Sobre “Entre Física e Filosofia” (1988)
Em homenagem aos 80 anos de Mario Novello
I. Introdução
Em 1o de Outubro de 1988, o jornal Folha de São Paulo publicou uma edição de seu caderno de cultura, à época chamado Folhetim, sob o título geral “Do Universo da Física”, contendo dois artigos voltados ao debate acerca de novas perspectivas e problemas de fronteira na pesquisa científica e suas repercussões em outros campos do pensamento. O primeiro, denominado “O anti- Platão”, assinado pelo filósofo francês Eric Alliez, resenhava o então recém-lançado livro de Ilya Prigogine (Prêmio Nobel de Química de 1977) e Isabelle Stengers, Entre le Temps et la Eternité (traduzido para o português como Entre o Tempo e a Eternidade). O segundo, assinado por Mario Novello, Luiz Alberto Oliveira e José Martins Salim, pesquisadores do Grupo de Cosmologia e Gravitação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCTI) tinha o título “Entre Física e Filosofia”. O propósito da presente contribuição é o de comentar, 33 após sua publicação, alguns dos argumentos e ideias propostos neste último artigo. Uma cópia ligeiramente editada do texto original é apresentada a seguir, e um fac-símile da publicação original está incluído na bibliografia.
II. O artigo:
Entre Física e Filosofia
- Novello, L. A. Oliveira, J. M. Salim
- Introdução: A Superação da Cosmovisão Newtoniana
As primeiras décadas de nosso século testemunharam a deposição e substituição de alguns dos fundamentos mais acreditados da visão de mundo termo-mecanicista que, a partir da obra gigantesca de Newton, os físicos haviam diligentemente consolidado para abarcar e interpretar, com considerável eficácia, as evidências físicas e astronômicas até então disponíveis. Desfrutando, na época, do auge de sua maturidade, o conjunto de princípios e técnicas que hoje denominamos de instrumental ou paradigma clássico acumulara importantes triunfos em inúmeros domínios de investigação, sendo tão bem-sucedido em assimilar uma variedade de fenômenos mecânicos, térmicos e elétricos, numa escala abrangendo desde a queda de maçãs ao movimento de planetas, que acabou por instalar-se e difundir-se na cultura do Ocidente, em correspondência, uma cosmovisão quantitativa, materialista e reducionista segundo a qual o Universo físico não passaria do análogo de um vasto mecanismo, rigorosamente determinado, analisável com ilimitada precisão e, por conseguinte, inteiramente predizível, exprimindo assim uma ambiciosa aspiração a uma totalização maquínica do mundo físico – que, como se sabe, logo viria a encontrar sua hybris.
De fato, a partir da virada do século experimentos decisivos demonstraram a inadequação das abordagens clássicas no que tange tanto à descrição detalhada da estrutura da matéria e de seus componentes microscópicos quanto à observação de processos envolvendo grandes velocidades relativas ou altas energias, costumeiros em fenômenos astronômicos. Essas investigações preludiaram a demolidora conclusão de que, para que se pudesse lograr a correta descrição dessas classes de fenômenos alheios à perspectiva humana habitual seria necessário proceder a uma revisão radical dos próprios princípios pelos quais as leis clássicas haviam sido edificadas. Assim, doravante os processos microscópicos deverão ser expressos segundo as regras descontínuas de quantificação, de natureza essencialmente probabilística, da Mecânica Quântica de Planck, de Broglie e Bohr; por sua vez, o quadro Newtoniano clássico de um espaço tridimensional Euclidiano no qual partículas maciças, estáveis e impassíveis coordenam-se pela ação instantânea de forças mecânicas, ao longo de um tempo universal e absoluto, cede lugar ao contínuo espaço-tempo quadridimensional de Minkowski e à possibilidade de conversão mútua entre massa e energia, advogados pela Teoria da Relatividade Especial de Einstein e, um pouco mais tarde, ao espaço- tempo curvo de Riemann e à identificação entre Gravitação e Geometria propostos pela Teoria da Relatividade Geral. O domínio macroscópico do imensamente grande e o mundo microscópico do infimamente pequeno tornam-se assim as modernas fronteiras do conhecimento.
