Sakharov: Físico Teórico ou Inventor?
Introdução
Escrever sobre o físico Andrei Sakharov impõe a necessidade de contextualizar a física à época e ao ambiente científico na União Soviética (URSS) naquele período. Obviamente, isso caso nos limitemos ‒ como farei aqui ‒ ao aspecto científico de sua obra. Caso fossemos entrar nos aspectos políticos, teríamos que ampliar por demais essa contextualização, incluindo a Guerra Fria, a desmistificação do Stálin no XX Congresso, a Perestroika, entre tantos outros eventos que ocorreram tanto dentro quanto fora da URSS. É importante lembrar que Sakharov foi prêmio Nobel da Paz.
Logo após a eleição de Sakharov para a então Academia de Ciências da União Soviética ‒ este com apenas 32 anos de idade ‒, perguntaram ao já famoso cientista Lev Landau qual era sua opinião sobre esse jovem físico teórico que tinha acabado de ser laureado. A resposta dele foi: “Mas ele não é um teórico! Ele é um físico inventor”. Embora tenha feito sua formação acadêmica como físico teórico de partículas ‒ como uns dos pupilos diletos do também famoso físico teórico e prêmio Nobel de Física Igor Tamm ‒, Sakharov ficou conhecido e se tornou o mais jovem cientista a ser admitido como membro pleno daquela academia, por causa de sua participação decisiva na construção da bomba de hidrogênio soviética.
Sakharov terminou seu doutorado em 1945, no Instituto de Física da Academia de Ciências (FIAN), e continuou trabalhando em física de partículas até 1948. Nesse período, publicou três artigos científicos: i) ‘Generation of a hard component of cosmic rays’ (1947); ii) ‘Interaction of the electron and the positron in pair production’ (1948); iii) ‘Observation of cosmic radiation by means of photographic plates, sensitive to electrons’ (1949).
O segundo deles tem 120 citações, com pouco menos da metade dessas citações feitas em artigos escritos nos últimos dez anos, envolvendo vários temas de física de partículas, como estudos sobre a molécula de mésons, aniquilação de p \bar p e busca de matéria escura. Acabou sendo conhecido como Sommerfeld-Schwinger-Sakharov rescattering formula (fórmula de espalhamento).
Aqueles três anos de dedicação à física teórica foi o máximo que ele conseguiu resistir ao fortíssimo assédio governamental que ele e outros cientistas sofreram no sentido de participar do programa nuclear soviético.
A explosão das bombas de Hiroshima e Nagasáki, juntamente com o início da Guerra Fria, foram determinantes nos caminhos seguidos por Sakharov e outros importantes físicos à época na então URSS.
Ciência na URSS: breve descrição
A Rússia tem uma literatura das mais exuberantes e diversas do mundo. O herói nacional é o renomado poeta Alexander Pushkin, morto em 1837. São incontáveis os grandes escritores russos que marcaram a literatura mundial nos séculos XIX a passado.
Mas o mesmo não pode ser dito em relação à ciência em geral ‒ e a física, em particular ‒no período anterior à revolução soviética. Mendeleiev foi o grande nome da ciência russa pré-revolucionária. Na física experimental, destacou-se Lebedev. O primeiro propositor da Tabela Periódica; o segundo, autor da demonstração experimental da pressão que as ondas eletromagnéticas são capazes de exercer sobre a matéria.
Dois fatores foram fundamentais para a transformação da ciência na Rússia no início do século passado. O primeiro é o surgimento, ainda no século XIX, de uma forte classe média, com princípios baseados em valores profundamente humanísticos, bem como ideias revolucionárias e a convicção de que era preciso criar algo de realmente novo em um país atrasado, como escreveu Eugeny Feinberg.
