Essa eternidade que não se esgota e que parece se identificar a um sonho não pode ser entendida como um pesadelo, mas dele não podemos escapar.
Esses caminhos colocam de imediato uma dificuldade à qual não se pode dar as costas, não pode ser ignorada. Seria possível, nesse retorno ao mesmo ponto espaço-temporal alterar um evento que ali ocorreu? Não estaríamos assim trazendo à tona uma questão de princípio e que fundamenta todo e qualquer discurso sobre a ordem do mundo?
Pois essa é a questão que devemos enfrentar. E se não tivermos condições para apresentarmos uma resposta que seja entendida como adequada e satisfatória, deveríamos ao menos limitar as consequências desse fracasso. Para evitar essas dificuldades, os físicos em sua grande maioria, aceitaram o ponto de vista simplista de que as curvas de Godel são somente fantasias matemáticas associadas a uma teoria da gravitação e que não possuem realidade em nosso universo. Um dos físicos mais mediáticos, S. Hawking, enfatizando essa posição conservadora da comunidade dos físicos, ousou apresentar como argumento contra a possibilidade de viagens não convencionais a sentença: “afinal, não vemos muitos turistas vindos do futuro passeando por aqui, não é mesmo?” Ou seja, adotou a solução da Rainha de Vermelho de Alice no país das maravilhas: “vamos mudar de assunto!”
Nesse ponto, talvez fosse conveniente para evitar atritos maiores fingirmos adotar a atitude da maioria dos físicos e com uma voz bem baixa apenas audível – mas gritante em nossas ações e em nosso intimo– adaptar a famosa frase de Galileu para acrescentar, ao nos referirmos a essas curvas de Gödel, aceitando essa simplificação conservadora que as rejeita e até mesmo inibe sua análise ulterior, sussurrar …”e no entanto, elas existem…”.
Causalidade local e global
Em verdade, devemos distinguir dois aspectos da questão causal e que pode fazer-nos entender que a visão newtoniana convencional de que “só podemos caminhar para o futuro” envolve o que entendemos por causalidade local. Uma outra estrutura, envolvendo o comportamento do universo em larga escala, consiste na causalidade global.
Embora os caminhos CTC de Godel geram uma dificuldade causal, podemos dizer que ela é limitada, ou seja, não produz uma anomalia causal completa. Isso porque localmente, em cada ponto de nossa vizinhança, tudo se passa como se a causalidade convencional, newtoniana, da física clássica, fosse preservada. É globalmente que as dificuldades causais aparecem. Isso se deve porque causalidade global é uma característica do espaço-tempo, associada àquilo que os matemáticos chamam de topologia e pode ou não coincidir com a estrutura causal local. Estamos acostumados a reconhecer uma impossibilidade de violação causal em nossa vizinhança. No entanto não podemos negociar a estrutura causal global pois a física ainda não conseguiu entender os possíveis modos de selecionar dentre as infinitas possibilidades uma topologia para o universo em que vivemos.
Isso se deve ao reconhecimento de que os físicos não conseguiram associar a topologia do universo a alguma interação conhecida. Por exemplo, a teoria da relatividade geral que propõe descrever os processos de interações gravitacionais e que determina a geometria do espaço-tempo, não tem muito a dizer sobre propriedades globais do universo. Isso permite imaginar ser possível existir uma estrutura causal regular em nossa vizinhança e no entanto caminhos tipo CTC, violando a separação apriorística de passado e futuro, possam existir em escala cósmica.
Do ponto de vista prático pareceria que os viajantes que podem reconhecer essas propriedades estriam hibernando em uma repetição interminável e repetindo os mesmos gestos e efeitos. Repousam, poderíamos dizer, para que Chronos possa ditar as normas e regras a serem obedecidas e com as quais construiu-se a civilização moderna.
E no entanto, esses caminhos CTC colocam uma questão à qual não se pode dar as costas, não pode ser ignorada. Seria possível, nesse retorno ao mesmo ponto espaço-temporal alterar um evento que ali ocorreu? Essa repetição indefinida que apontamos acima poderia ser alterada? Uma tal situação traz à tona uma questão de princípio e que fundamenta todo e qualquer discurso sobre a ordem do mundo.
Na natureza reconhecemos que tudo aquilo que não for proibido de acontecer, acontece. Assim, enquanto a teoria da relatividade geral continuar sendo o paradigma de construção de uma explicação dos fenômenos gravitacionais não podemos deixar de afirmar que esses caminhos CTC, possíveis de existirem em nosso universo, contribuem de modo muito especial e singular para que o incluamos na lista de processos que não tem fim, em uma análise dos diversos modos de aparecimento do infinito.