As consequências dessa transformação de paradigmas ou Revolução Científica (para empregar a denominação de Thomas S. Kuhn) foram vastas e profundas, descortinando todo um novo panorama conceitual e observacional do mundo físico cuja apreciação ainda hoje constitui o motivo para densas polêmicas. Com efeito, aspectos como a dessubstancialização da noção de partículas elementares em vista da indeterminação intrínseca dos processos microfísicos, decorrente do Princípio da Incerteza de Heisenberg; o caráter dinâmico adquirido, na Cosmologia Relativística, pela estrutura global do espaço-tempo (identificada ao cenário gravitacional de fundo para os eventos físicos locais), que torna admissível a concepção de Cosmo ativo e evolutivo; a emergência de fenômenos de transição cataclísmica de ordem em sistemas complexos ou fora-do-equilíbrio; a revisão radical das noções de Vazio, de Caos e de Causalidade são, enfim, alguns exemplos dos agudos problemas de representação e de interpretação que estão no cerne das preocupações contemporâneas e que sugerem, em última instância, o questionamento da própria noção básica de Realidade física. Procuraremos, no que se segue, traçar um panorama de algumas das interrelações mais nítidas entre aspectos da Física e da Filosofia buscando assim abordar, ainda que de forma necessariamente abreviada, certas questões que no quotidiano de nossa atividade de pesquisa nos parecem pertinentes a um domínio claramente transdisciplinar dos saberes e das ciências.
- Lógica do Paradoxo (A Física Quântica)
“Quem não se sentiu chocado com a Teoria Quântica não pode tê-la compreendido”. Esse enunciado de Niels Bohr, um dos construtores da moderna teoria quântica, exprime com precisão a perplexidade que costuma acometer os que tomam contato com as peculiaríssimas concepções empregadas na formulação quântica dos fenômenos microfísicos. No entanto, é hoje em dia quase unanimemente admitido que a descrição quântica constitui a mais eficaz e bem verificada teoria física já elaborada, tendo sido testada e comprovada num sem-número de experimentos e observações abrangendo desde a estrutura íntima dos núcleos atômicos até as características de objetos estelares como pulsares e estrelas de nêutrons, e cujas consequências práticas vão dos chips eletrônicos e da Biologia molecular aos lasers e à bomba atômica. Assim, um tanto paradoxalmente, nossa formulação mais compreensiva dos processos físicos fundamentais parece ser também a menos imediatamente compreensível.
A raiz dessa dificuldade provem do fato de que, na perspectiva quântica, os objetos fundamentais sob consideração – núcleos, átomos ou moléculas, por exemplo – não possuem “existência” definida senão a posteriori da observação experimental; além disso, o próprio ato de conhecimento – ou seja, o procedimento experimental – inevitavelmente introduz uma perturbação no sistema observado, de modo a ser impossível, mesmo para o mais sofisticado dos aparatos de medida imaginável, extrair senão uma quantidade limitada de informação acerca do sistema em questão. A introdução dessa indeterminação ou “incerteza” numa instância tão fundamental de nossa descrição é equivalente a (ou poderíamos talvez dizer, manifesta) uma aleatoriedade básica que seria intrínseca a todos os eventos em escala microscópica. Esse aspecto de indeterminação – e a consequente previsibilidade limitada dos sistemas quânticos – é um “fato da natureza” na medida que é uma característica essencial e incontornável de nosso conhecimento da natureza. Não podemos apreender mais que uma certa fração da informação classicamente disponível num dado sistema, e portanto as próprias concepções de “realidade” e de “existência”, bem como outras categorias clássicas a que estamos habituados, terão de ser vistas sob uma nova luz.