O segundo elemento fundamental foi a intensa valorização do conhecimento científico que a Revolução de Outubro deu as ciências naturais, juntamente com o apoio à formação de novos cientistas. Uma frase de Lênin, de 1919 ‒ portanto, dois anos depois do início da revolução soviética, na qual foi líder ‒ resume essa preocupação: “Devemos ter toda a cultura que o capitalismo deixou e construir o socialismo a partir dele. Nós devemos ter toda a ciência e tecnologia, todo o conhecimento e a arte. Nós não podemos construir a vida do comunista sem ela”.
Impressiona o fato de a URSS ter produzido ‒ menos de cinco décadas depois de sua revolução ‒ uma forte escola científica, com clara identidade e que tenha produzido grandes contribuições à ciência e tecnologia. Nesse período, a física soviética foi agraciada com os seguintes prêmios Nobel: Pavel Cherenkov, Illia Frank e Igor Tamm (1958); Lev Landau (1962); Nicolay Basov e Aleksandr Prokhorov (1964); Pyotr Kapitsa (1978, juntamente com Penzias e Wilson); Zhores Alferovfor (2000, com base em trabalho feito em 1963); Vitaly Ginzburg, Alexei Abrikosov (2003, pela teoria da supercondutividade publicada em 1950). Somem-se a esses grandes expoentes da ciência mundial, como Isaak Pomeranchuk, Nikolai Bogolyubov, Aleksander Friedmann, George Gamow, Lev Okun, Moisei Markov e Yakov Zeldovich.
Mas a relação desses eminentes cientistas não foi nem um pouco pacifica com poder soviético ‒ principalmente, após os expurgos de 1937, nos quais foram presos e executados três promissores físicos, Semyon Shubin, Aleksander Vitt e Matvei Bronstein, todos com pouco mais de 30 anos. A morte desses jovens, bem como a prisão de Landau por mais de um ano, marcaram profundamente essa geração de físicos.
Depois desse episódio, a relação da vanguarda da física soviética mudou: de majoritariamente engajada na revolução, passou a uma atitude de desconfiança mútua, com períodos de crises mais profundas.
Criação da bomba de hidrogênio
Essa desconfiança, porém, não impediu que a maioria desses físicos se envolvesse no projeto da construção da bomba de hidrogênio soviética. Tamm, Landau, Kapitsa, Ginzburg, Pomeranchuk, Bogolyubov, Okun, Zeldovich, entre outros, fizeram parte ‒ com graus distintos de engajamento ‒ desse grande e complexo projeto. A então superioridade dos EUA no desenvolvimento de bombas nucleares, somada ao medo de ter a URSS dizimada por um ataque nuclear em grandes proporções, motivaram esses acadêmicos a se engajarem nesse projeto.
Nesse contexto, o recém-doutor Sakharov aceitou o convite de se associar ao projeto, no qual entrou pelas mãos do seu orientador, Tamm. Vai com a família morar no antigo monastério de Sarov ‒ preparado exclusivamente para o desenvolvimento da bomba de hidrogênio ‒, onde permaneceu de 1948 a 1968.
Sua primeira função no projeto foi revisar os cálculos ‒ feitos por Zeldovich, também teórico ‒ sobre uma primeira proposta de bomba de hidrogênio. Ali, inicia-se uma grande amizade e colaboração que durou cerca de 20 anos ‒ inicialmente, no projeto da bomba de hidrogênio e, depois, como veremos, em física de partículas e cosmologia ‒, embora ambos tivessem estilos bem diferentes: Sakharov, com um perfil mais inventivo e com grande profundidade; Zeldovich, pensamento muito rápido e grande erudição. Este último publicou cerca de 300 artigos em ciência pura, com muitos coautores; Sakharov tem apenas duas dúzias de trabalhos em ciência fundamental ‒ e um único coautor (Zeldovich).
O grupo de Zeldovich tinha uma proposta de bomba de hidrogênio com o formato de um tubo, preenchido por material termonuclear (no caso, deutério). Sakharov trabalhou nessa proposta por poucos meses, até apresentar uma nova, com design completamente diferente da proposta por Zeldovich.
