Rumo à Terceira Revolução Copernicana
“O que constitui o interesse principal da vida e do trabalho é que eles lhe permitem tornar-se diferente do que você era no início”.
Foucault.
Em decorrência da concepção de tempo adotada[1] montaremos um diagrama onde singularidades identificadas por nomes próprios (Platão, Aristóteles, Cristianismo, Descartes, Kant, Espinosa, Nietzsche, Bergson, Foucault e Deleuze) marcam mutações no corpo social e no pensamento. Recorreremos a esse diagrama para dar sentido ao acontecimento que denominamos A Terceira Revolução Copernicana.
Esperamos que o sentido assim constituído revele a intenção de dissolver a separação sujeito-objeto, que aparece de modo exemplar na física, e a subordinação do pensamento à representação e ao modelo do reconhecimento que ela implica. Simultaneamente um novo modo de individuação, não mais por sujeito objeto, será indicado.
O homem primitivo[2] ou a criança quando chegam ao mundo estão imersos no caos. Se retirarmos do nosso capital de representações a massa enorme das experiências herdadas, se reduzirmos a nossa fortuna espiritual a alguns elementos fundamentais que deram origem, ao longo dos séculos, a juros que se multiplicam até o infinito, resta um ser que se mantém sem ajuda e sem ligações face ao exterior; do mundo fenomenal, apenas recebe imagens, inconstantes e insuficientes, que pouco a pouco transforma em imagens de representações com ajuda de experiências que se repetem e se consolidam, desse modo orienta-se passo a passo no caos do mundo fenomenal. As criações artísticas, metafísicas e mais tardiamente científicas são reações poderosas e admiráveis buscando dominar o caos. O medo imensurável face o contato sem mediação com o mundo fenomenal, leva à busca de artifícios capazes de o liberar do caos das impressões afetivas e intelectuais. O ritornello[3] é talvez o primeiro instrumento nesse exercício vital de afirmação da vida.
Nossa aventura começa na Grécia antiga, na cidade, arena e teatro dos amigos e rivais, onde os amigos da sabedoria tornam a palavra rainha. Platão propõe, usando apenas a palavra, construir um discurso que seria juiz de toda palavra. A questão é retirar, do sensível no devir, o inteligível. Fundamento para a escolha do verdadeiro pretendente. Já nesse procedimento o saber envolve o tempo, a reminiscência, a volta ao passado, conforme a técnica de questionamento de Sócrates, mas Platão interrompe a viagem do pensamento ao passado e faz intervir um mito introduzindo de um só golpe a eternidade e o mundo das ideias. A doutrina das ideias constitui uma ontologia do ser, uma pedagogia que visa instituir uma forma de competência universal que seria a competência da razão. A inteligibilidade parcial do devir, mundo das aparências, vem do fato de ser ele uma cópia, realizada pelo demiurgo, contemplando o mundo das ideias[4]. Conhecer é recordar as ideias contempladas antes de encarnar; para isso é preciso uma difícil técnica de lutar contra as distrações da carne: afecções e afetos do corpo no devir. Conseguir se purificar para conseguir contemplar as ideias, no entanto, era um difícil investimento que poderia tardar anos sem garantia de sucesso. Poucos concordariam em se submeter “a provas terríveis para lhes aumentar a firmeza e lhes ensinar a morrer para o sensível buscando contemplar as ideias”[5]. Aristóteles, aluno da Academia de Platão, pensava que o mestre não percebera o que tinha alguma possibilidade de tornar a filosofia crível e aceitável por um número suficiente de pessoas, necessário para produzir o efeito empírico que Platão desejava. Aristóteles rompe com o mestre, inventa um modo de superar essas dificuldades e funda o Liceu onde ensina a sua nova invenção. Para Platão, há um corte absoluto entre o mundo eterno das ideias, apenas acessível ao espírito, e o mundo sensível do corpo no devir onde vivemos. É essa ruptura que torna necessária uma educação longa e violenta, necessária para dar acesso ao mundo das ideias. No Liceu o aprendiz de filósofo parte do mundo sensível no qual ele crê e tem acesso imediato, onde tem suas experiências. Para aprender é preciso fazer, mas para expor o que aprendeu é preciso falar de modo unívoco: quando no início de uma demonstração se dá um sentido a uma palavra, esse deve ser mantido até o fim da demonstração. Partindo dessas premissas, Aristóteles se consagra a um procedimento lógico para regulamentar o discurso: está nascendo a representação. O fundamento não está mais nas ideias transcendentes e eternas, mas no sensível, acessível a todos, e no discurso logicamente consistente que representa e explica o mundo empírico onde temos nossas experiências sensíveis. O discurso assim formalizado deve corresponder à experiência do outro para se tornar convincente e provocar a adesão, mas agora a concordância se refere à coisa de que se fala e não à ideia. É importante notar que não propõe nenhum experimento para confirmar aquilo que o discurso qualificado relata. A ciência aristotélica, em particular a física, é puramente descritiva, é uma física da constatação.
