Sobre “Nietzsche: para lutar contra o cansaço da vida”
Embora a sociedade neoliberal evidencie um cansaço próprio, conforme nomeou Chul Han[1], Nietzsche coloca essa questão em perspectiva mais ampla, pois este cansaço pode ser visto ao longo da civilização ocidental com o triunfo do que ele chamou de niilismo: negação deste mundo em prol de um outro – um ideal, superior, valoroso, verdadeiro que coloca este mundo sempre em inferioridade, portanto, o niilismo significa um dizer não à vida. E isso é fonte profunda de sofrimento porque o homem é incapaz de atingir esse ideal – ideal do desempenho, do sucesso, da felicidade sem limites. A vida é rejeitada em nome de uma falsa realidade. “É um profundo desgosto pela realidade, pela natureza que se torna condenável. É a vida contra a vida” (Nietzsche, 1998b, III, 11-13).
O homem niilista é aquele que deseja ser outro, de estar em outro lugar; é o homem permanentemente frustrado, angustiado e infeliz; é o homem descontente – descontente consigo mesmo e com a vida: “o homem como animal doente” (idem). Um homem inapto para a vida e para a felicidade e como que por contágio, todos os homens passam a se sentir assim – mesmo resistindo, não se consegue de todo não ser inoculado por esse veneno e os sadios acabam por se tornar também doentes.
A filosofia de Nietzsche é então um combate sem trégua ao niilismo. É uma filosofia da potência para dizer ao homem que ele deve se nutrir ao máximo de força para desejar a vida em si e não para se socorrer em um ideal. Embora a doutrina de outro mundo, outra realidade seja bastante sedutora, Nietzsche que não se deve ceder a esse apelo, mesmo diante da miséria, da doença e da fome. Devemos, mesmo diante da adversidade, nos mantermos eretos.
Ou seja, há em toda a história do pensamento ocidental um domínio idealista que colocou o homem em um estado de fraqueza, de cansaço e é preciso reverter isso.
Por que o homem busca o niilismo? Um autor chamado Nicolas Grimaldi (2006), a partir de uma inspiração claramente psicanalista, diz que duas dores o homem tenta permanentemente apaziguar: a estranheza frente ao mundo e o fracasso do desejo. A primeira dessas dores Grimaldi Chama de negatividade – porque o mundo parece a todo instante desmentir o que enuncia – o problema do devir sempre confunde o homem: quando ele começa a se acostumar com algo, é desmentida ou negada sua realidade. Toda alma sente tonturas diante da fugacidade do mundo, de sua mudança, do desaparecimento de tudo o que aparece. O homem, pois, não quer viver em um mundo que se desmente o tempo todo, que lhe é difícil, então repudia esse mundo, o desvaloriza como uma sombra ou uma aparência.
A segunda dor é a melancolia, uma vez que o desejo humano jamais é satisfeito – se você o satisfaz você tem a sensação de que não era tão desejável assim. Poder, amor, prazeres, tudo se transforma em desdém. Ou, nas palavras de Platão, “a disposição para saciar desejos é um mal infindável” (2000, 507 e). Então o desejo impossibilitaria toda realização, plenitude ou felicidade e daí Nietzsche dizer que Sócrates teve que esconder esse pessimismo fundamental.
Há uma enfermidade originária da alma que a faz sempre incompleta produzindo uma expectativa indefinidamente adiada, o que nos leva à melancolia.
E a ideia central do niilismo, a ideia de verdade, viria como uma espécie de cura tanto da negatividade quanto da melancolia, porque a alma virtuosa, idealmente virtuosa é a alma não desejosa – na tradição niilista o discurso moral se torna a cura contra a melancolia.
Isso é o que Grimaldi chamou de feitiçaria socrática – o homem se sente arrebatado, mesmo que em estado de delírio ou de ilusão. O homem enfeitiçado pela saída socrática, pela saída que inaugura o niilismo na história, acredita no artificialismo que lhe tiraria essas duas dores e acredita tanto nessa saída que esquece que é apenas um artificialismo.
A filosofia de Nietzsche traz um mundo de contraste com esse. O mundo socrático se opõe ao mundo da tragédia e da embriaguez dionisíaca. A saída socrática passa pela moralidade e pela racionalidade que prometem ao homem escapar do perigo e da decadência, mas para Nietzsche isso não é uma saída, uma salvação e sim uma enfermidade.
A vida é desmedidamente pródiga, indiferente, sem intenção, consideração, justiça ou misericórdia e o homem do conhecimento é aquele que vive uma falsificação, uma simplificação. O mundo é uma imensidão de força que não se consome, só se transforma – não há fastio ou cansaço. Ele é de imutável grandeza, criando e destruindo a si mesmo eternamente. Essa visão da vida é insuportável ao homem comum e por isso o homem do niilismo é o homem do autoengano. Para ele, a felicidade será alcançada pela unidade, pela verdade, pelo distanciamento das contradições, das ambiguidades, das incertezas. O mundo, tal como se apresenta, é negado porque ele não possibilitaria ao homem as condições de sua felicidade e por isso aqui sempre o que haverá é uma espécie cansada, sofredora e improdutiva. Em outro e melhor mundo haverá repouso, segurança, coerência.