O projeto de Sakharov foi aprovado e acabou se tornando a concepção final da primeira bomba de hidrogênio lançada pelos URSS, em 1955. O esquema proposto por Sakharov (figura 1) ficou conhecido como stoika (ou ‘bolo em camadas’). Na figura, à esquerda, vê-se a proposta inicial, e, à direita, a evolução dela. A proposta de Sakharov muda completamente a geometria inicial pensada para a bomba.
A colaboração inicial entre Zeldovich ‒ que vinha com novas propostas ‒ e Sakharov ‒ que as aprofundava ou mesmo transformava ‒ tornou-se profícua, estendendo-se a trabalhos de cosmologia e partículas.
Retorno à academia
Depois de pouco mais de uma década envolvido totalmente no projeto da bomba de hidrogênio, Sakharov retornou à academia, com o apoio de Zeldovich, que já tinha feito isso anos antes e era então considerado o fundador da escola soviética de cosmologia e manteve-se líder dessas pesquisas pelos anos seguintes. Esse reencontro com Zeldovich foi determinante, segundo palavras do próprio Sakharov: “As I noted early, my association with Yakov Zeldovich during this period was a vital factor of my scientific career”.
Mas a escola de cosmologia não era bem vista pela comunidade científica local, amplamente liderada pelo renomado e influente Landau. Segundo relato do próprio Zeldovich, Landau insistia que a cosmologia incorria “frequentemente em erro, mas nunca em dúvida”.
Inicialmente, o grupo Zeldovich era partidário de uma cosmologia baseada em uma expansão fria do Universo (Cold Big Bang), na qual se suponha a temperatura da matéria superdensa igual a zero. Seguindo essa linha, o primeiro trabalho em cosmologia publicado por Sakharov, de 1966, teve como título ‘The initial stage of an expanding Universe and the appearance of a nonuniform distribution of matter’.
Nesse artigo, Sakharov levantou a hipótese de uma equação de estado para a matéria em altíssimas densidades no início do Universo, com características não usuais, segundo ele descreveu em sua autobiografia. No trabalho, ele verificou que a densidade de energia convergia para uma constante, quando a pressão ia para o infinito. Essa equação leva a uma expansão exponencial do universo. Esse trabalho é considerado por Andrei Linde e outros autores da área como precursor do modelo inflacionário da criação do Universo.
Por essa época, foi observado experimentalmente aquilo que hoje denominamos radiação cósmica de fundo em micro-ondas (ou apenas radiação de fundo). Com isso, descobriu-se que o Universo continha uma infinidade de fótons com baixíssima energia (2,7 K), distribuídos uniformemente por todo o cosmo, em uma proporção superior a um bilhão de fótons para cada bárion (prótons e nêutrons).
Baseado nesse resultado, Zeldovich publica o paper ‘The hot model of Universe and the elementar particle’. No mecanismo proposto, para altas temperaturas (KT >> mc2), teríamos a criação e destruição de pares de partículas e antipartículas. Com a expansão do Universo e seu consequente resfriamento, esses pares se aniquilariam em fótons, mas sem energia suficiente para a criação de novos pares. Dessa maneira, o Universo seria povoado por fótons gerados nessas múltiplas aniquilações e distribuídos uniformemente pelo espaço ‒ diferentemente da distribuição observada de matéria, distribuída de forma não homogênea.
A questão imediata colocada por Zeldovich nesse trabalho é a origem da assimetria bariônica observada no Universo atual, onde a matéria bariônica prevalece sobre a antibariônica. Qual seria a origem dessa sutil anomalia no modelo de universo quente?
Embora Zeldovich chame a atenção para esse enigma, não lhe dá muita importância. Especula a existência de um Universo anterior para t < 0, anterior à singularidade de t = 0, com densidade e temperaturas infinitas. Nesse pré-universo, a assimetria observada atualmente já estaria presente em t = 0.