Daremos agora um pulo de aproximadamente dois mil anos, passando pelos neoplatônicos, especialmente Plotino, pela instauração do cristianismo com seu Deus único e desencarnado, criador de tudo o que existe, das instituições da igreja católica e do surgimento do Islamismo. É ao longo desse extenso período que se produz a mutação que leva do corpo-prazer dos gregos à carne-desejo do Cristianismo[6], construção de uma nova subjetividade onde o desejo, purificado das distorções e distrações produzidas pela carne, investe num mundo transcendente e imaterial: o reino dos céus. Nesse período se produzem importantes invenções em diferentes domínios; têm especial interesse para a construção de nosso diagrama as que ocorrem no domínio da matemática. Esses elementos são essenciais para a emergência da primeira revolução copernicana: a constituição de um sujeito do conhecimento separado do corpo. Esse sujeito é pensamento puro. O sujeito empírico que está aqui no devir é desqualificado em proveito do sujeito ideal que faz o impensável: se localiza no centro do sol. Nessa nova posição, onde apenas o espírito pode ir, a realidade se torna transparente e matematizável. A ciência do real não é mais descritiva, torna-se abstrata e axiomatizada em termos matemáticos[7]; como afirma Galileu, a realidade sensível é inteligível, desde que se façam as análises necessárias e se aperfeiçoe o instrumento matemático necessário, imaginando o que não se vê e desenvolvendo por extrapolação, no âmbito da experiência possível, o que é dado na experiência efetiva[8]. Para o recorte necessário à construção do diagrama que buscamos constituir, pode-se dizer que o renascimento e o mundo clássico que daí surge tem o seu fundamento na constituição de um sujeito separado do corpo. A constituição de um sujeito é o começo de um cuidadoso e difícil processo produzido ao longo da idade média (mais de mil anos)[9], culminando na construção de uma nova representação do mundo, pois, como nos mostra Coli[10], a representação antiga de Aristóteles é inteiramente objetiva, se funda num discurso que pretende ser o decalque dos objetos. É Descartes quem enuncia, organiza e produz de modo exemplar as primeiras aventuras do Cogito realizadas por essa nova invenção: O SUJEITO. Ele parte da dúvida quanto à veracidade dos dados sensórios para desqualificar os pressupostos objetivos da representação antiga (Aristóteles e a Escolástica). Duvidando do que se obtém pelos dados sensórios ele chega a uma única certeza: quando duvido penso e se penso, enquanto penso, existo. Assim é que o Cogito é erguido como fundamento, o novo pressuposto, agora subjetivo, que permitirá construir a nova representação e, em particular, a nova ciência. “Ele pôde salvar-se do labirinto do erro e da dúvida e descobrir a certeza da verdade intelectual e encontrar Deus. O empirismo puro não leva a nada. Nem mesmo à experiência, pois toda a experiência supõe uma teoria prévia. Interrogação da natureza, a experiência implica uma linguagem na qual seja formulada”.[11] Essa é a primeira revolução copernicana, o pensamento se separa do corpo, inventa-se o sujeito do conhecimento e esse irá se fixar no inóspito centro do astro-rei para explicar o movimento dos astros, constituir a lei da inércia, o ideal movimento retilíneo e constante, a geometria analítica, construída em termos algébricos sem a necessidade de figuras espaciais como a geometria euclidiana. “Descartes fez o resumo, a expressão da situação essencial do homem do seu tempo e simultaneamente aperfeiçoou a mais formidável máquina de guerra, construída até então, contra a autoridade e a tradição”[12]. Estabelece-se um deslocamento do empirismo visível e aparente para uma subjetividade onde a verdade pode ser estabelecida pelo método analítico e confirmada pela experiência. A partir de Galileu e Descartes o mundo ficou separado em duas substâncias: res cogitans e res extensa. A matéria que ocupa a extensão possui apenas inércia. A extensão é constituída como parte extraparte, não é dotada de interioridade. O movimento é produzido por forças externas e quando não sofre a ação destas se mantém imutável. A nova representação, que tem seu fundamento na subjetividade solipsista do eu penso, é constituída por ideias representativas. A forma será sempre imposta exteriormente na matéria; o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, torna-se o artífice do mundo, nascem as máquinas e os objetos artificiais. O novo modelo analítico construtivista produzido pela inteligência deve moldar a matéria na extensão e realizar o imperativo: crescei, multiplicai-vos e dominai o mundo. Nasce a ideia de progresso e de aperfeiçoamento. A tecnologia torna-se o imperativo que desloca o entendimento: desde que se consiga realizar o trabalho útil, o domínio da natureza, vale o “tudo se passa como se…”[13]. O que fica de fora desse programa científico, e Galileu e Descartes tinham consciência disso, é a vida e a sensibilidade. Como o pensamento abstrato pode mover a matéria?
Não é difícil reconhecer o que existe de semelhante entre Platão e Descartes: a desqualificação do empírico como fundamento, o pensamento abstrato desencarnado, as ideias claras e distintas que constituem o fundamento do modelo da recognição e que são inatas, criadas por Deus. O exercício concordante de todas as faculdades que constitui o mesmo objeto que é visto, tocado, lembrado, concebido,… A forma de identidade do objeto exige um fundamento que deixa de ser as ideias transcendentes, fora do corpo e desloca-se para a unidade de um sujeito pensante do qual todas as outras faculdades devem ser modos. “É a identidade do Eu no Eu penso que funda a concordância de todas as faculdades, entendidas como modos, e seu acordo na forma de um objeto suposto como sendo o Mesmo. O pensamento não é uma faculdade como as outras; referido a um sujeito é a unidade de todas as outras faculdades que são apenas seus modos”[14].
A primeira revolução copernicana traz a novidade de uma nova substância, o pensamento, distinta da substância extensão onde se encontra o corpo. Kant critica Descartes exatamente por isso: fazer do sou uma substância pensante. Nada fundamenta essa pretensão do Eu. Vamos tomar um exemplo de Simondon[15]. Suponha uma argila pronta para ser utilizada pelo artesão. O que caracteriza a argila assim preparada é ser uma substância inteiramente homogênea, pronta para receber uma forma que lhe dará a determinação necessária para constituir um indivíduo (matéria e forma), determinação extrínseca que permite empiricamente diferenciar um indivíduo de outro: copo e xícara. A forma de determinação da argila é o espaço. A determinação eu penso implica um indeterminado: sou uma coisa que pensa. Nada nos diz, no entanto, como o indeterminado é determinado pelo penso. “A dificuldade deixada por essa tarefa consiste na heterogeneidade pressuposta do objeto do sentido interno em relação aos objetos dos sentidos externos, no sentido de que apenas o tempo é inerente àquele como condição formal de sua intuição, ao passo que a estes apenas o espaço o é.”[16] Como esclarece Deleuze, “na consciência que tenho de mim mesmo com o puro pensamento, sou o próprio ser; é verdade que dessa maneira nada deste ser me é ainda dado a pensar”. Kant acrescenta um terceiro valor lógico: a forma sob a qual o indeterminado é determinável (pela determinação). “Esse terceiro valor basta para fazer da Lógica uma instância transcendental. Ele constitui a descoberta da Diferença, não mais como diferença empírica entre duas determinações, mas Diferença transcendental entre a determinação e o que ela determina – não mais como diferença exterior que separa, mas Diferença interna e que relaciona a priori o ser e o pensamento um ao outro…” “Deste modo, a espontaneidade da qual tenho consciência no Eu penso não pode ser compreendida como atributo de um ser substancial e espontâneo, mas somente como a afecção de um eu passivo que sente seu próprio pensamento, sua própria inteligência; aquilo pelo qual ele diz EU exercer-se nele sobre ele, mas não por ele…” “A atividade do pensamento aplica-se a um ser receptivo, a um sujeito passivo, que, portanto, representa para si esta atividade mais do que age, que sente seu efeito mais do que possui a iniciativa em relação a ela e que a vive como um Outro nele… Uma rachadura no Eu, uma passividade no eu, eis o que significa o tempo; e a correlação do eu passivo e do EU rachado constitui a descoberta do transcendental ou o elemento da revolução copernicana.”[17] Como veremos em mais detalhes adiante, incorporando os trabalhos de Riemann e Bergson, Deleuze dará ao Eu rachado uma compreensão distinta daquela que fez Kant e o neokantismo.