Consideremos um exemplo sugestivo do que significa um procedimento de observação em termos quânticos: temas um dado sistema, um átomo, digamos, e num dado instante observamos que um de seus elétrons se encontra no estado A. Decorrido um certo período, voltamos a inspecioná-lo e verificamos que o elétron se encontra agora no estado B. Pois bem: nada temos a dizer sobre o sistema entre os instantes de observação; não sabemos como o elétron transitou de A para B, ou quais processos intervieram para que a transição se realizasse – não podemos dizer, sequer, se se trata do mesmo elétron. Ainda mais, o conhecimento de que num dado instante o elétron se encontrava no estado A não nos permite determinar com precisão que, na observação posterior, o elétron deverá encontrar-se no estado B; devido à própria interferência sobre o sistema ocasionada pela observação original, só podemos predizer a probabilidade de que o elétron, dentre uma variedade de estados possíveis, venha a ocupar o estado B. Quanto mais forçamos a determinação precisa de uma dada propriedade do elétron, digamos, sua posição, tanto mais tornamos imprecisa uma grandeza complementar (no caso, seu movimento). Esta perturbadora conclusão, consubstanciada no Princípio da Incerteza de Heisenberg, implica em tamanha revolução das concepções fundamentais da Física clássica que muitos cientistas, à frente de todos o próprio Einstein, se recusaram por longo tempo a admitir que a paradoxal descrição quântica pudesse ser completa, e que fosse de fato irrecuperável a obsolescência das noções tradicionais tão eficazes em nosso mundo do dia-a-dia.
A “realidade” quântica, assim, não exibe objetos com propriedades a priori estáveis e bem definidas; por exemplo, de acordo com o aparato experimental empregado, um elétron se manifestará ora com um corpúsculo (ou seja, um objeto localizado), ora como uma onda (isto é, um objeto extenso), e portanto não se pode dizer que em si seja uma ou outra coisa. Há que abandonar a noção aristotélica de substância como o extrato básico de que se compõem as coisas do mundo, bem como toda ambição de uma previsibilidade e um determinismo absolutos: toda forma é precária, pois toda essência é imprecisa e se dissolve em acidentes, e o futuro é, inexoravelmente, probabilístico. O que chamamos de “mundo objetivo” seria então a expressão macroscópica de uma trama infindável de relações quânticas que não padecem, elas mesmas, de “objetividade”.
A explícita reaparição da figura de observador e, para alguns, de sua consciência como integrantes indispensáveis da operação de definição da “realidade” (como sugerido pelos famosos experimentos imaginários do “gato de Schrödinger” e do “amigo de Wigner”) é outro aspecto intrigante, e inteiramente avesso à postura cartesiana convencional, acarretado pela teoria. Por outro lado, a recente verificação de que correlações (isto é, coincidências sistemáticas obtidas comparando-se os resultados de diferentes medições) entre sistemas quânticos que estiveram em interação parecem suceder de uma maneira que extravasa os limites de uma Física local (reintroduzindo assim algum tipo de intercâmbio de informação à distância – um anátema para a mecânica pós-Newtoniana) conduziu ao abandono do ceticismo de Einstein (“o bom Deus não joga dados”) e à consequente afirmação do acaso como legítimo alicerce do mundo. Enfim, a compreensão do panorama proporcionado pela Física Quântica é além disso obstaculizada pela diversidade de “interpretações” que se pode associar ao instrumental quântico (como a da Escola de Copenhagen, a dos Múltiplos Mundos, a da Teoria Estocástica, dentre outras); todavia, os variados e difíceis problemas que concernem a apreciação destas diferentes interpretações constituem um tema demasiado vasto e complexo para que possa ser tratado aqui.
- Cosmos e Totalidade
Em 1917 Albert Einstein, exclusivamente a partir de princípios primeiros e independentemente de quaisquer evidências astronômicas, produziu em forma definitiva aquele que para Max Born seria “o maior feito do pensamento humano sobre a Natureza, a mais impressionante combinação de penetração filosófica, intuição física e habilidade matemática”: a Teoria da Relatividade Geral. Procurando aplicar de forma operacional a noção de que as leis físicas deveriam ser invariantes para observadores em estado arbitrário de movimento (ou seja, essas leis devem ser expressas por relações matemáticas que sejam independentes do particular procedimento de etiquetagem dos eventos físicos, por meio de um dado conjunto de réguas e relógios, adotado por um observador específico qualquer), Einstein termina por promover uma fecunda e imprevista aproximação entre a interação gravitacional (a força universal de atração entre massas descobertas por Newton) e a estrutura geométrica do espaço-tempo (o cenário global dos eventos físicos), por meio da qual os observadores podem estabelecer o conceito fundamental de separação ou intervalo entre eventos. Os notáveis sucessos da teoria no que toca a fenômenos gravitacionais e eletromagnéticos na escala de nosso Sistema Solar a instalaram como o quadro conceitual de fundo em cujo âmbito se pôde assimilar a extraordinária observação de Hubble de que o Universo astronômico se encontraria, como um todo, em um estado dinâmico de expansão.