A dificuldade desse modelo, segundo Zeldovich, é que próximo a t = 0, com altíssimas densidades, a relatividade geral está intimamente relacionada com a mecânica quântica.
Assimetria bariônica
Seguindo essa nova linha proposta por Zeldovich, Sakharov faz seu mais importante e conhecido trabalho cientifico: ‘Violation of CP invariance, C asymmetry, and baryon asymmetry of the Universe’, publicado em 1967 (Pisma Zh. Eksp. Teor. Fiz. 5, 32-35, 1967). Já no título fica claro que ele pretende atacar uma questão que seu colega deixou de lado em relação à assimetria bariônica no Universo primordial. Esse trabalho conta com mais de 3 mil citações, as quais, curiosamente, começaram a aparecer só cerca de dez anos depois da publicação.
Há flagrante diferença entre aquilo que foi escrito por Sakharov naquele trabalho de 1967 e o que é atribuído a ele atualmente. Primeiramente, iremos apresentar as principais ideais daquele paper e, em seguida, analisar a evolução que teve por mais de 50 anos de sua publicação, tentando explicar as razões que levaram à essas mudanças de interpretação.
Naquele artigo, Sakharov encampa a ideia de Zeldovich de um Universo anterior, uma singularidade em t = 0 e, em seguida, a criação do Universo e sua evolução. O primeiro ingrediente importante foi a introdução da invariância de CPT, que ele acrescentou ao mecanismo de Zeldovich. Para manter a invariância de CPT, partindo da constatação de que atualmente há muito mais matéria do que antimatéria no cosmo, ele postulou que o Universo anterior tivesse uma assimetria como aquela observada atualmente, mas feita de antimatéria. Gennady Gorelik, biógrafo de Sakharov, representa essa visão do artigo com a figura 2.
A figura 2, segundo Gorelik, representa a contração para t<0 e expansão do Universo para t>0 segundo Sakharov. Para mostrar como esse mecanismo manteria a invariância de CPT, Gorelik representada essa invariância por meio de um conjunto de borboletas (figura 3).
Curioso e digno de nota: ao final do ano passado, um grupo de cientistas canadenses, Latham Boyle, Kieran Finn e Neil Turok, do Instituto Perimeter para a Física Teórica, propôs um modelo pictoricamente idêntico ao de Sakharov, incluindo a ideia de um antiuniverso e tendo a principal motivação a invariância de CPT. Na descrição desse modelo, feita pela revista Science, a evolução é representada pela figura 4.
Para justificar o fato de o universo ter que passar por uma singularidade (algo ainda hoje controverso), Sakharov propõe a existência de uma partícula com massa de 2 x 10-5 g, ‒valor da mesma ordem de grandeza da massa de Plank, ou seja, 1019 GeV/c2 ‒, que ele chamou ‘máximus’. Segundo ele, a presença dessa partícula leva inevitavelmente a uma forte violação do equilíbrio termodinâmico. Para Sakharov, nesse processo, “os máximus neutros e sem spin teriam sido produzidos a t < 0, no período de contração da matéria, com um excesso de antiquarks, que passariam “um através do outro” no instante t = 0, quando a densidade seria infinita e decairia com um excesso de quarks quando t > 0, realizando a simetria CPT total do universo”.
Nesse mecanismo de criação do Universo, aparece uma das questões mais polêmicas e difíceis de serem aceitas à época: a violação do número bariônico, ou seja, possibilidade de o próton se desintegrar. O fato de termos um Universo com excesso de antiquarks e passarmos para um excesso de quarks só pode ocorrer com a violação do número quântico conhecido como ‘número bariônico’, cujo valor é 1/3 para quarks e – 1/3 para os antiquarks. Os prótons e nêutrons têm três quarks cada; logo, o número bariônico deles é um. Os antiprótons e antinêutrons, consequentemente, têm esse número igual a – 1.