Ainda que totalmente abstrato, o sujeito do conhecimento em Descartes gira em torno do objeto, o conhecimento só existe se for confirmado pela experiência, a razão emite um juízo sobre a representação subjetiva, mas esse juízo só se torna um saber se for confirmado pela experiência. Kant, depois de quase dois séculos de sucesso da ciência, utilizando o método científico para fazer uma investigação crítica na metafísica, faz uma descoberta notável: o sou não é dado como objeto, é constituído por uma síntese a partir do sentido interno e os fenômenos só ganham inteligibilidade a partir dos a priori a toda experiência possível. Para Kant a sensibilidade e o entendimento são as duas fontes do conhecimento humano. A sensibilidade é a receptividade do sujeito pela qual a sua disposição de formar representações é afetada de algum modo pela presença de um objeto qualquer. A intuição é o modo pelo qual um conhecimento se reporta imediatamente a objetos; sensibilidade indica a faculdade que torna possível a intuição de objetos. Fenômeno é o que é percebido pelos sentidos como representação sensível. No fenômeno Kant distingue uma matéria (sensação) e uma forma, o que permite organizar a diversidade das sensações do fenômeno. A faculdade da sensibilidade recebe intuições de objetos que são os fenômenos, constituíveis de uma forma a priori e de uma matéria que é a informação sensorial a posteriori contida no fenômeno. A intuição sensível esvaziada de todo conteúdo sensorial é uma intuição pura. Só existem duas intuições puras, ou duas formas de fenômenos: o espaço e o tempo. A forma dos sentidos externos e a forma do sentido interno. O espaço não é o resultado de uma sensação, nem um conceito intelectual, é uma intuição pura a priori, independente do seu conteúdo sensorial. “Não se pode tomar emprestada a representação do espaço às relações dos fenômenos externos pela experiência, mas essa experiência externa só é possível por meio dessa representação[18].” O espaço é a condição de possibilidade pura de toda intuição sensível de um objeto externo. Torna possível a geometria: relações necessárias às representações puras tomadas no espaço. O espaço assim concebido é real, faz parte de um sujeito sensível e também é ideal pois é uma condição de possibilidade necessária a toda experiência possível. O tempo é a forma pura do sentido interno sem a qual a percepção da simultaneidade e da sucessão seria impossível. O tempo não existe nas coisas, mas nas condições subjetivas de sua intuição. O objeto pode ser espacial ̶ nesse caso ele se reporta ao tempo pela mediação da representação interna que tenho dele – ou o objeto me é dado primeiramente pelo meu espírito, sentido interno, e nesse caso o tempo é sua condição imediata. Só conhecemos através da experiência, mas toda experiência possível tem como a priori o tempo e o espaço; o sujeito transcendental e o objeto x, constituídos como sínteses pela apercepção.
As proposições sintéticas a priori são possíveis como elaboração das formas puras da sensibilidade: espaço e tempo. Um exemplo é a geometria. O transcendental em Kant qualifica um conhecimento universal que concerne aos conceitos a priori e implica uma necessária submissão do mundo empírico aos conceitos de sujeito e objeto, enquanto sínteses a priori. A estética transcendental é a ciência das formas puras da sensibilidade, do espaço e do tempo, condições a priori sob as quais a intuição dos fenômenos é possível. Nasce o transcendental, algo que não pode ser dado na experiência, mas sem o qual não há experiência possível, nem mesmo a constituição do Eu no pensamento. São necessárias as sínteses do sujeito, que têm na apercepção a condição de possibilidade, para que os fenômenos sucessivos, as aparições, possam dar lugar à representação da coisa[19]. Kant coloca o sujeito no transcendental; o novo sujeito, condição de possibilidade de toda experiência, é o sujeito transcendental. Um deslocamento tremendo no saber se produz, saímos da dupla essência e aparência, matéria e forma, para aparição e condição de possibilidade da aparição. Não há mais nada por trás do que aparece, apenas o fenômeno e as condições de sua aparição. É a nova revolução copernicana; o objeto agora gira em torno do sujeito, o objeto é constituído pelo sujeito mediante sínteses das percepções, das aparições (fenômenos). Os fenômenos, as aparições, constituem um campo de imanência, mas sem as sínteses do tempo, permanece o caos da sucessão de instantes. “O princípio supremo da possibilidade de toda intuição em relação à sensibilidade é que todo o diverso da mesma esteja sob as condições formais do espaço e do tempo. O princípio supremo dessa mesma possibilidade em relação ao entendimento é: que todo diverso da intuição esteja sob condições da unidade originariamente sintética da apercepção.”[20]“Não é por meramente pensá-lo que conheço um objeto, mas porque determino uma intuição dada, com relação à unidade da consciência em que todo pensamento consiste, que conheço um objeto. Por isso nenhum modus da autoconsciência no pensamento é, em si, um conceito inteligível de objetos, mas sim uma função meramente lógica que não dá qualquer objeto ao pensamento, portanto tampouco a mim mesmo como objeto. Não é a consciência do eu determinante, mas sim a do eu determinável, i. e., de minha intuição interna (na medida em que o seu diverso pode estar ligado à condição universal da apercepção no pensamento), que é o objeto.”[21] Fica claro que a autoconsciência não se apresenta como um objeto para ser conhecido, mas, ao contrário, esse objeto precisa ser produzido como resultado de uma síntese. O sujeito transcendental, as categorias e a apercepção são a prioris universais e o universal, neste sentido, é um absoluto lógico. O desejo platônico de deslocar-se para o suprassensível está sendo realizado, embora o suprassensível aqui é distinto do mundo das ideias e as ideias não são mais eternas e imutáveis. Segundo Kant, a faculdade de desejar, na sua forma superior, é determinada não por representações de objetos (sensíveis ou intelectuais), não por sentimentos de prazer ou dor que ligariam representações desse gênero à vontade, mas pela representação de uma forma pura. “Esta forma pura é a de uma legislação universal. A lei moral nos ordena pensar a máxima de nossa vontade como princípio de uma legislação universal… uma ação cuja máxima pode ser pensada sem contradição como lei universal. O universal, nesse sentido, é um absoluto lógico.” Crítica da Razão Pura: modo de determinar os a priori necessários a toda experiência possível; Crítica da Razão Prática: modo de determinar uma moral universal. A forma de uma legislação universal pertence à Razão. Contrariamente à faculdade do entendimento, que nada pensa de determinado se suas representações não são aquelas de objetos restritos às condições de sensibilidade, a representação racional é independente de sentimento, de matéria, de qualquer condição sensível. Mas assim como a ciência não pensa[22], a razão não raciocina: a consciência da lei moral é um fato único da faculdade que se anuncia originariamente como legisladora. A faculdade de desejar, encontrando sua determinação em si mesma chama-se vontade autônoma. Essa faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar é a Razão e a vontade determinada pela razão é uma vontade livre. “É pela lei moral, unicamente, que nos sabemos livres, que nosso conceito de liberdade adquire uma realidade objetiva, positiva e determinada. Na autonomia da vontade encontramos uma síntese a priori que dá ao conceito de liberdade uma realidade objetiva determinada.”[23] Mais de dois mil anos foram necessários para que as mutações no corpo e na subjetividade do homem europeu permitissem que se atingisse finalmente o reino dos céus. A Santíssima Trindade: o Deus único desencarnado, criador de tudo que existe; o Filho, que comunica o verbo, e o Espírito Santo, que ilumina a razão, estão presentes diretamente na constituição de um governo dos homens que legisla segundo as leis de Deus, sem esquecer o livre arbítrio, a vontade livre. Finalmente “as provas terríveis para lhes aumentar a firmeza e lhes ensinar a morrer para o sensível buscando contemplar as ideias” tiveram sucesso. Uma síntese envolvendo o homem do desejo (Platão) e o homem da sensibilidade (Aristóteles): a moral, construída pela faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar e que se atualiza como a ação que afirma a essência do homem: animal racional. A essência do homem implica na necessidade de construir uma civilização onde essa essência possa desabrochar sem impedimentos. Esse desenvolvimento da cultura europeia, que teve sua consumação em Kant, pressupõe “as práticas através das quais os indivíduos foram levados a voltar a atenção para si mesmos, a decifrar-se, a reconhecer-se e a assumir-se como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo mesmo uma certa relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser”[24].
