Slasher redivivo
VÓRTEX ENQUANTO PALIMPSESTO
enfocinharemos pelos halls das festas
constituindo um estado de feras e classe
onde tudo isso morre tudo isto pó tudo vindo
acendendo as mais secretas cidades.
(…)
Sou deus
quando festejo no corpo
esta evidência.Raquel Nobre Guerra
Nos últimos anos, percebe-se uma nova incidência de filmes de terror, com destaque para o gênero slasher: recentemente estreou direto na Netflix O massacre da serra elétrica: o retorno de Leatherface (Texas Chainsaw Massacre, 2022), de David Blue Garcia, com roteiro de Kim Henkel e Tobe Hooper, diretor do original de 1973. Junto a Pânico 5 (Scream, 2022), que estreou um pouco antes, cuja sequência já está em pré-produção, e Halloween Ends, que estreia em outubro deste ano de 2022, mostra que o gênero slasher está bem (redi)vivo.
A ressurreição inconstante do slasher torna a imanência ao longo do real e do imaginar um trampolim para uma expressão quase tragicomicamente retroalimentada: o assassino ressuscita, gerando as famigeradas continuações ou as continuações obrigam o assassino a ressuscitar?
De todo modo, o novo Massacre não acrescenta nada, é um filme de terror trivial. Para garantir uma ressonância com o revival do gênero, seguiram o protocolo da nova trilogia de Halloween, ignorando as sequências ao criar uma continuação direta do original, com direito a sua final girl de volta, agora em idade avançada.
O gênero slasher traz sempre um assassino em série, muitas vezes com uma indumentária própria, incluindo uma arma que é fetiche e com níveis variáveis de motivação. O primeiro Massacre é considerado o inaugurador do gênero, sendo a franquia Halloween a que gerou mais bilheteria em números totais.
Tanto Norman Bates, personagem do livro de Robert Bloch – popularizado pelo filme Psicose (Psycho, 1961), de Hitchcock, que também gerou uma franquia com continuação e série de TV prequel –, como Leatherface, assassino de Massacre, foram inspirados em um caso real, um dos primeiros serial killers noticiados nos EUA, Ed Gein. Não à toa, a atriz Jamie Lee Curtis, que eternizou a final girl de Halloween, Laurie Strode, na estreia de Halloween Kills, em 2021, foi vestida de Marion Crane, icônica vítima do chuveiro de Psicose, cujo papel foi interpretado por sua mãe, Janet Leigh. Curtis ganhou o título de “rainha do grito” por ter protagonizado diversos filmes de terror depois do sucesso do primeiro Halloween. Gein foi preso em 1957, depois de ser acusado de assassinato e profanação de túmulos. O fazendeiro, filho de pai alcoólatra e mãe excessivamente moralista, após a morte de sua progenitora, queria reconstituir o corpo dela com ossos de cadáveres, além de produzir abajures com pele humana e guardar pedaços de corpos em caixas.
Leatherface tem esse nome por fazer máscaras com a pele do rosto de cadáveres, além de se vestir de açougueiro e preferir, como arma mortal, a sua emblemática serra elétrica. Ele sempre ataca no Texas, como é explícito no título original da franquia.
Michael Myers, de Halloween, ataca sempre em sua cidade natal, Haddonfield, na noite de Halloween, que é uma data festiva provavelmente remetendo a rituais celtas: Michael chega a escrever samhaim com sangue de uma das vítimas em uma parede. Myers usa uma máscara branca de Halloween e um macacão de operário, criação do diretor John Carpenter em conjunto com a argumentista Debra Hill, sendo que o primeiro compôs também a trilha marcante da franquia.
Jason Voorhes, de Sexta-feira 13, usa máscara de hockey e facão, atacando geralmente em torno do Crystal Lake, onde morava com sua mãe, que era monitora de um acampamento. No primeiro filme, de 1980, a assassina é a mãe de Jason, este segue nas práticas familiares a partir do final do primeiro e em todas as suas sequências.