A dificuldade aparecia por nunca se ter visto a desintegração do próton ‒ algo que continua a valer até hoje, apesar de grandes esforços experimentais nessa busca Havia também certa convicção à época de que o número quântico bariônico não era simplesmente um número vinculado a alguma regra de seleção, mas, sim, um número quântico associado a um campo, de modo semelhante ao que ocorre a um campo gerado pela carga elétrica ‒ portanto, como nesse caso, teríamos uma conservação da ‘carga bariônica’.
Esse sentimento à época era tão forte que Yang e Lee propuseram a existência de um campo de gauge com uma partícula sem massa e que seria responsável por uma fraquíssima força repulsiva de longo alcance entre bárions (Phys. Rev. 98, 1501, 1955). Esse trabalho teve forte repercussão aquele período, mostrando a convicção generalizada da existência da conservação do número quântico bariônico ‒ até hoje, esse artigo de Yang e Lee é bastante citado, pela possibilidade de explicar os efeitos relacionados a matéria escura.
Entretanto, somente a violação do número bariônico não é suficiente para descrever a assimetria matéria-antimatéria do Universo. É necessário que, para a criação da assimetria observada atualmente, o número bariônico dos antiprótons seja violado com mais frequência que o dos prótons na criação do Universo atual. Para resolver está questão, Sakharov introduz o terceiro aspecto fundamental de seu modelo: a necessidade de violação da conjugação de carga (C) ‒, simetria que relaciona as partículas com as suas antipartículas ‒, bem como a violação simultânea do produto da conjugação de carga e paridade (CP) ‒ na qual a paridade (P) representa a simetria espelhada entre partícula e antipartícula.
Antes de entendermos a razão dessa necessidade para explicar a bariogênese proposta por Sakharov é interessante contextualizar as ideias que circulavam à época sobre essas simetrias. Até meados da década de 1950, acreditava-se que todas as forças da natureza (gravidade, eletromagnética, fraca e forte) eram simétricas pela troca de carga (C), pelo espelhamento ou paridade (P) e pela reversão temporal (T).
Essa crença durou até que Lee e Yang questionaram a veracidade da simetria P nas interações fracas, pois essa simetria já tinha sido confirmada experimentalmente para as interações fortes e eletromagnéticas. A proposta deles tinha como base a observação experimental da existência de duas partículas ‒ coincidentemente, ambas com a mesma massa e mesmo tempo de vida, mas com diferentes comportamentos com relação à paridade.
Como a paridade de uma partícula é determinada por suas desintegrações, teríamos que, caso a paridade fosse violada na interação responsável por sua desintegração (interação fraca), as duas partículas observadas experimentalmente, na verdade, seriam a mesma. Para demonstrar isso, os dois físicos propuseram um teste experimental, realizado pela física de origem chinesa Madame Wu. O resultado obtido mostrou que a conservação de paridade era violada e as duas partículas na verdade era uma só.
Logo em seguida, observou-se que havia também uma violação da simetria de carga, mas que esta última era acoplada à violação de paridade, de tal maneira que havia uma compensação, e, no cômpito geral, a invariância CP era conservada. Em artigo publicado por Landau em 1957, ele assume que CP era uma simetria exata e que não poderia ser violada. Assim, partículas e antipartículas teriam as mesmas propriedades por meio de uma transformação de CP.
À época, também fazia sentido acreditar na invariância de CP, pois sua violação implicaria violação da reversibilidade temporal, tendo em vista que CPT deveria ser conservado por princípio. Para um sistema complexo de muitos corpos, é natural que os sistemas não sejam reversíveis quando se muda a seta do tempo. Mas, para sistemas de poucos corpos, toda a física, da mecânica clássica à mecânica quântica, passando pelo eletromagnetismo, todos os sistema são descritos de forma que o calculo para um evento em uma direção do tempo seja a mesma que na direção contrária.