A razão aparece então como a faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar.
No mundo do devir só entramos em contato com fenômenos, aparições, isso implica que a coisa em si não pode ser conhecida, deve apenas ser pensada para servir de fundamento aos fenômenos sensíveis, desse modo marcando os limites do conhecimento e remetendo esses, às condições de sensibilidade. Temos faculdades receptivas, passivas e faculdades ativas, criativas. Quando o fenômeno corresponde a faculdades ativas, espontâneas que não se reduzem a simples sensibilidade, a coisa em si, o noumeno, deve ser pensado como livre. Em princípio somos seres inteligentes dotados de entendimento e razão, pelo que acabamos de ver, enquanto inteligentes, devemos pensar a nós mesmos como membros de um mundo suprassensível, dotados, no âmbito da criatividade, de uma causalidade livre. Os fenômenos, tais como eles aparecem sob as condições do espaço e do tempo, são submetidos à lei de uma causalidade natural segundo a qual cada um é efeito de um outro, cada causa é ligada a uma causa anterior até o infinito. A vontade autônoma, ao contrário, define-se por um poder de “começar de si mesma um estado, cuja causalidade não entra (como na lei natural) sob uma outra causa que a determina no tempo[25]”. Desse modo a lei moral, como lei da vontade, se encontra inteiramente independente das condições naturais da sensibilidade que ligam toda causa a uma causa anterior, nada é anterior a esta determinação da vontade. A vontade autônoma aparece como o único conceito que dá às coisas em si a garantia de um fato e que nos faz penetrar efetivamente no mundo inteligível. O projeto crítico de Kant é levado a um ponto onde a unidade e a identidade do sujeito é dissolvida e o pensamento crítico torna-se indiscernível do pensamento especulativo. É precisamente esse ponto de indiscernibilidade que Deleuze encontra na separação do sujeito elaborada por Kant como o Eu receptivo, o pensamento como determinação e o tempo como forma de determinação (o Eu rachado). Não há como preservar a identidade e a unidade do Eu sem lançar mão de uma síntese a priori. “Quando Kant põe em questão a teologia racional, ele introduz, no mesmo lance, uma espécie de desequilíbrio, de fissura ou de rachadura, uma alienação de direito, insuperável de direito, no Eu puro do Eu penso: o sujeito só pode representar sua própria espontaneidade como sendo a de um Outro, invocando, com isto, em última instância, uma misteriosa coerência, que exclui a sua própria, a do mundo e a de Deus. Cogito para um eu dissolvido: o Eu do “Eu penso” comporta, em sua essência, uma receptividade de intuição em relação à qual, desde então, Eu é um outro. Pouco importa que a identidade sintética e, depois, a moralidade da razão prática restaurem a integridade do eu, do mundo e de Deus, e preparem as sínteses pós-kantianas; entramos, por pouco tempo, nesta esquizofrenia de direito que caracteriza a mais alta potência do pensamento e que abre diretamente o Ser à diferença, desprezando todas as mediações, todas as reconciliações do conceito”[26].
No começo do século XX, a física, em particular a mecânica quântica, também entrou em contato com esse indiscernível no pensamento que leva a dissolução do sujeito-objeto remetendo-os ao que se diz da diferença em seu eterno retorno, em função do que se seleciona como a repetição do mesmo no experimento. A imanência dos fenômenos frente a vontade de dominá-los visando um trabalho útil. Mas parece que na física, como ocorreu na filosofia, os a priori da teologia racional retornaram dissimulados em complexas interpretações estatísticas visando preservar a identidade da lei e da representação, mantendo o modelo do reconhecimento e da semelhança como modo de averbação do conceito pelo empírico no entendimento. A representação deixa escapar o mundo afirmado da diferença. A representação é sempre referida ao sujeito transcendental, tem apenas um centro, “ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação”. Na representação o movimento é representado pela sua trajetória e supõe o espaço e a geometria universais. É nesse ponto que Riemann faz uma contribuição fundamental. Ele mostra que a ideia de espaço é um misto que contem dois conceitos independentes: multiplicidade extensa e geometria. Os espaços de Riemann são inomogêneos e desprovidos de qualquer simetria a priori. A distância nesses espaços é uma estrutura distinta da multiplicidade extensa e caracterizada por uma forma diferencial quadrática que generaliza a fórmula de distância euclidiana entre dois pontos. Nesses espaços, como salienta Cartan, dois observadores (sujeitos) vizinhos podem localizar pontos em um espaço de Riemann em suas vizinhanças imediatas, mas sem uma convenção adicional, não podem ser localizados um em relação ao outro. Cada vizinhança pode ter a sua geometria caracterizada, mas a conexão de uma vizinhança com a seguinte não é definida e pode ser estabelecida em uma infinidade de distintas maneiras. Os espaços riemannianos, como propostos por ele, são uma coleção amorfa de retalhos justapostos sem conexão uns com os outros. Fica evidente aqui a necessidade de uma revisão crítica da síntese do sujeito transcendental proposta por Kant, devido à inexistência a priori de uma geometria para o extensio. Como enfatiza Cartan: “a procura de leis físicas não pode ser dissociada do problema cosmológico. A integração não é uma extensão da integração local”[27]. Para ultrapassar essa dificuldade, Einstein e os físicos desde então lançam mão de uma média estatística e instituem NOVAMENTE um espaço homogêneo abstrato em substituição ao espaço real inomogêneo. A estrutura dinâmica real do universo é substituída por uma estrutura a priori abstrata e homogênea cujo conteúdo material, também homogêneo por construção, é obtido por uma média estatística sobre o mundo empírico observado. Talvez o melhor modo de se familiarizar com essa questão seja atentar para o modo como a física clássica e moderna, desde o começo, estudam o movimento representando-o como a mudança de posição de um objeto (partícula), abstraído do todo aberto que o inclui, colocado em um espaço homogêneo abstrato e retendo a sua trajetória: síntese representativa das posições sucessivamente ocupadas pelo