Com efeito, ao principiar as aplicações da Relatividade Geral à Cosmologia, o próprio Einstein procurou desenvolver um modelo de um Cosmos finito e estático, por ele considerado como o mais pertinente do ponto de vista da simplicidade e elegância filosóficas. As observações de Hubble (o chamado “afastamento uniforme das galáxias”) logo inviabilizaram o modelo de Einstein, que cedeu lugar à concepção de um universo homogêneo e expansivo de Friedman e Lemâitre que iria servir para consolidar, até a década de 70, o chamado “modelo-padrão da Grande Explosão Quente” (Hot Big Bang).
O que nos interessa aqui é a inauguração por Einstein dos modelos cosmológicos relativísticos gerou na Física uma figura nova: a ideia de uma Totalidade, o Espaço-Tempo, que se estruturaria através das equações da gravitação da teoria da Relatividade, constituindo assim um modelo matemático do Universo. Com o modelo de Friedman, esta concepção foi suplementada, recebendo o Universo uma dimensão dinâmica – o que significa que a configuração dessa Totalidade é mutável: o Universo evolui, de acordo com um tempo cósmico global, caracterizado pelo afastamento mútuo das galáxias, e referido em termos de uma classe privilegiada de “observadores fundamentais” associados a elas (de que a Cosmologia curiosamente ainda não pôde se desvencilhar).
A entrada em cena desse conceito de Totalidade introduzido pela teoria de Einstein vai provocar uma série de questões delicadas, algumas ainda longe de ser resolvidas. Por exemplo, ao longo dos anos 70 argumentava-se, segundo o modelo do Big-Bang, que o Universo teria tido um começo único, “explosivo”, num dado instante finito do passado no qual tudo o que existe deveria ter tido sua origem, inclusive a estrutura do Espaço-Tempo. Todavia, os aspectos extremamente problemáticos acarretados por um tal “estado singular originário” ou singularidade inicial – como os valores divergentes (infinitos) de grandezas representativas como temperatura e densidade de energia; a ocorrência de horizontes causais que impediriam a homogenização do Cosmos tal como o vemos hoje; e a violação, nessa origem, de todas as leis fundamentais, como a da conservação da energia – motivaram diferentes tentativas recentes de modificar alguns dos ingredientes básicos empregados para representar as características primordiais da totalidade cósmica, de modo a serem superadas as dificuldades intrínsecas do modelo-padrão.
Assim, ao longo dos anos 80 a ideia de um Universo eterno, sem “começo” nem “fim”, ganhou substância teórica e vem sendo apontado como uma nova visão cósmica que a Física recente produziu. Neste caso, o Universo se estenderia a partir de uma região no infinito passado que, em um modelo simples, pode ser identificada com o vazio do Espaço-Tempo, e tornaria a esse vazio no infinito futuro. Nosso Universo seria assim nada mais que uma flutuação, um estado transiente, daquela estrutura espaciotemporal que denominamos de vazio de Minkowski, qual seja, um domínio isento de matéria ou qualquer ação dinâmica, e portanto privada de qualquer manifestação de existência ou processo físico.
Paralelamente a essa revolução em nossas ideias sobra a Totalidade Espaço-Tempo, os físicos vêm examinando as possibilidades de um casamento entre a Teoria Quântica da matéria e a Cosmologia Relativística, provocando, por sua vez, questões de fronteira extremamente delicadas. Entre estas, para citar um exemplo notável, a sugestão francamente audaciosa (mas cientificamente respeitável, porquanto produzida no contexto mesmo da ciência) de que o Universo seria a consequência de um processo que, embora proibido pelas leis da Física Clássica, ganha na Física Quântica uma probabilidade legítima de ocorrer (a geração do Universo por “tunelamento quântico”). Nosso Universo teria assim uma probabilidade não-nula de existir a partir de uma flutuação do chamado “vazio quântico”. Mas quem mediria essa probabilidade? Isto é, se definimos nossa totalidade cósmica como um “evento quântico”, que procedimento observacional a teria retirado do “limbo” quântico dos estados não-observados, ou seja, do oceano de Universos possíveis, mas irrealizados (pelo menos para nós), associados a outras flutuações? Alguns cientistas foram obrigados por questões como essa a rever os postulados da interpretação tradicional da Escola de Copenhagen, para que a concepção de um Cosmos Quântico (uma Totalidade que se auto-observaria) pudesse ganhar sentido.