Já Freddy Krueger, de A hora do pesadelo (Nightmare on Elm Street, 1984), com premissa levemente inspirada na Síndrome da Morte Súbita Asiática, tem o rosto queimado e usa lâminas nas luvas, atacando no sonho das vítimas, em atos que se tornam reais na vigília. Wes Craven criou o personagem, dirigindo e escrevendo o original e o sétimo e apenas roteirizando o terceiro. A mãe de Freddy engravidara devido a um estupro coletivo no hospício em que era enfermeira. Freddy tornou-se uma criança perturbada, o que fez os moradores de Elm Street o queimarem num forno, no subsolo da casa da mãe de Nancy Thompson, que se tornaria a final girl mais recorrente da franquia. Freddy então vai retornar para se vingar assombrando os sonhos dos filhos de seus assassinos.
Ghostface, de Pânico – cujos quatro primeiros filmes foram dirigidos por Wes Craven –, usa uma túnica preta e uma máscara baseada n´O grito, pintura de Munch, daí o título original da franquia, Scream. Ele ataca geralmente na cidade fictícia de Woodsboro, Califórnia, cidade natal da final girl reincidente Sidney Prescott (exceto na série de TV), papel que sempre coube a Neve Campbell. Ghostface, diferente dos imortais das outras franquias, tem por premissa de suas continuações ser encarnado por um copycat, cujos filmes são, por sua vez, copycats de outros slashers: Ghostface tem como modus operandi abordar suas vítimas fazendo um quiz sobre filmes de terror, gerando uma onda de metalinguagem no slasher, já explorada dois anos antes pelo próprio Craven em O novo pesadelo – o retorno de Freddy Krueger (Wes Craven’s New Nightmare, 1994). A metalinguagem é levada a exaustão em Pânico 5, degenerando-se em método recorrente, excessivo. Existem vários outros “vilões” do slasher, como Jigsaw, de Jogos mortais; Chucky, o “boneco assassino”, etc..
Cabe a questão da insistência do gênero slasher no imaginar. O retorno da franquia Halloween, com o filme homônimo em 2018, torna-se a maior bilheteria da história dos filmes slasher, o que mostra que o que acontece agora não é um mero revival.
Tanto a cidade de Plainfield, lar de Ed Gein, como Haddonfield (cidade nativa de Steven Spielberg que, com Tubarão, colocou o terror nas grandes bilheterias de verão dos EUA), de Michael Myers, eram habitadas por indígenas antes da chegada dos europeus: os Ho-chunk em Plainfield e os Lenepe em Haddonfield. Seus nativos foram mortos por doenças que os novos habitantes traziam, por massacres e expulsos de suas terras por “acordos” cuja legislação era entendida, feita e imposta pelo outro lado.
Tobe Hooper deixou esse tema mais explícito em outro filme que dirigiu, Poltergeist, de 1982, produzido por Spielberg, que, claro, também gerou sua franquia. Em Poltergeist, a família Freeling é aterrorizada por entidades sobrenaturais que se conectam com eles, a princípio, pelo aparelho de TV. Ao final, descobrem que todo o seu bairro foi construído em um cemitério indígena. Os espíritos sobrenaturais se “atualizam” por meio da magia técnica contemporânea da TV, seja no bojo da narrativa fílmica, seja no próprio fenômeno dos blockbusters de terror.
Não temos detalhes de hábitos mais antigos dos habitantes dessas áreas dos EUA, mas é no mínimo curioso que o antropólogo David Graeber e o arqueologista David Wendrow, no estupendo livro The Dawn of Everything, nos tragam pesquisas recentes acerca dos aldeões da planície do Crescente Fértil que foram caçadores-coletores em um regime matriarcal durante milênios. Seus hábitos quase antirrituais, para se opor por cismogênese aos agricultores do planalto, envolviam reconstituir corpos das mulheres fazendo uso de ossatura de cadáveres, bem como fazer utensílios com pele humana.
Essas ressonâncias expressam também o fato de os assassinos tenderem a operar em um locus específico, sejam regiões, cidades reais ou fictícias, ruas com seus desdobramentos oníricos e o entorno de um lago.
Apreendendo por ressonância, tanto os assassinos “reais”, como Gein, quanto os “ficcionais”, como Myers, estão re-instaurando esse tipo de prática matriarcal, num contexto contemporâneo e patriarcal, cuja violência se dá pelo enfrentamento das camadas de eras, fazendo com que a fúria do assassino se expresse reconstituindo a mãe em sua perseguição insistente pela final girl – no caso de Myers, pela sua irmã, Laurie Strode/Cynthia Myers –, ou mesmo continuando a prática materna de assassinato no caso dos Voorhes, seja uma emergência devido a séculos de imposição patriarcal, que exigem um bizarro equilíbrio expresso nos filmes.