objeto nesse espaço abstrato. O movimento, produzido pela força, é de outra natureza que aquilo que a ciência toma para representá-lo e pensá-lo: a trajetória. O movimento não se confunde com o espaço percorrido. O espaço percorrido é infinitamente divisível, enquanto o ato de percorrer é indivisível ou muda de natureza em cada divisão. O movimento de uma pedra lançada ao longe não pode ser reconstituído por dois lançamentos distintos, o que podemos fazer sem dificuldade com a trajetória que o movimento deixou em seu passado e que pode ser arbitrariamente dividida sem mudar de natureza. Os espaços percorridos pertencem todos a um único e mesmo espaço homogêneo, enquanto os movimentos são heterogêneos e irredutíveis entre si. Essa diferença em tratar o movimento aponta para a necessidade de precisar o Todo onde o movimento se desenrola. Quando o todo for atribuído a priori, obteremos um conjunto e o Todo será necessariamente fechado; o tempo torna-se consequência do conjunto, não há mais lugar para o movimento real que necessariamente torna o Todo aberto. O movimento é uma translação de partes no espaço, mas cada vez que há translação de partes no espaço há também mudança qualitativa num todo. O problemático é que o movimento exprime uma mudança na duração e temos de precisar essa expressão e o Todo aberto que a exprime. Essa dificuldade está no centro dos paradoxos da mecânica quântica e de suas diferentes interpretações. Em ato, até ser medido, o movimento não tem propriedades atuais e, ao ser medido, muda de natureza. Ademais, representa-se o movimento por soluções de uma equação diferencial linear, onde um movimento, representado por uma solução, pode ser sempre escrito como a soma de outras soluções dessa mesma equação linear. O movimento em ato é representado por algo que é de outra natureza. Isso está no âmago do fato de que o real não pode ser reduzido ao atual. Nem o virtual construído como um decalque do atual, de suas antigas versões e de seus possíveis. O real é sempre virtual e atual, mas então constituído de naturezas distintas e irredutíveis, ademais o real dura. Não podemos nunca falar em termos de espaço e tempo, temos sempre blocos espaço-tempo, cujo desenrolar permanece indeterminado. Na ciência (em particular na física), como na filosofia acadêmica, o fenômeno é sempre pensado como referido a uma instância receptiva, passiva e mediada pela representação. É assim na constituição da percepção em psicologia, como na constituição da observação ou da medida nos experimentos em física. Os fenômenos na imanência do devir só podem ser retirados do caos mediante uma intervenção ativa que produz simultaneamente o conceito e o acontecimento, atualizado em um experimento. Enquanto a intuição é receptiva, segundo a imagem do pensamento da representação, uma vez que devemos aguardar a ocorrência do acontecimento, os conceitos são caracterizados por espontaneidade, invenção, na medida em que eles são criados na ausência do referente. Nesse modo de pensar, próprio da representação, no qual a intuição finita e receptiva precisa sempre ser complementada por um conceito no intelecto que representa a diversidade do empírico na unidade do conceito, o entendimento só será atingido pela adequação do conceito com a intuição empírica.
Fora da representação, a intuição criativa entra imediatamente em relação com os fenômenos de tal modo que o pensamento da coisa produz instantaneamente a coisa. “É estranho que se tenha podido fundar a Estética (como ciência do sensível) no que pode ser representado no sensível. É verdade que não é melhor o procedimento inverso, que subtrai da representação o puro sensível e tenta determiná-lo como aquilo que resta, uma vez despida a representação (um fluxo contraditório, por exemplo, uma rapsódia de sensações). Na verdade, o empirismo se torna transcendental e a Estética se torna uma disciplina apodítica quando apreendemos diretamente no sensível o que só pode ser sentido, o próprio ser do sensível: a diferença, a diferença de potencial, a diferença de intensidade como razão do diverso qualitativo. É na diferença que o fenômeno fulgura, que se explica como signo: e é nela que o movimento se produz como “efeito”. O mundo intenso das diferenças, no qual as qualidades encontram sua razão e o sensível encontra seu ser.”[28] É esse o portal, a intuição criativa fora da representação, que possibilita o acesso ao plano de imanência, a construção do plano de imanência onde a vida se afirma como uma ética, não mais como uma moral. Mas pelo que vimos até aqui, é imperativo distinguir signos e sinais, que nos colocam diretamente em contato com o que só pode ser sentido, de símbolos, que pressupõem uma convenção, uma estrutura, um código como a linguagem. A definição de linguagem que nos dá Benveniste[29] é esclarecedora do que está em jogo ao se afirmar a necessidade de fazer essa distinção. Segundo ele, para que exista linguagem é necessário que alguém que não viu um determinado fato e que apenas ouve um relato desse fato seja capaz de relatar esse fato a um outro, que também não tenha presenciado o fato, e esse último compreenda o que lhe foi narrado. Benveniste cita o exemplo das abelhas: elas são capazes de, visitando um lugar cheio de flores, voltar e indicar mediante sinais o local onde se encontram as flores para outras abelhas. Aquelas que não entraram em contato com as flores, que apenas receberam a informação do local, são capazes de ir colher o néctar, mas não são capazes de indicar o local para outras abelhas. É importante lembrarmos que abrimos nosso texto chamando a atenção para o deslocamento das relações de poder que ocorreram na Grécia Antiga e que permitiram um deslocamento de sentido para a linguagem. No império antigo, p. ex., no Egito Antigo, a língua dá ordens, a palavra transmite os mandamentos do império, a linguagem impõe coordenadas e obediência. Na Grécia Antiga, sociedade dos amigos e rivais, os homens são todos iguais e a palavra muda de sentido; ela não transmite ordens, mas busca o convencimento. O discurso deve buscar se tornar convincente e provocar a adesão e concordância; é nessas condições que se inventam a razão e a verdade[30]. Mas em ambos os casos não se abre mão do simbólico, da estrutura e da representação.