Finalmente, ainda no campo dos problemas da Totalidade, deveríamos citar a ideia da Unidade do Mundo, que vem dominando o pensamento teórico nos últimos anos. Segundo essa proposta, a Física deveria ser compreendida a partir de uma única estrutura básica, da qual todos os fenômenos observados seriam exemplos especiais, não-essenciais (ou seja, subordinados e fortuitos) dela derivados. Se, por um lado, tal sugestão pode ser entendida como um truque matemático de simplificação linguística da Física, se tomada em seu sentido mais profundo essa concepção nos projeta diretamente na questão da Unidade do Mundo: teriam efetivamente todos os fenômenos que observamos uma mesma causa ou proveniência física?
Ainda que a aspiração por uma explicação abrangente, uma base comum que permitisse a descrição unificada de todos os processos naturais, tenha acometido pensadores de múltiplos matizes ao longo dos séculos, a preeminência dessa busca em nossa época impregnada pelas concepções harmônicas e globalizantes de Einstein nos induz a denominá-la “Programa da Unificação de Einstein” [o “Programa de Einstein” é discutido em profundidade em Cosmos e Contexto, de Mario Novello (Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1988)]. É talvez importante observar aqui que uma tal procura de unidade está longe de constituir uma diretriz adotada pela unanimidade dos físicos. Poderíamos contrastar esse Programa de Einstein de em prol da obtenção de uma ordem justa e determinada para o Universo ao “Programa de Boltzmann”, no qual se procuraria fundamentar a descrição dos processos físicos a partir de um estado primordial de “caos”. A origem dessa busca de unidade, de fato, será encontrada na antiga aspiração por uma unificação das causas dos fenômenos físicos.
- Tempo e Causalidade
O pressuposto básico de que conhecer o mundo é conhecer as causas dos fenômenos observados traduz com precisão a posição eminente do conceito de causa na Física. Já com Galileu e Newton esse conceito tinha recebido um conteúdo novo e um outro valor na constituição da representação moderna do mundo físico: a noção de causalidade passa então a ser ligada de modo indissociável aos conceitos de força e de ação à distância, exprimindo com nitidez a natureza abstrata das noções que estão na base mesma da Física moderna. A ideia de causalidade corresponde à afirmação de que todo evento é produzido pelos corpos em suas interações (contiguidade) e necessariamente tem em um acontecimento anterior a sua origem (antecedência); desse modo, constitui-se um critério de ordenação segundo uma anterioridade e uma posterioridade que permite representar os acontecimentos por séries de eventos denominadas séries causais. A natureza da causa dos eventos é desse modo colocada entre parênteses, e o conteúdo explicativo da nova Física se reduz assim à ordenação dos eventos e à eficácia preditiva acarretada pelo conceito de força e pelos demais conceitos abstratos, como energia e trabalho, que dela decorrem. Esse modo de abordar o mundo físico atende de maneira eficiente às necessidades de um pensamento que, mantendo a tradição cartesiana, visa introduzir na matéria caótica do mundo a organização inequívoca do pensamento matemático.
A representação do mundo físico que se obtém com esses conceitos é determinista e elimina totalmente a natureza virtual e a duração (durée) dos acontecimentos; o tempo se reduz a um parâmetro, uma coordenada destinada tão somente a marcar os eventos, cuja existência é a priori garantida pelos movimentos que se observam na matéria. Esse modo de construir a representação do mundo físico e implementar a noção associada de estrita causalidade é realizado de maneira definitiva e rigorosa pelo matemático francês Cauchy, expressando os fenômenos físicos por equações diferenciais e pelo problema de dados inciais a elas associado. Dessa forma, produz-se de modo transparente a eliminação cabal da questão da natureza do tempo.