U-topia e U-chronos
A motivação para introduzir em uma conversa sobre o infinito, estruturas que estão fora do espaço (utopos) e fora do tempo (uchronos) é para enfatizar que todo o uso do infinito na física passa por situações envolvendo não somente aquilo que é entendido como um fato fisico mas especialmente a arena desses fenômenos, o território onde no espaço e no tempo eles são descritos.
É possível imaginar um universo onde o “tempo não passa” isto é, um universo sem dinâmica, estático, fora da contabilidade temporal. Pura configuração espacial congelada no tempo ou mais rigorosamente, sem referência temporal. Esse foi precisamente o modelo inventado por Einstein para obter a primeira aplicação cosmológica de sua teoria da relatividade geral.
No entanto de natureza bastante diferente e mais difícil consiste a tarefa de imaginar uma configuração fora do espaço, mesmo que não lhe imponhamos nenhuma restrição temporal. Isso significa que, de fato, pensamos a descrição do tempo intimamente dependente do espaço. Como diz JM Salim, o tempo descrito na física moderna nada mais é do que um disfarce de uma configuração espacial. Pode ser diferente? O filósofo Henri Bergson propôs uma alternativa (ver in JM Salim ou H Bergson). No entanto, por várias razões, os físicos não a levaram seriamente em conta, embora aqui e ali alguns comentários sobre a critica bergsoniana ao uso da forma newton-einsteniana do tempo tenha aparecido.
A separação espaço e tempo não pode ser completada enquanto as bases da ênfase local que funda a geometria permanecerem. Isso porque a construção na física dessas configurações espaço-tempo são realizadas no interior da visão einsteiniana de que a geometria do mundo deve ser identificada com os processos gravitacionais. Mesmo sem reconhecer essa limitação, vários cientistas, inclusive Einstein, se lançaram à tarefa de incluir outras forças na constituição da geometria. As razões para essas tentativas são várias, mas creio que podemos unifica-las somente com uma motivação maior: a hipótese apriorística da unidade do mundo.
Da análise de Lautman que comentei acima retiro a certeza de que existe uma solidariedade conciliadora dos diferentes níveis envolvendo tudo-que-existe. Isso não pode ser entendido como gerando uma necessidade ou obrigatoriedade formal de exibir uma unidade no mundo, a menos que a consideremos como uma ideia conveniente e simplificadora. E por que? Creio que o melhor modo de entender essa dificuldade é apresentar um exemplo de como poderia ser diferente e para isso, devemos abandonar a visão estritamente local da construção de uma geometria que privilegia uma visão atomística a partir de propriedades locais.
Antes um pequeno desvio para fixar o contexto de meus comentários. Alguns físicos, que se autoproclamam idealistas argumentam, como por exemplo Roger Penrose, que o trabalho de Einstein ao erigir sua teoria da relatividade geral revelou algo que já estava presente. Segundo ele Einstein não teria somente descoberto como descrever uma parte da física, a teoria da gravitação, mas mais fundamental: teria revelado a natureza do espaço-tempo. Creio que essa afirmativa não é somente idealista – o que não seria um grande pecado — mas ela é perniciosa para a evolução de nossos conceitos sobre o mundo, como o exemplo a seguir poderá esclarecer.
Unicidade do espaço, unicidade do tempo
A física clássica, a partir de Newton, estruturou a arena onde os fenômenos ocorrem a partir da ideia universal de que existe um espaço absoluto e um tempo absoluto. Essas duas configurações são apriori e não podem dar origem a uma análise que destrua esse caráter. Essa hipótese não criou nenhuma grande dificuldade prática entre os físicos embora um certo desconforto pudesse ocorrer em algumas situações especiais. De qualquer modo, ela consistia em uma poderosa e útil hipótese de trabalho, mesmo que se tenham empenhado em várias ocasiões em negar que essa arena pudesse aceitar outra configuração, o que faz-nos entender a boutade, hipothesis non fingo.