O homem deseja encobrir os terrores da existência, da ordem perturbadora, a irracionalidade dos acontecimentos, do fundo enigmático e aniquilador da existência e sentencia: “a vida não vale nada”. É um cansaço sem fim: somos fracos, enfermos, eternamente fatigados. Então, a vida é negada, é preciso se afastar dela, e para Nietzsche isso é expressão do declínio humano, signo de sua fraqueza, signo de sua escravidão. Ao invés de se voltar às solidões ilusórias, Nietzsche nos convida a se debruçar sobre a infinita prodigalidade da vida que será sempre mais labiríntica, mais enigmática, mais ambígua e misteriosa do que o compreender humano.
O niilismo impede que outras forças da vida se tornem visíveis, forças que podem se compor com a grandiosidade e potência da vida, que podem reanimar e a iluminar – eis o que Nietzsche chama de filosofia do futuro: o que traz o gosto para a alegria e para a inocência. Quando nos permitimos pausar as regra, pausar os sonhos de eternidade, perder do horizonte a idealidade, quando flutuamos, quando nos compomos com os movimentos, somos o homem anti-vulgar e podemos ter uma experiencia rara de vida. Porque a vida é abismo que se abre, é ausência de ordem, é divisão de forma, é criação do novo e realização do inesperado. O filósofo do futuro é aquele que mantem a alma alegre e que expressa uma tenaz vontade de saúde.
Até hoje a vida teria se desenvolvido ao mínimo, de modo estrito, carente, insuficiente. A filosofia o futuro anuncia uma nova vida em que não se odeia – se compreende, fazendo desaparecer o homem triste, culpado e perdido.
É difícil dizer isso, mas Nietzsche compreende o valor do ilógico, das contradições como poderes que estimulam a vida. É preciso ter um olhar de coragem frente ao mundo, jogar-se no pensamento no que ele tem de mais desconcertante, na sua paixão mais tormentosa.
É preciso abandonar dois sentimentos que destroem o homem: o ressentimento (a culpa é sua) e a má consciência (a culpa é minha). O homem deve deixar de estar ressentido consigo mesmo porque nada é pior do que esse dilaceramento interno que o esgota, impedindo que ele viva com a leveza de um dançarino. A má consciência traz a vontade do sujeito de se torturar, acuar-se dentro de si mesmo em um suplício eterno, eterno culpado, um ser desprezível que não vê saída nessa ideia fixa. Mas o homem que cria, que colhe, que festeja e que dança é o homem que sai da má consciência e da ressentimento e chega à inocência. A vida em inocência: “Ninguém é responsável por existir, por estar constituído de tal ou tal maneira, por se encontrar nestas circunstâncias e neste meio” (Nietzsche, 1988, p. 53).
Nem os arrependimentos, nem os remorsos têm espaço ou sentido. É a doutrina do amor fato – nada desejar além do que é; amar tudo o que existe. Só se é sereno quando se se liberta dos remorsos do passado e da hesitação frente ao futuro. A inocência é o esquecimento, o novo começo, o afirmativo dizer sim que renova todos os critérios, estabelecendo uma existência sempre nova.
Uma filosofia que resiste à servidão, ao intolerável, à vergonha, à morte. Você se filia à força ou à fraqueza? Você é perpassado por um ímpeto de atividade, de criação ou de reatividade, de conservação? Que tipo de existência é a sua? Ela te permite conquistar o que na vida?
A vida deve ser pensada como vontade de potência. E o que significa isso? Ela deve ser uma elevação de si mesma, a busca do excesso, uma potencialização que não se extingue, um constante devir. Uma vontade não de ter poder, mas de expressar-se mais, afirmar-se mais. Não se contentar com o que é, mas sempre ir em busca da expansão. Uma afirmação para o querer o que ainda não é, um impulso sempre mais alto, mais crescente.
E para isso a arte é a tarefa suprema da vida. O regresso à arte é o regresso à vida. A arte, a inspiração artista, por mais paradoxal que isso possa parecer, liberta o sujeito das ficções, posto que ao invés de encaminha-lo para o modelo ideal, para o niilismo, o encaminha para o estimulante da vontade de potência, para descobrir e inventar novas possibilidades de vida, ideias e impressões antes insuspeitáveis. Os artistas não veem as coisas como são, mas as veem de modo mais pleno, mais forte e para isso é preciso “uma espécie de juventude e primavera eternas, uma embriaguez habitual na vida” (2008a, 851).
Então, como lutamos contra o cansaço da vida? Diz Nietzsche que a tarefa do filósofo é ser médico da civilização porque ele traz a eliminação de tudo o que é superfluidade, resto e morte – tudo o que alimenta o apequenamento e a mediocridade. A partir dessa medicina devemos estar prontos para uma excitação, uma inquietude, um movimento avassalador que vai levando tudo, fazendo o sujeito experimentar uma agitação apaixonada, um arrebatamento e uma alegria.
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[1] A esse respeito ver Bruno, Flavia. Qual a distopia de hoje?. Rio de Janeiro: Z edições, 2023.