Como mencionamos, essa concepção do mundo físico e a atualização da ideia de causalidade elaborada pela Física Clássica (especialmente a Mecânica) sofreu uma primeira grande crise quando do advento da Física Quântica, cujo caráter essencialmente probabilístico impede por princípio uma previsibilidade absoluta ou determinação ilimitadamente precisa do futuro (embora a noção de complementaridade e a interpretação estatística da Escola de Copenhagen constituíssem uma tentativa renovada com vistas a manter a previsibilidade e determinismo típicos da Física Clássica). Apesar do esforço dos físicos em construir uma representação inteiramente determinista na qual o futuro é completamente determinado pelo passado, não restando papel criativo e produtivo algum para a duração e a virtualidade, há atualmente diferentes exemplos de configurações que rompem com essa modelagem. Dentre estas, as mais dramáticas não são somente as que derivam da Física Quântica, mas também as que decorrem da Teoria da Relatividade e, paradoxalmente, da própria Mecânica Clássica em sua versão contemporânea. De acordo com a teoria de Einstein, um sistema físico em um estado bem-definido pode, depois de um intervalo finito de tempo, transformar-se em um estado não-físico onde as noções de espaço e de tempo tornam-se sem sentido (como no caso da singularidade do modelo do Big-Bang que citamos acima). Não é possível saber o que ocorre em uma singularidade e o que dela pode emergir no mundo físico, impedindo totalmente a previsão do futuro (ou a recuperação do passado). Na Mecânica Clássica, outros exemplos vieram a ser conhecidos, especialmente na moderna teoria dos Sistemas Dinâmicos onde problemas de estabilidade em sistemas muito complexos ou muito afastados do estado de equilíbrio impedem do mesmo modo um conhecimento determinístico da evolução do processo em questão, pois a ocorrência de fatores como bifurcações, transições globais de ordem e regimes “caóticos” tornam incognoscível sua progressão futura. Frisemos bem: na descrição de tais processos se faz explícita uma pluralização dos efeitos associáveis a uma certa causa, ou seja, para uma mesma configuração inicial, variadas configurações finais poderão ser legitimamente (e imprevisivelmente) associadas.
Concluímos assim que a Física e a Cosmologia presentemente delineiam o panorama de um mundo natural dessubstancializado, indeterminista, evolutivo, casual e até mesmo indivisível (como parece implicar a “comunicação instantânea à distância” que, como vimos, foi recentemente verificada em fenômenos não-locais de correlação em processos microfísicos). Os exemplos citados constituem nítidas evidências de que o quadro causal determinista herdado da cosmovisão clássica, e ainda dominante na Física contemporânea, necessita ser reavaliado e ampliado. Em nossos dias, diferentes esforços e abordagens críticas buscam concretizar esses objetivos renovadores, sugerindo que a manutenção de uma postura totalizante, estritamente causal e determinista manifesta não a natureza mesma dos eventos físicos, mas sim uma necessidade de dominação e cristalização dos fluxos de acontecimentos, trazendo ecos do antigo dogmatismo religioso.
III. O contexto da publicação
O artigo em questão foi elaborado a pedido do Dr. Alliez para integrar a edição do Folhetim. Na ocasião, o Dr. Alliez atuava como professor visitante do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF, tendo sido convidado pelo Prof. Mario Novello a colaborar com as atividades do Grupo a partir de um contato promovido pelo Prof. Claudio Ulpiano, lendário mestre de Filosofia cujas aulas e conferências marcaram época no Rio de Janeiro. A convergência de interesses entre as pesquisas do Grupo e as originais perspectivas filosóficas do Prof. Ulpiano revelou-se tanto frutífera quanto inspiradora, e teve como um de suas consequências práticas a presença do Dr. Alliez, um dos mentores do Colégio Internacional de Filosofia de Paris.