Multiplicidade do tempo (uma para cada corpo)
No começo do século XX a partir de uma série de avanços notáveis realizados por Poincaré, Fitzgerald, Lorentz, Einstein e outros, sobre a dinâmica dos corpos em movimento, surgiu a proposta de associar a cada observador um tempo próprio. Isso implicava um afastamento das noções newtonianas de espaço absoluto e tempo absoluto a partir da hipótese de que diferentes observadores em repouso ou em movimento uniforme uns em relação aos outros, possuem uma lei especial de correlações entre esses tempos, determinada pelo que se chamou as transformações de Lorentz. A aceitação dessa multiplicidade temporal pelos físicos só foi possível porque ela veio travestida da solução da incompatibilidade de duas teorias físicas solidamente estruturadas, no campo da dinâmica dos corpos materiais e na propagação da radiação eletromagnética. Os físicos só aceitaram aprofundar o conceito newtoniano do tempo porque conseguiu-se operacionalizar esses tempos através de uma ordem construída pela comparação de relógios espalhados entre diferentes observadores. Foi a solução daquela incompatibilidade a razão para a aceitação dessa mudança radical na configuração temporal da física newtoniana. O resultado final foi a criação de uma nova estrutura absoluta, o espaço-tempo que culminou com a síntese einsteiniana na teoria da relatividade especial. As antigas configurações espaço absoluto e tempo absoluto foram diluídas e transformadas na unidade absoluta espaço-tempo que passou a ser o novo fundamento apriori com a mesma propriedade fundamental de não ser ulteriormente desintegrado.
Podemos simplificadamente reter que a relatividade especial fundamentou a hipótese de que cada corpo material, cada observador possui um tempo próprio, individual que lhe caracteriza. Perdeu-se o contexto comum que unia todos os corpos materiais através dessa profusão de tempos. O espaço, associado a cada observador através dessa particularização temporal, seguiu a mesma sorte.
Retorno à unificação: a geometria única
Essa perda de um território comum, de uma unidade que poderia servir como uma realidade comum a todos, foi compensada quando na década seguinte, a construção da teoria da Relatividade Geral produziu uma nova unidade, a partir da hipótese de que um espaço-tempo comum a todos os observadores poderia ser construído ao aceitarmos a existência de uma mesma e única geometria. Essa geometria variável, dependente dos corpos materiais e energia sob qualquer forma, mudaria de ponto a ponto mas deveria ser identificada ao campo de forças da gravitação.
Pois bem, estamos chegando ao momento em que a liberação dessa submissão à unicidade da geometria parece ser a condição necessária para irmos além da limitação desse espaço universal comum e darmos um novo passo na desconstrução do absolutismo sub-repticiamente instalado nos fundamentos da relatividade geral.
Multiplicidade de geometrias (uma para cada corpo)
Esse novo passo retém memória dos dois grandes movimentos que comentei acima, a relatividade especial e a relatividade geral. Da primeira extraímos a individualidade de cada observador ou corpo material; e da segunda herdamos a possibilidade de utilizar a estrutura da geometria para empreender uma nova operação.
Na base dessa conjectura encontramos a hipótese de que cada observador, cada corpo material, carrega consigo uma sua geometria especificada pela totalidade das interações que atuam sobre ele. Assim como na relatividade especial, cada observador carregava um seu tempo próprio, aqui se dá um passo além e se institui ou melhor se associa a cada observador uma geometria. A partir do reconhecimento desse emaranhado de geometrias, que tipo de ordem espaço-temporal pode ser construída?
Aqui devemos uma vez mais nos reportar a Lautman e sua proposta de entender a conciliação entre o local e o global a partir da hipótese da construção de solidariedade. No entanto, como esse texto está se tornando muito técnico, isso me impõe que ele deve parar aqui. Se deixei-me comentar essas questões foi para enfatizar a dualidade local-global que persiste em toda consideração sobre a arena do mundo. Em outro lugar nesse livro irei comentar com detalhes como aparecem essas múltiplas geometrias que são associadas a cada corpo.
Conclusão ou as fronteiras incertas do infinito
Infinito, literalmente in finito, o que não tem fim, é o inacabado. Aquilo que não terminou, não pode terminar, o que persiste e continua — como essa nossa análise, onde apenas começamos um diálogo. Não deve provocar incômodo nem insatisfação se não conseguimos completar os detalhes da tarefa que nos propusemos. Faz parte de nosso tema. Todo final de um discurso é abrupto embora algumas vezes ele tenha uma aparência tranquila por ter alcançado uma síntese e encerrado um capitulo. Somente ilusão, espaço para ganhar fôlego e voltar mais adiante ao mesmo tema.
Nesse caminho para entender as múltiplas faces do infinito, espero ter conseguido estimular algumas ideias ao comentar olhares distintos da física, da matemática e da cosmologia. Minha formação de físico e cosmólogo foi a principal responsável pela escolha dos atalhos que percorremos. E dessa nossa conversa, dessa proposta de diálogo, o que devemos reter?