No que se segue, buscaremos dar consistência ao conceito de ética como autonomia dos afetos[31] e tornar claro em que ele se distingue do conceito de moral e como subsiste fora da representação.
Buscaremos explicitar todas as implicações da fórmula fundamental de Espinosa que estabelece de modo definitivo a distinção entre moral e ética: “os seres se definem por sua potência e não por sua essência.” Para Espinosa só existe uma substância, que é a multiplicidade infinita das causas. A substância se expressa em seus infinitos atributos dos quais conhecemos apenas o atributo pensamento e o atributo extensão. As ideias são modos do atributo pensamento e a cada modo do pensamento corresponde um modo na extensão; remarcamos que as ideias para Espinosa não têm um valor representativo, mas sim expressivo[32]. À ideia de corpo no pensamento corresponde um modo na extensão e o que dá a individuação desse modo é um grau de potência: o que determina o que pode esse corpo pensado como uma hecceidade imanente em um estado metaestável[33]. Contrariamente a Adão, que foi criado a imagem e semelhança de Deus, portanto com uma essência perfeita e só decai porque peca, desobedece a Deus, o corpo vivo, segundo Espinosa, ao nascer ainda terá de conquistar a sua afirmação no mundo; os que querem tornar-se homens, que não é meu caso, precisam aprender a ser capazes de fazer uso da razão e só assim tornar-se-ão humanos. Faz-se necessário um longo aprendizado de como selecionar os encontros e os agenciamentos entre modos no devir para promover o aumento de sua potência. Só assim poderá aumentar sua potência de agir e de pensar e, talvez, ter acesso à razão. Na extensão, o modo é afetado por outros modos e por autoafecções. As afecções produzem afetos que são a duração das mudanças de estado, no corpo, produzidas pelas afecções. Conhecer um corpo é saber o que ele pode: saber quais modos pertencem às suas relações características de movimento e repouso, saber o conjunto dos afetos intensivos de que ele é capaz. Segundo a moral, o corpo humano tem uma essência no sentido aristotélico: animal racional. Mesmo para Descartes, o corpo é criado junto com as ideias inatas, claras e distintas e terá de se comportar de acordo com sua essência para que ela possa desabrochar em sua plenitude. Isso será elaborado por Kant, mas, como vimos, para ele o indivíduo é um condicionado finito e a razão busca estabelecer a totalidade das condições a que ele está condicionado, ou seja, o incondicionado. Ao sistematizar os atos do entendimento, a razão ultrapassa os limites da experiência. No plano teórico a razão deve renunciar a legislar apenas no campo da experiência possível e recuperar o seu poder no domínio prático ao determinar a vontade e, desse modo, elevar a faculdade de desejar à sua forma superior (obediência ao imperativo categórico da lei, obtendo assim a sua liberdade). Por esta pequena exposição já fica claro que o sentido de razão para Aristóteles, Descartes e Kant é distinto do sentido empregado por Espinosa; segundo a Ética, só é possível ter acesso à razão quem conhece praticamente as noções comuns. A potência que determina a essência em Espinosa é uma variável intensiva que só tem um limite inferior no zero, fora isso, é indeterminada e varia de acordo com a competência de administrar e selecionar os agenciamentos no acaso dos encontros. Essa variável caracteriza que os existentes são distintos do ponto de vista quantitativo. Cada um se determina pelo que pode, não por uma essência, isso explica porque não são seres, mas modos de ser. Cada modo recebe na existência um grau de potência, que pode aumentar ou diminuir de acordo com a seleção dos agenciamentos efetuados no acaso dos encontros. Além dessa distinção quantitativa, os modos na existência têm uma polaridade qualitativa, polaridade dos distintos modos de existência determinada pelos modos de afecção (ativa e passiva) cujos extremos são, de um lado, o indivíduo soberano e no outro extremo o escravo. O indivíduo soberano é o que se distingue por um máximo de autoafecção para preencher sua potência de ser afetado. O outro extremo de polaridade, o do escravo, é caracterizado por um máximo de paixões; o indivíduo depende de afecções externas para preencher sua potência de ser afetado. É o modo de vida que distribui os indivíduos entre esses dois extremos, a sua ética. É o livro IV da ética que desenvolve a ideia dos modos polares de existência. Esses dois extremos da polaridade, escravo e indivíduo soberano, nada têm a ver com a condição social; tratam-se unicamente de um estilo de viver, de preencher sua potência de ser afetado[34]. Há pessoas que ocupam os lugares mais altos na escala social e são, segundo a classificação de Espinosa-Nietzsche, escravos; os exemplos genéricos desses casos são o tirano e o sacerdote, ambos necessitam da tristeza dos sujeitos a eles submissos. Eles necessitam para se afirmar do terror e do remorso (da culpa); ambos sentimentos que têm por base a tristeza. O escravo aparece como aquele que se sente melhor quando tudo vai mal, quando a carência impera na sociedade.
A moral implica uma instância superior ao ser, na moral trata-se de julgar a existência, daí a necessidade da instância superior que estabelece o fundamento segundo o qual a existência em geral é julgada. A moral implica sempre uma essência e um meio em que se encontra essa essência e no qual ela necessariamente não está realizada. É assim que o louco e o doente podem ser patologizados, nunca em função de seus graus de intensidade, mas em função daquilo que eles podem.