De fato, os desdobramentos de diversas diretrizes de pesquisa no Grupo vinham já demandando uma reflexão filosófica mais aprofundada em vista da complexidade e abrangência de alguns dos resultados obtidos, indicando a necessidade de uma crítica incisiva de certos pressupostos que informavam a visão cosmológica – a Kosmosanschauung, se poderia dizer – vigente na comunidade científica. Vinte anos antes, as observações decisivas de Penzias & Wilson haviam estabelecido o modelo da “Grande Explosão Quente” (Hot Big-Bang) como o paradigma- mór a partir do qual a evolução cósmica deveria ser compreendida (superando a visão alternativa da Teoria do Estado Estacionário – Steady-State Theory – de Hoyle, Bondi & Gold). A publicação do livro The Large Scale Structure of Space-Time, por Hawking & Ellis, em 1973, em que foram apresentados de forma consolidada os célebres Teoremas da Singularidade de Penrose & Hawking, contribuiu sobremaneira para que se instalasse o entendimento de que uma origem singular para a evolução cósmica – ou seja, que o Universo tivera um começo – era inevitável.
Mediante uma midiatização fortíssima, a ideia de que o Cosmos tivera um começo único, ainda que incognoscível, num dado momento do passado finito tornou-se extremamente popular, e o termo Big-Bang tornou-se parte do vocabulário internacional (como taxi ou hotel), a despeito de ter sido sugerido por Fred Hoyle, adversário da proposta, como uma designação irônica, se não mesmo derisória. A imensa popularidade adquirida no último quarto do Sec. XX pelo modelo do Hot Big- Bang singular constitui sem dúvida um caso notável de migração de um conceito pertinente a um paradigma científico específico para a cultura em geral, convertendo-se em um meme planetário (sendo o próprio conceito de meme um outro exemplo dessa deriva midiática, é claro). Tamanho sucesso encobriu, ou mascarou, os graves problemas epistemológicos e teóricos que o modelo singular trazia em seu bojo. Em nosso Grupo, como em diversos outros, essas dificuldades intrínsecas da hipótese do modelo HBB não passaram despercebidas e a elaboração, logo a seguir, de um modelo Friedmanniano alternativo, não-singular, por Novello & Heintzmann, a partir da simples adoção de um acoplamento não-trivial (“não-mínimo”) entre a gravitação e outros campos físicos, fortaleceu a postura crítica do Grupo frente ao paradigma singularista já então plenamente vigente.
- Cosmos e Contexto
Um momento especialmente significativo deste processo de construção de uma postura epistemológica crítica, e da consequente convergência entre temas de Ciência e de Filosofia no quotidiano das atividades do Grupo que está na raiz do artigo foi, sem dúvida, a publicação na França (em virtude das inoportunidades editoriais que até então lhe haviam sido oferecidas por aqui) do livro de Mario Novello, Cosmos et Contexte. Todo um leque de argumentos sólidos e contundentes acerca da entronização do HBB como imagem definitiva da evolução da Totalidade cósmica foi apresentado aí, bem como os elementos iniciais de uma crítica à ambição absolutizante e unicista implícita nas chamadas Teorias de Tudo – nas quais a imensa variedade dos fenômenos do mundo não passaria de efeitos derivados de uma única estrutura subjacente a toda a realidade natural. A maior parte das diretrizes de questionamento dos paradigmas substancialistas e deterministas que são exploradas em Entre Física e Filosofia têm proveniência nesta obra capital.
Para citar somente um exemplo, logo após a edição de Do Universo da Física, Oliveira & Salim publicaram uma resenha breve saudando a aparição, ainda que tardia, da edição brasileira, denominada Cosmos e Contexto. Após algumas considerações sobre o teor habitual das publicações de divulgação científica, observam que o caráter original da obra destoa por inteiro dessas abordagens tradicionais, pois “provém da perspectiva contextualizante que ali é adotada, de modo que sejam sempre acessíveis ao leitor os operadores conceituais envolvidos em suas argumentações bem o campo problemático por eles recortado, e que seja ao longo do texto que se construam as perguntas”. Com efeito, prosseguem, “a utilização dos conceitos e instrumentos da Física para lograr a elaboração do especialíssimo sistema físico que os cosmólogos denominam de Universo apresenta sérias dificuldades para um investigador consciencioso. Estas são de ordem experimental, conceitual, e mesmo puramente lógica”. Em particular, os problemas lógicos envolvem “a ausência de um substrato ou contexto no qual a noção de Cosmos (ou seja, de uma totalidade ordenada) pudesse receber sentido. Os princípios de uma totalidade aberta, isto é, que pudesse ser contextualizada, foram considerados já nos trabalhos pioneiros de Russell e Gödel sobre sistemas lógicos; entretanto, ‘a prática da Cosmologia parece ter negligenciado aquelas descobertas metodológicas, que certamente deveriam constituir parte determinante de um programa de contextualização do Universo’ (citação de Cosmos e Contexto)”.