Mas a física se encontrava em um período de grandes transformações e grandes surpresas ‒ o livre pensar era aceito sem grandes restrições. Nesse sentido, Okubo, ainda naquela década de 1950, especulou o que aconteceria se a invariância de CP fosse quebrada. Uma das consequências seria a seguinte: uma partícula, ao atingir seu estado final de desintegração, teria uma antipartícula que se desintegraria obrigatoriamente em um ‘antiestado’ correspondente, mas com diferentes probabilidades de desintegração. Como vimos, era isso que o Sakharov necessitava para concluir seu mecanismo para a bariogênese.
Vale ressaltar que a violação de CP já tinha sido observada experimentalmente por Fitch e Cronin nos decaimentos dos káons neutros. Portanto, o mecanismo de Okubo de violação direta de CP era uma possibilidade bem concreta. Em cópia de seu trabalho enviada a seu amigo Evgeny Feinberg, Sakharov escreveu a seguinte epígrafe:
“Making use of the effect
- Okubo has proposed,
While the temperature is high
The universe is richly clothed
In a coat made to fit
Its crooked figure-head to foot.”
Aspecto importante é de que maneira Sakharov se refere à violação de CP na criação do Universo primordial. Embora não fique explicitado em seu artigo de 1967, em sua autobiografia Sakharov escreveu explicitamente que, nesse período inicial, “a formação de partículas foi diferente da formação de antipartículas”. Ou seja, ele se refere à assimetria de CP no processo de produção dos bárions e não a essa assimetria nas desintegrações dessas partículas, como geralmente lhe é atribuído em relação à sua proposta de bariogênese pelas mais de 3 mil citações desse trabalho.
Mais: em sua autobiografia, ele chama explicitamente a atenção para o fato bem conhecido de que a invariância por CPT implica que a probabilidade de desintegração de uma partícula é igual à de sua antipartícula. Disso segue que, em um canal especifico, a desintegração é mais provável para a partícula que para sua antipartícula, em outro canal (ou canais), deve necessariamente ocorrer o contrário. Ou seja, se em um canal de desintegração, a simetria CP é violada, deve existir outro canal (ou canais) que violem CP na mesma quantidade, mas com sinal oposto, de forma que as probabilidades de desintegração das partículas sejam iguais às de suas antipartículas.
Fica claro que, embora a violação de CP tenha sido pensada e observada experimentalmente em um processo de desintegração de partículas, Sakharov, em seu mecanismo de bariogênese, pensou na existência desse tipo de violação na produção de bárions e antibárions no universo primordial.
Embora observado na produção de bárions, Sakharov pensou este mecanismo no âmbito da força fraca, pois o mecanismo de Okubo envolvia essa força, e as outras forças da natureza não indicavam a possibilidade da violação da invariância de CP.
Bariogênese de Sakharov: reinterpretações
Como mencionado, a proposta de bariogênese de Sakharov conta com mais de 3 mil citações. O curioso é que, à exceção de um trabalho não publicado de Okun e Zeldovich, o reconhecimento do artigo de 1967 teve início apenas mais de dez anos depois de sua publicação.
Esse reconhecimento se dá com a proposta da Grande Unificação ‒ ou seja, a unificação da força fraca, forte e eletromagnética ‒, feita por Georgi e Glashow, por meio do grupo de simetria SU(5). Nessa proposta, o próton se desintegraria, isto é, o número bariônico não seria conservado. Além disso, haveria a necessidade de violação de CP, e, finalmente, o sistema deveria estar fora do equilíbrio: aparentemente, as três principais hipóteses propostas por Sakharov.
Entretanto, dessas três hipóteses ‒ hoje, conhecidas como ‘As condições de Sakharov ‒, só uma delas pode ser comparada literalmente com aquela proposta por ele, que é a da violação do número bariônico. As outras duas apresentam diferenças importantes em vários aspectos em relação ao que Sakharov escreve em 1967 e aquilo considerado atualmente como as ‘condições de Sakharov’.