Sem pretender empreender um balanço exaustivo para exibir até onde conseguimos penetrar, podemos ainda que superficialmente, revisitar esses caminhos percorridos.
Em verdade eu estaria satisfeito e com missão cumprida se pudesse me identificar com um personagem de um romance que narra as peripécias de um viajante que foi acolhido nessa casa e a quem se pediu para contar uma história sobre o infinito. Ele escolheu relembrar passagens conhecidas de enredo conhecido, para não causar surpresas, mas fazendo isso de um modo especial, com uma ênfase particular, própria, uma história articulada entre diferentes saberes e, se fosse possível, cheia de sentidos novos — enquanto uma tempestade lhe impede de ir embora e reencontrar seus companheiros de estrada.
Por isso tentei seguir sempre que possível, caminhos convencionais. A razão é que como este não é o lugar para considerações técnicas exclusivas de um saber matemático, procurei adaptar minha narração a conceitos usuais, universais, com os quais lidamos com frequência independentemente de um conhecimento especifico. Embora consegui seguir essa estratégia em quase toda minha análise, não me foi possível evitar deparar com uma surpresa, uma exceção, vinda de um personagem que me impôs um roteiro inesperado: Cantor.
Certamente quando ele entra em cena não podemos ficar insensíveis. O que diz a física, a cosmologia, a ciência em geral, produz admiração, respeito e algumas vezes, encantamento e alegria. Mas nada se compara às propostas de Cantor. O que ele nos diz, o que ele sugere em sua chegada ao inexplorado domínio dos transfinitos, é mais do que ser-nos dado a conhecer os territórios dos deuses, sejam eles os encantados cenários celestes de Zeus, sejam as lúgubres regiões dos infernos de Plutão (Hades).
Lautman critica Russel e Whitehead por quererem atomizar a matemática e retirar-lhe sua componente histórica. A historicidade do cosmos é de outra natureza? O capítulo anterior, de aparência fantasiosa é uma tentativa de mostrar como a atitude extremamente negativa dos físicos em relação ao infinito pode ser um simples instrumento de dominação de um pensamento que se pretende manter e impedir outras interpretações de processos em situações limite que exigem a mudança de paradigma.
Como entender a relação do infinito no mundo? Os físicos criaram teorias e leis que contém inexoravelmente infinitos em suas descrições. Usa-se elaborados artifícios para evitá-los e as próprias leis da física são alteradas para isso. Esse empenho hercúleo mostra o desconforto que ele provoca em todo modo de descrição dos fenômenos que se identifica com a realidade. Isso nada mais é do que a impossibilidade de obter em um processo de medida, com qualquer instrumento real, um número que não seja finito. Assim, nenhum observável pode representar esse estado infinito e como o infinito não é o que segue de uma observação de um aparelho de medida ele deve ser jogado fora, atirado para além das descrições cientificas; ou, no máximo, aceitá-lo como uma estrutura assintótica, isto é, um estado inalcançável, impossível de ser explorado. Poderia ser diferente?
Em alguns importantes e singulares momentos na história da física do século XX os positivistas tiveram que aceitar que investigações consideradas de natureza metafisica fossem empreendidas no interior de sua ciência. Um exemplo notável é a teoria quântica e sua incompreensível dependência ao princípio de incerteza de Heisenberg.
Para isso no entanto, para que a análise metafisica pudesse estar presente até o momento no qual a teoria quântica fosse efetivamente aceita, mesmo que provisoriamente, foi necessário exibir uma eficiente instrumentalização desses conceitos metafísicos permitindo a presença de representações materialistas incidindo no real. Ou seja, conseguir, a partir desses conceitos, construir uma explicação convincente gerando previsões e resultados capazes de serem observados.
Podemos então conjecturar que uma sorte semelhante esperaria o infinito? Para que ele não seja banido pelos físicos e possa entrar pela porta da frente no templo da ciência, deverá ele estar associado a uma instrumentalização que permita realizar operações convencionais, nem que seja uma álgebra especial negociando relações entre observáveis?
Não é possível, nesse momento, fazer previsões sobre se e quando isso ocorrerá. No entanto, podemos aceitar que qualquer linguagem que permita ao infinito se tornar um conceito utilizável e prático, deverá estar intimamente ligada às propriedades dos transfinitos. Ou seja — e essa é minha única certeza nesse território — somente através de Cantor podemos empreender esse formidável e singular salto.