O aparente secularismo, na verdade, como diz o historiador do esoterismo Wouter Hanegraaff ao longo de sua obra, é apenas a perda de influência da fé cristã, reatualizada por vários indícios de espiritualidade new age, se expressando também no caráter sobrenatural do slasher. Leatherface e Michael seriam aparentemente humanos, mas suas mortes, a princípio impossíveis, lhes fornecem um caráter intersticial, ao longo do natural e do sobrenatural. Como diria Laurie Strode, “por que ele não morre?”. Afinal, eles sobrevivem a diversos tiros, incêndios, quedas, etc. Já Jason e Freddy possuem características claramente sobrenaturais, sendo que Krueger imanentiza as relações secularistas duais entre sonho e vigília, que enfatizamos em nosso livro Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: Ontologia Onírica. É preciso apreender que é essa imanentização que assusta, dado o Racionalismo. Krueger seria bem menos assustador se o imaginar já estivesse de saída habitando um contínuo ao longo de sonho e vigília. Leatherface, Michael e Jason nunca se expressam verbalmente, a não ser Myers, na versão do diretor Rob Zombie, em que temos acesso ao seu “inconsciente”, transduzidos por sua versão criança falante e sua mãe. No entanto, Michael e, quase sempre Jason, além de não falarem, como numa espécie de código de conduta sombrio do slasher, eles não correm, como se fossem cientes de sua inevitabilidade: suas vítimas são pegas de surpresa, tropeçam, se escondem mal ou simplesmente ficam paralisadas.
Quando as vítimas são pegas de surpresa, muitas vezes estão transando e/ou usando drogas; jovens que desafiam em níveis variados a autoridade, cujas cenas reincidentes expressam certo moralismo em muitos dos filmes, não só especificamente de slasher, bem como de terror/horror/gore. De um modo geral, os grupos de jovens vítimas tendem a seguir estereótipos em torno das figuras da promíscua, o atlético, o nerd, o engraçadinho e a final girl pudica ou mesmo virgem.
Tobe Hooper declarou que, após o primeiro Massacre, tornou-se vegetariano. Toda a mística em torno da franquia também orbita em torno da questão do vegetarianismo, cujo moralismo vai ser expresso em muitas cenas de churrasco feitas pelas vítimas antes do ataque e pelo fato de Leatherface ser açougueiro e sua família, canibal.
O slasher é, então, a expressão do palimpsesto em práticas milenares se inscrevem: se o “secularismo” finge não lidar com o sobrenatural, o espiritual e também o feminino enquanto força cósmica, seus assassinos emergem com violência, obcecados com suas final girls, sendo que estas mantêm certo secularismo, o que resulta em nova aparição de seu stalker: para lidar com o “monstro”, seria necessário apreender as vibrações mais sutis que o Iluminismo, o Racionalismo e a “invasão europeia” ao continente americano obnubilaram. Na grande maioria das vezes, as final girls fracassam nesse intento, ao menos parcialmente. Particularmente em Halloween Kills, Laurie esboça, em uma conversa no hospital com o delegado Frank Hawkins, ambos se recuperando de mais um ataque de Myers, uma espécie de compreensão mais ampla da natureza de Michael.
Assim, o slasher expressa o vórtex, a máquina abstrata do palimpsesto da América. Exige que se apreenda o cosmos numa escala atemporal. Enquanto isso, os monstros retornam, menos porque “não morrem”, mas porque são sustentados por um sistema de crença empobrecido, cujo capitalismo oriundo dele faz com que alguns lucrem e operem a manutenção de sua restrição vibracional. Nossa proposta aqui é evidenciar o palimpsesto que o slasher expressa, para que, por meio dele, possamos ter mais uma linha de fuga, ou seja, ganhando proficiência em nossa intuição ao problematizar o dualismo entre matriarcado e patriarcado e entre secularismo/Racionalismo e sistemas de crença espirituais dogmáticos.
O terror e sua expressão norte-americana mais emblemática, o slasher, com seu moralismo e imaturidade (com a) mística, continuarão correndo atrás de jovens anestesiadas, seja por uma substância que o Racionalismo em sua extensão jurídica tornou proibida, seja uma imposição econômica-cultural. Alguns transduziram isso em arte, como John Carpenter e Wes Craven, outros, apenas continuarão fetichizando estocadas sangrentas sem fim.