Essas diferenças, a meu ver, decorrem das diferentes concepções do processo de criação do atual universo. Enquanto na proposta de Sakharov existia um universo anterior, com um excesso de antimatéria, nas propostas atuais, o universo foi produzido no Big Bang, a partir de um estado bariônico neutro. A ironia é que a o único modelo ‒ publicado ano passado ‒ que parte da proposta original de Sakharov não cita o artigo de 1967.
Na proposta da Grande Unificação, de Georgi e Glashow, o próton e o antipróton se desintegrariam em dois modos distintos, ambos por meio de um bóson de gauge chamado X. Em um desses acoplamentos, o X se acoplaria com um par de quarks, enquanto o anti-X, em um par de antiquarks. Esse mesmo bóson poderia produzir um antiquark e um pósitron; e o anti-X, um quark e um elétron.
Por conservação de CPT, a soma das probabilidades de produção seria igual para o X e o anti-X, mas a probabilidade de o X se acoplar com os dois quarks seria maior que a de o anti-X se acoplar com os dois antiquarks, configurando a violação de CP proposta por Okubo.
Necessariamente, para manter a mesma a soma das probabilidades, como exigido pela invariância de CPT, o acoplamento do anti-X com o quark e o elétron deveria ser maior que a do X com o quark e o elétron, em quantidades rigorosamente iguais. Dessa maneira, o balanço total do universo seria um excesso de quarks e elétrons, como observado atualmente (figura 5).
Entretanto, a invariância de CPT é mais restritiva que aquela apresentada nessa teoria de unificação. Como foi demonstrado por Okubo, em um paper de 1965, a invariância de CPT impõe que não basta que a soma total das probabilidades de decaimento de uma partícula e de sua antipartícula seja igual, como no exemplo anterior. Esse teorema exige que as probabilidades parciais das desintegrações de uma partícula e de sua antipartícula ‒ envolvendo uma única família de estados finais ‒ sejam rigorosamente iguais.
Aqui, ‘família de estados finais’ significa que esses tenham entre si os mesmos números quânticos. Isso implica que a invariância de CPT impõe que a probabilidade de produção da família gerada por dois quarks do mesmo tipo, a partir da desintegração do bóson intermediário X, seja rigorosamente igual à produção de dois antiquarks equivalentes, a partir da desintegração do anti-X. O mesmo vale para a desintegração do bóson X em quarks e elétrons.
Com essa restrição, demonstrada por Okubo e outros, a menos que a invariância de CPT seja também violada, a assimetria de CP proposta por esse modelo de unificação não deve funcionar como meio de explicar a assimetria matéria-antimatéria no Universo.
No mecanismo de Sakharov, a produção da partícula máximus, com a massa da ordem da massa de Planck, implica necessariamente uma quebra do equilíbrio termodinâmico, como demonstrado por Markov. Mas, na teoria de Grande Unificação, o equilíbrio termodinâmico se faz necessário para dar uma direção ao tempo, no sentido das interações.
De fato, em um sistema em equilíbrio termodinâmico, a desintegração de uma partícula X em duas outras partículas Y e B tem a mesma probabilidade de ocorrer que em um sistema inverso, ou seja, Y interagir com B e formar X. Isso implicaria que os pares de quarks ou o par quark-elétron poderiam interagir entre si e formar novamente os prótons e antiprótons.
Embora o mecanismo de Sakharov e o da Grande Unificação falem de quebra de equilíbrio termodinâmico, no primeiro caso, trata-se de uma consequência do modelo, enquanto, no segundo, é uma necessidade do modelo. Observação importante é que, além da quebra de equilíbrio termodinâmico, é também possível dar uma direção ao tempo, com a quebra da simetria de CP, pois esse processo implica necessariamente a quebra de T na mesma proporção, se aceitarmos a invariância de CPT. De fato, a violação da simetria temporal (ou a irreversibilidade temporal) implica a desigualdade: Γ(Y + B → X) ≠ Γ(X → Y + B).