Na ética, a essência é um grau de intensidade, uma determinação singular. Temos o grau de intensidade deste ou desta, nunca a determinação geral do Homem. Ademais dessa distinção puramente quantitativa e singular, há uma oposição qualitativa entre os modos singulares de existência. Os modos de existência são no Ser desde dois pontos distintos e simultâneos: segundo a distinção qualitativa dos modos de existência e segundo a escala quantitativa do grau de potência dos existentes. Os modos de existência são inteiramente imanentes. Segundo a Ética, o que distingue os modos de existência, o que distingue este cachorro daquele homem é o que cada um pode e os afetos de que são capazes. A questão é o que pode esse determinado corpo e isso só pode ser estabelecido pela experiência, nunca a priori pela essência metafísica ou definição. Agora podemos dar sentido a vontade de potência: a vontade de potência é a operação pela qual cada um de nós busca afirmar sua potência. Não é uma questão de desejo, de poder sobre outros, mas de afirmar o que tenho. A potência não é então objeto da vontade; ao contrário, é segundo a potência que tenho que quero isto. Por isso a questão ética, e que vale para todo o ente vivo, é o que pode um corpo. Nunca a questão moral: o que deves fazer segundo tua essência.[35]
Com o que percorremos até aqui podemos afirmar com rigor que o sujeito aparece como constituído como objeto a partir de elementos do fluxo da experiência; ele é constituído no interior desse fluxo, como um fenômeno entre tantos outros. Eu apenas tenho a experiência dos efeitos de meu pensamento e nunca da espontaneidade do pensamento. A multiplicidade do fluxo da experiência pode, mas não precisa ser pensada como referida à unidade da apercepção e do universal sujeito transcendental[36]. É ai que aparecem Nietzsche-Simondon-Deleuze: “Ir-se mais longe do que Kant, pela supressão do Eu penso, do cogito, e das formas da consciência.”[37] Quando sujeito e objeto são ambos pensados como se produzindo no campo de imanência dos fenômenos, o tempo deixa de ser pensado como sentido interno, torna-se duração; agora mente e objetos são produzidos pela duração e na duração. Duração, campo de imanência onde modos de síntese e agenciamentos não são mais referidos ao modelo da recognição na identidade do sujeito. A individuação agora é pensada como hecceidade e o corpo, enquanto agenciamento de modos, se constitui como agente de um processo que dura e dura enquanto dura esse processo. A vida não é mais predicado de um corpo, mas sim multiplicidade de forças que produzem um processo de individuação. Um estado metaestável onde uma informação deflagra um processo de individuação.
A vida, seja ela orgânica ou inorgânica, coloca problemas sobre o atual imanente; os problemas são sempre dialéticos no sentido de Lautman[38], o que é matemático, físico, biológico, psíquico, sociológico… são as soluções e essas só tomam sentido quando referidas aos problemas que as engendram.
Não mais a dupla essência-aparência, agora apenas aparição e condição de possibilidade da aparição. Não há mais nada por trás do que aparece, apenas o fenômeno e a profundidade. É nesse campo de imanência, de aparição de fenômenos que se produz a visibilidade e os regimes de enunciados. O exemplo das crianças indianas que nascem com uma película nos olhos, como a catarata, e que serão operadas só na adolescência mas, apesar de após a operação estarem com o aparelho visual perfeito, são incapazes de ver, elucida com clareza a necessidade da produção da competência de ver: será necessário todo um aprendizado, inseparável no mundo civilizado de uma pedagogia. A competência de falar não se aprende, mas os conceitos e os regimes de enunciados são invenções e envolvem também uma pedagogia e, como podemos verificar na atualidade, os regimes de visibilidade e os regimes de enunciados não coincidem. A partir de agora o atual não esgota o real. O real tem uma componente atual dinâmica e uma componente virtual ativa e produtiva, em nada semelhante à abstração dos possíveis.
Há uma distinção fundamental entre pensar as condições necessárias a toda experiência possível e pensar as condições do atual. Em ambos os casos, o pensamento se refere à consciência, mas até mesmo esse nome toma sentidos diferentes em cada uma dessas abordagens. O universo dos possíveis pressupõe necessariamente a representação; a experiência é concebida em termos de conceitos referidos à representação e analisados segundo a consistência de seus usos mentais, funcionando no tempo para unir instantes diversos e diferentes pessoas, enquanto elementos gerais (objeto=x) na representação. É nessa abordagem que se faz necessária a formalização do sujeito transcendental e os a priori que ele envolve (apercepção, categorias), pois o que se entende por pensamento aí se reduz a “determinar uma intuição dada, com relação à unidade da consciência em que todo pensamento consiste[39] ” Para Deleuze o pensamento tem sua condição de possibilidade no encontro, no imediatamente dado, no atual conhecimento consciente adquirido no encontro. No encontro o sujeito do pensamento que aí tem início só pode representar sua própria espontaneidade como sendo a de um Outro, invocando com isso, em última instância, uma misteriosa coerência que exclui a sua própria. Só então ele pode iniciar a criar conceitos, estabelecer relações entre percepções e suas causas e assim por diante. É precisamente a atualidade do empírico, a prioridade do encontro e da experiência real que ele possibilita que permitem evitar a emergência de transcendentes e de abstrações universais que limitam a afirmação da Diferença.
Segundo Kant o sentido de transcendental é dado por: “entendo por exposição transcendental a aplicação de um conceito como um princípio, a partir do qual pode ser apreendida a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori.” Deleuze dá outro sentido e uso ao transcendental: “na consciência que tenho de mim mesmo com o puro pensamento, sou o próprio ser; é verdade que dessa maneira nada deste ser me é ainda dado a pensar. A forma sob a qual o indeterminado é determinável (pela determinação) basta para fazer da Lógica uma instância transcendental. Ele constitui a descoberta da Diferença, não mais como diferença empírica entre duas determinações, mas Diferença transcendental entre a determinação e o que ela determina – não mais como diferença exterior que separa, mas Diferença interna e que relaciona a priori o ser e o pensamento um ao outro. A correlação da consciência e do pensamento como determinação constitui a descoberta do transcendental e permite a afirmação da Diferença para além de toda limitação a priori.