Um tal programa requer, decerto, um trabalho transdisciplinar em que “categorias da Lógica e da Filosofia, especialmente da Ontologia, são indispensáveis para que o empreendimento de avaliação crítica dos pressupostos implícitos numa tal cosmovisão totalizadora e globalizante pudesse ter desfecho apropriado”. Especial referência deve ser feita, neste sentido, ao capítulo central do livro, intitulado de “Quê significa existir?”, pois aí se demonstra que “a ocorrência de horizontes causais [limites para a conexão causal] em modelos de Universo temporalmente finitos (ou seja, não eternos) impede uma definição globalmente abrangente de existência para o conjunto dos eventos físicos”. Concluem os autores, em suma, que “resta então aplaudir a iniciativa da publicação no Brasil desta obra tão profunda e singular”.
V. Considerações finais
Em Entre Física e Filosofia são identificados alguns dos vetores epistemológicos associados a uma deriva crítica com relação à postura tradicional que podemos denominar, talvez sem grande erro, de cartesiana: no âmbito da Microfísica, a inadequação do venerando conceito de substância para fundamentar a compreensão e descrição dos objetos-sem-objetividade que compõem o panorama quântico; na Cosmologia Relativística, a insuficiência conceitual e lógica da adoção ligeira dos modelos singulares como explicação única e última da evolução cósmica; na teoria dos Sistemas Complexos, a emergência de fenômenos caóticos (mas matematicamente bem determinados) e de processos longe-do-equilíbrio indicando a superação das abordagens estritamente deterministas mais simplistas; a conveniência, enfim, do desenvolvimento de interfaces cada vez mais elaboradas e profundas entre as pesquisas de fronteira em Física e Cosmologia e abordagens inovadoras na Filosofia contemporânea. Neste sentido, os argumentos e formulações do artigo parecem plenamente válidos mais de três décadas depois de sua publicação.
VI. Nota pessoal
Para esta celebração dos 80 anos de Mario Novello – a quem tenho a honra de chamar de mestre, e o privilégio de chamar de amigo – decidi recuperar uma das primeiras manifestações do que viria a se tornar marcar indiscutível do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF, qual seja, o investimento em atividades inter- e transdisciplinares, em especial a aproximação de temas e questões da Filosofia. O motivo dessa decisão é que a publicação de Entre Física e Filosofia no ano mesmo de meu Doutoramento representou, sem que eu ainda tivesse completa noção do caminho que então se oferecia, uma abertura primordial para o que veio a se tornar o veio central de meus afazeres de pesquisa: justamente a confluência de problemas de Ciência e Filosofia (e mais tarde, por influência da inesquecível Fayga Ostrower, também de Arte) em suas dimensões epistemológicas, éticas e políticas. Trinta e poucos anos depois, revendo essa primeira expressão de nossas inquietações, me dou conta que a razão efetiva para esta escolha é de fato afetiva: o sentimento de gratidão por ter podido colaborar, por tanto tempo, com Mario e com uma turma tão notável.
VII. Bibliografia (obras e artigos citados no texto):
- Novello, L. A. Oliveira e J. M. Salim, Entre Física e Filosofia, caderno Folhetim, Folha de São Paulo, 1o de Outubro de 1988.
- Prigogine & I. Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade (Gradiva, Lisboa, 1990).
Stephen Hawking & G. F. R. Ellis, The Large Scale Structure of Space-Time (Cambridge University Press, Cambridge, 1973).
- Novello & H. Heintzman, An Eternal Universe, General Relativity and Gravitation 16 (535-539, 1984).
Mario Novello, Cosmos et Contexte (Masson, Paris, 1987).
Mário Novello, Cosmos e Contexto (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1988)
- A. Oliveira & J. M. Salim, Cosmologia em Questão, (resenha de Cosmos e Contexto, de Mario Novello), Perspectiva Universitária nº 232, novembro de 1988.
Fayga Ostrower, A Sensibilidade do Intelecto (Campus, Rio de Janeiro, 1998).