Epílogo
Em mais uma proposta relacionando a cosmologia com a física de partículas, Zeldovich analisou as consequências que teria a bem conhecida flutuação do vácuo quântico na cosmologia. Como já havia sido bem estabelecido à época, o vácuo em partículas elementares está povoado de pares de partículas e antipartículas, criadas e aniquiladas continuamente, segundo fenômeno conhecido como flutuação do vácuo, que resultaria em uma energia mínima, diferente de zero.
Segundo Zeldvich, essa energia mínima do vácuo quântico, por causa de suas constantes flutuações, teria como consequência, em escalas astronômicas, uma constante de dimensões perceptíveis. Essa proposta de Zeldovich ‒ hoje, bem aceita pela comunidade científica ‒ foi quase unanimemente rejeitada por seus pares na então União Soviética. Sakharov, mais uma vez, foi exceção ‒ ele não só apreciou a ideia, como também acabou escrevendo um trabalho baseado nessa proposta.
Segundo esse trabalho de Sakharov, a gravidade não existiria: seus efeitos seriam consequência da elasticidade dessas flutuações do vácuo. Segundo ele, “quando algum corpo material, que possui certa energia é introduzido no vácuo, este tende a curvá-lo, mudando a geometria [do espaço-tempo]. Mas o vácuo resiste a essa mudança, pois ele tem “elasticity owing to the quantum motions taking place within it”.
Para finalizar a série de trabalhos científicos de sua fase pós-bomba, Sakharov escreveu seu único trabalho em coautoria com Zeldovich. O artigo trata de física de partículas e envolve a estrutura dos quarks e suas massas. Curiosamente, essa relação extremamente próxima entre os dois ‒ iniciada no estudo da bomba de hidrogênio e mantida por décadas ‒ resultou em um único trabalho.
Com o envolvimento de Sakharov na campanha pelo desarmamento nuclear e, em seguida, seu envolvimento com a luta contra o regime soviético ‒ que o levou a ganhar o prêmio Nobel da Paz ‒, a atividade científica diminuiu fortemente. Zeldovich, por sua vez, seguiu sua atividade científica com bastante sucesso.
Esse distanciamento entre os dois não foi tranquilo, e as diferenças trouxeram esfriamento da relação estreita de amizade que tiveram por mais de 20 anos. Em artigo escrito para a revista Nature, por ocasião da morte de Zedovich, Sakharov escreveu: “My relations with Zel’dovich were not always unclouded. In the 1970s and 1980s, especially in the Gor’kii phase of my life, hurt feelings and mutual coldness crept in. Zel’dovich strongly disapproved of my social work, which irritated and even frightened him. He once said “People like Hawking are devoted to science. Nothing can distract them”. I did not understand why he could not give me the help which, given our relationship, I considered myself justified in asking for. I know that all this tormented Zel’dovich. It tormented me too, as described in my memoirs. Today, the events of those years seem like foam, carried away on the stream of life.”
Para responder à pergunta formulada no título deste trabalho, o autor de sua biografia responde da seguinte maneira ‒ com o que tento a concordar: “We can replace the “or” with a hyphen. He used the term “theorist-inventor” when talking of his military technology work, but it applies to his theoretical physics as well. Theorists differ not only in their strengths of intuition, but in their methods of work. Some start with a general alluring idea and seek a way of concrete formulation. Others begin with a simplified theory of a concrete phenomenon. Still others, with the most general physical theory that they try to apply to the given problem.”
Agradeço ao colega Cássio Leite Vieira, pela minuciosa revisão do texto.
Bibliografia básica:
Memoir, de Andrei Sakharov, Vintage (1992)
The world of Andrei Sakharov: a Russian physicist’s path to freedom, de Gennady Gorelik. Oxford University Press (2005).