Roberto Salmeron: uma história de ética e de competência
Esse breve texto é uma memória da convivência com um grande físico.
Roberto Salmeron nasceu em 16 de junho de 1922. Neste ano completaria 100 anos. Eu não poderia escrever minhas memórias sem o adicional do emocional. Portanto não faria nunca uma biografia com referências históricas frias como um biógrafo profissional poderia fazer. Tudo que escrevo tem esse adicional, o que significa que é impossível dividir a autoria desse texto com alguém por razões éticas e porque as emoções não são fatos objetivos, correspondem a um sentimento adicional de uma convivência.
Conheci Salmeron em Brasilia, na universidade dos sonhos de muitos brasileiros. A Universidade do sonho de Darcy Ribeiro, de Anísio Teixeira, de Oscar Niemeyer, de Lucio Costa, de Claudio Santoro, e de muitos outros líderes da cultura nacional que tinham como objetivo principal eliminar resquícios do colonialismo ainda presente entre nós. Mas naquele momento, a burguesia não permitia uma ameaça às gorjetas que sempre recebeu para tomar conta das propriedades da capital da colônia.
Foi no dia do aniversário de 50 anos de meu irmão, o maestro Claudio Santoro, em Brasilia, numa festa para amigos, que Salmeron vira-se para mim e disse: Você já decidiu? Eu fiquei surpreso, pois não sabia do que se tratava. E complementou: sobre sua transferência para física.
Em vista de minha resposta disse que assinaria o documento sobre minha competência para fazer o curso de física na universidade de Brasilia. Foi assim que comecei a conhecer Salmeron que era até então, para mim, nada mais do que um excelente professor de um curso preparatório à carreira de física que eu cursava. Sua experiência como professor era muito grande, graças em particular ao cursinho que ensinava durante anos em São Paulo, bem como os vários livros de física básica que escreveu.
Salmeron não era somente um professor, era um dos pensadores maiores da Universidade de Brasilia (UNB), tinha uma enorme liderança no meio intelectual, e deixara o melhor emprego do mundo para um físico pesquisador e professor — o CERN, onde tinha contrato permanente — para trabalhar na UNB. Ele tinha sido o oitavo cientista a ser contratado no CERN.
Para a Universidade ele trouxe suas pesquisas em andamento no experimento K-Nucleon e a promessa do CERN de enviar mesas especiais para análise de fotos das câmaras de bolha, que passaria a ser realizada na Universidade.
No entanto o governo brasileiro de então, não deixou que isso acontecesse. Este teria sido o primeiro laboratório associado ao CERN no Brasil, dirigido por um cientista de comprovada competência.
Com o golpe de 1964, Salmeron e mais de duas centenas de professores da UNB foram obrigados a deixar a Universidade sem ter um emprego fixo em outro lugar. Partiram para se reinventar em outros lugares onde salvariam pelo menos as suas competências e o mais importante manteriam viva sua vida profissional. Essa situação dramática marcou minha geração profundamente.
Essa “cena” é totalmente inconcebível hoje por qualquer comunidade que conheço: deixar “seu ganha pão?” Impossível! Ainda mais em nome de uma coisa tão abstrata quanto a dignidade.
Uma das características marcantes naqueles homens que acompanharam Salmeron: eram todos grandes intelectuais e seu papel na sociedade era não só conhecido como respeitado em todo o mundo intelectual.
Não vou repetir aqui a história que ele mesmo contou em seu livro sobre a “universidade interrompida”. Não havia em seu programa de vida nenhum “carreirismo” para justificar a adesão ao sistema que o golpe de 64 queria lhe impor.
Salmeron e Claudio Santoro, em plena crise na UNB, foram chamados por alta autoridade do poder constituído para lhes dizer: Nós apreciamos os cientistas. Apenas fiquem quietos e vocês serão recompensados com todas as facilidades para realizarem seus trabalhos.
Ambos recusaram peremptoriamente e partiram da UNB para tentar a continuidade de suas pesquisas e trabalhos em algum outro lugar, de preferência ainda no Brasil. Mas as autoridades dirigentes das instituições estabelecidas pediam cartas de recomendação de coronéis “amigos”. Salmeron tentou ficar no Rio de Janeiro, mas não conseguiu.
Finalmente, depois de várias tentativas infrutíferas, aceitou convite da École Polytechnique de Paris para dirigir um grupo de pesquisas que realizava um experimento no CERN. Uma vez estabelecido, e já em 1968/69 com a piora da situação política no Brasil, providenciou minha ida para a França, juntamente com outros meus colegas e fomos então trabalhar com ele.
Sua ética e consciência política o levou a nos aconselhar, na época, a fazer física teórica uma vez que voltando para o Brasil não teríamos condições de fazer física experimental de partículas.
Ele tinha razão, e infelizmente, é verdade até hoje, devido à incompreensão permanente não só do governo, mas também por parte da comunidade cientifica, ou melhor de seu establishment.
Assim fizemos e indicou Gilles Cohen-Tannouji como nosso orientador. Entretanto, todos os meses tinha encontro marcado com Salmeron, em seu escritório, na Polytechnique, para entregar meu relatório de atividades. E, por suas contínuas sugestões científicas, eu sempre colocava um agradecimento à sua contribuição nos artigos que eu publicava.
Sua esposa, Sonia, era uma pessoa adorável. Era psicanalista e tinha muitos clientes brasileiros que por lá viviam. Tinham 3 filhos, Marcelo e Sergio ambos médicos e Lucia que seguiu a psicanálise.
Salmeron continuou trabalhando com grande participação em seus experimentos no CERN.
Nos anos 80 por iniciativa do prêmio Nobel Leon Lederman foi convidado a participar de um simpósio no México sobre a Física Experimental de Altas Energias na América Latina. Salmeron falou com Leon que preferia indicar físicos que estavam no Brasil e que poderiam ser mais efetivos naquele momento. Mas quando, em consequência dessas reuniões Latino-Americanas, se formou o primeiro grupo para ir ao FERMILAB fazer física experimental, veio ao Brasil para conversar com o grupo e nos garantir que apoiaria a iniciativa. Ele ficaria como conselheiro do grupo.
Com o desenrolar do projeto, discutíamos cada detalhe com Salmeron sobre a formação do grupo experimental no Brasil. Em um desses simpósios encontrou-se com Carlo Rubbia que ofereceu bolsas para brasileiros passarem um período no CERN. O prestígio nacional e internacional que possuía funcionava como nosso “guarda-chuva”. Este grupo cresceu, formou os primeiros doutores e influenciou a formação de outros grupos. Portanto, podemos afirmar que foi com o apoio permanente de Salmeron que se formou toda essa série de novas iniciativas para o desenvolvimento de física experimental de altas energias no Brasil.
Na gestão do Reitor da UERJ professor Ricardo Vieiralves de Castro entre 2008-2015, sob minha iniciativa, foi condecorado com a medalha José Bonifácio pelo seu apoio na formação do grupo na UERJ.
Depois que o experimento D0 acabou e foi decidido pelo Governo Americano fechar a iniciativa do projeto SSC, mudamos nosso trabalho para o CERN no experimento CMS. E durante mais de 10 anos, sempre que ia ao CERN trabalhar no CMS, tirava um fim de semana para ir a Paris visitar nosso orientador de sempre. Algumas vezes levava colegas que me acompanhavam e tinha o prazer de lhes apresentar meu grande amigo e professor.
Salmeron, sua memória e seu trabalho, ficará sempre em nossa memória.