Conclusão:
A primeira revolução copernicana fez com que o sujeito do conhecimento se separasse do corpo do pensador e fosse se instalar no ponto segundo o qual o movimento dos astros é representado matematicamente de modo mais simples. O sujeito do conhecimento se determina, assim, em função do movimento dos corpos externos; no caso particular de Copérnico, os corpos celestes. A consciência se separa intencionalmente do corpo do pensador e se liga à representação, fazendo dela um estado do psiquismo. O pensamento agora investe nessa estrutura abstrata onde o tempo se reduz a um parâmetro associado à mudança de posição espacial dos objetos, a representação se institui como teatro abstrato para o pensamento a serviço dos problemas do corpo social. As soluções obtidas na representação servirão à técnica como modelo para estruturar a matéria. A segunda revolução copernicana acontece com a dissolução dos objetos, entre eles o próprio sujeito da substância pensamento: só existem aparições e condições possíveis para as aparições. Tanto nos sentidos externos, como no sentido interno, só existem aparições percebidas pela consciência através da intuição. O sentido interno e os sentidos externos serão o domínio que o pensamento investe para constituir a síntese do Eu perceptivo. O Eu assim constituído fica separado em dois: o Eu perceptivo, passivo, indeterminado, e o tempo, forma de determinação que o determina pelas afecções internas. O sujeito do conhecimento agora constrói os objetos segundo sínteses no sujeito transcendental. O sujeito permanece receptivo às intuições passivas das percepções dos sentidos externos e interno. O transcendental se reduz aos a priori necessários e universais a toda a experiência possível. O uso mais emblemático do que faz a representação, ao constituir artificialmente uma subjetividade, está na Cosmologia Física, iniciada por Einstein no começo do século XX. As estrelas movem-se em órbitas condicionadas pela interação gravitacional, as galáxias, com seus bilhões de estrelas, igualmente movem-se em linhas de universo condicionadas pela interação gravitacional; por sua vez, as galáxias formam aglomerados, os quais também obedecem ao mesmo condicionamento imposto pela gravitação. As linhas de universo que esses elementos descrevem são curvas divergentes, algumas, e convergentes, outras; determinam uma estrutura que, em uma imagem instantânea, se assemelha a uma estrutura cristalina. A Cosmologia Física toma uma média da distribuição de matéria em volumes suficientemente grandes para que todas essas inomogeneidades desapareçam. Esse espaço-tempo artificial homogêneo recebe, agora como conteúdo, um gástambém homogêneo que representa a densidade de matéria-energia existente no universo. A configuração real observada, com linhas de universo divergentes entre si, está longe de implicar uma totalidade; ao contrário, tem uma riqueza de informação localizada como sofisticados bordados ou complexas estruturas cristalinas. Tudo isso é ignorado e substituído por uma configuração abstrata ideal e artificial que representa o universo por um sistema dinâmico descrito por uma equação diferencial, com um só grau de liberdade dinâmica, que é a mesma que descreve o movimento de uma partícula ao longo de uma reta sob a ação de um potencial. Depois da revolução copernicana passamos a viver num mundo organizado pela representação artificial de fundamentos subjetivos abstratos construída por Descartes e aprimorada desde então, visando dar ao mundo uma organização racional. Claro está que uma tal axiomática precisa exercer-se sobre uma totalidade, um conjunto dado a priori onde o tempo se torna uma consequência determinada pelo conjunto. Foi o que instaurou Einstein como cosmologia e que se mantém até hoje com apenas modificações supérfluas, pois, como mostramos, a dinâmica introduzida por Friedmann é completamente irreal e simplista. O capitalismo global, como bem sabemos, também se axiomatiza para além do visível, mas o termo global torna visível a aliança que fez com ele a cosmologia na produção de uma subjetividade globalizante que retira o tempo do mundo, tornando o universo conhecido tanto para o seu passado como para o seu futuro, obedecendo ao longo de toda sua existência às mesmas leis, dogma criticado por muitos físicos. Outra evidência dessa aliança é o discurso pronunciado por Einstein nas Nações Unidas, após o término da Segunda Guerra Mundial, reivindicando a instauração de um governo global para o planeta, armado com armas atômicas.
A terceira revolução copernicana busca a dissolução da dualidade sujeito-objeto. No interior dos fluxos do devir o Eu, constituído como síntese, tem apenas a experiência dos efeitos do pensamento que o afetam, nunca da espontaneidade desse pensamento. A multiplicidade do fluxo da experiência pode, mas não precisa ser pensada como referida à unidade da apercepção e do universal sujeito transcendental. Sem a síntese impositiva da identidade do Eu na representação, a individuação se produz segundo processos que ocorrem na multiplicidade dos fluxos do devir segundo modos de individuação por hecceidades que se produzem na duração e o movimento se torna ativo e descentrado. Dissolver a dualidade sujeito-objeto ou sair da representação impõe uma nova Ética que começa por alterar o funcionamento da consciência. O Homem Europeu tem sua consciência ligada à representação e faz dela um estado do psiquismo; a consciência do processo de individuação por hecceidade é movimento do pensamento, reúne-se à microimanência dos movimentos e do pensamento, a sua tendência é a criação do plano onde o pensamento se torna movimento do pensamento e a consciência reassume a sua natureza enquanto um sistema de energia, levando em conta seu dinamismo próprio. Corpo e espírito agora segregam o presente que já não foge, mas se desdobra ao longo da duração da hecceidade.
Agradecimentos.
Gostaria de agradecer a Ricardo Luiz Potsch e Pedro Sérvio Ribeiro Vieira pela leitura e comentários sobre o texto.
[1] Gilles Deleuze. A terceira síntese do tempo, em Repetição e Diferença
[2] Wilhelm Worringer. A Arte Gótica.
[3] Gilles Deleuze. Mille Plateaux.
[4] Timeu. Platão.
[5] Uma História da Razão. François Châtelet.
[6] Veja Foucault, História da Sexualidade, …
[7] O Que É Uma Coisa. Heidegger.
[8] Alexandre Koyré. Platão e Galileu.
[9] Giogio Agamben. O Reino e a Glória; Altíssima Pobreza, Alain de Libera. Arqueologia do Sujeito.
[10] Giorgio Coli. Filosofia da Expressão
[11] Alexandre Koyré. Considerações sobre Descartes.
[12] op. cit.
[13] Isaac Newton. Principios Matematicos de la Filosofia Natural y su Sistema del Mundo. Editora Nacional.
[14] Gilles Deleuze. Repetição e Diferença.
[15] Gilbert Simondon. L´Individuation Psychique et Colletive.
[16] Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura, pág. 317. II Edição, editora Vozes.
[17] Gilles Deleuze. Repetição e Diferença, pág. 151. Graal 1988.
[18] I. Kant. C.R. P.
[19] Martin Heidegger. Que É Uma Coisa.
[20] Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura, pag. 131-132. II Edição, editora Vozes.
[21] Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura, pag. 306. II Edição, editora Vozes. O negrito é nosso.
[22] Martin Heiddeger. Que Significa Pensar?
[23] Gilles Deleuze. Para Ler Kant, pág. 46.
[24] Michel Foucault. O Uso dos Prazeres e as Técnicas de Si.
[25] Kant. Crítica da Razão Prática. Citado por Deleuze.
[26] Gilles Deleuze. Repetição e Diferença, pág. 110. O grifo é nosso.
[27] Elie Cartan. Le parallelisme absolu et la theorie unitaire du Champ. Revue de Metaphysique et Morale 38, 1931.
[28] Gilles Deleuze. Repetição e Diferença, pag. 107.
[29] Émile Benveniste. Problemas de Linguística Geral.
[30] Jean-Pierre Vernant. As Origens do Pensamento Grego.
[31] Brian Massumi. The Autonomy of Affect.
[32] Gilles Deleuze. Espinosa e o Problema da Expressão.
[33] Gilbert Simondon. L´Individuation Psychique et Colletive.
[34] Um belo exemplo de indivíduo soberano pode ser encontrado no livro de Bernard Malamud: O Faz Tudo.
[35] Veja notas de aula de Deleuze intituladas: En Medio de Spinoza. Editorial Cactus.
[36] Veja Levi R. Bryant. Difference and Givenness, 2008, cap. 7.
[37] Claudio Ulpiano. Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento.
[38] Albert Lautman. Mathematics, Ideas and the Physical Real.
[39] Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura. II Edição, editora Vozes.