Quantum e cosmos
Artigo original
Estudos da Língua(gem) – ISSN: 1982-0534
DOI: 10.22481/el.v19i1.9157
Link do DOI: http://doi.org/10.22481/el.v19i1.9157
Quantum e cosmos1
RESUMO
As leis rígidas que a física produziu nesses últimos quatrocentos anos e que permitiram organizar um universo ordeiro e regular estão sendo substituídas por leis cósmicas variáveis, dependentes do tempo cósmico. A violação do determinismo tradicional produzido por processos de bifurcação descobertas no século 20 em laboratórios terrestres foram estendidas para o universo e exibiram uma situação inesperada: um cosmos hesitante. No entanto, além dessas estranhas e inesperadas novidades que alteraram profundamente o papel da ciência no imaginário do filósofo, a mais fantástica novidade veio de uma releitura atualizada de Giordano Bruno através da imagem de um universo solidário. Nesse texto farei um sobrevoo dessas questões para atrair o leitor a voos futuros que a cosmologia pode permitir. Dito de outro modo, iremos tratar do microcosmo e suas múltiplas aparências; da distinção sombria entre o real e o virtual; dos múltiplos tempos da física e do tempo único da cosmologia; da dependência cósmica das leis físicas. Daremos então um salto no vazio e mesmo além; veremos o significado do processo de bifurcação exibido por um cosmos indeciso que limita o determinismo. Finalmente exibiremos o mecanismo descoberto pelos cosmólogos de um universo cíclico que produz processos em repetição e as diferenças que ocorrem em vários ciclos. Chegamos enfim ao universo solidário antecipado por Giordano Bruno e a construção de uma ética a partir dele.
PALAVRAS-CHAVE: Quantum; Microcosmo; Diferenças; Ética; Universo solidário.
1 O microcosmo: múltiplas aparências
Laboratório terrestre. Um físico descreve o resultado de uma experiência que singulariza o elétron e seu oposto o antielétron. Um outro, observando a mesma experiência, afirma que se trata do fóton.
Ao falar do par de opostos elétron e antielétron estamos falando do fóton? Ambos os modos de descrever a mesma experiência estão corretos. Sabemos que fóton é um grão elementar da luz, energia condensada associado a uma alta frequência de oscilação e pequeno comprimento de onda eletromagnética. Pura radiação. Elétron e pósitron (outro nome do antielétron) são corpúsculos materiais. Tem massa e carga elétrica. O fóton não tem massa nem carga. Como não saber distingui-los? Como então dar sentido àquela questão inicial? E, mais importante, qual a origem dessa questão?
Um breve desvio explicativo se faz necessário para entender essa linguagem da física moderna. Vivemos em um mundo newtoniano, isso quer dizer que representamos o que chamamos realidade com conceitos e palavras associados ao que os físicos chamam o mundo clássico. Nos textos técnicos é usada uma linguagem matemática com que são descritas as propostas dos cientistas sobre o mundo. Para entender o que ali está dito, é necessário um longo aprendizado específico. É possível reproduzir em linguagem convencional, corriqueira, de todo-dia, o que o físico está dizendo nestes textos. Há, no entanto, uma diferença importante sobre o significado que deve ser atribuído a esses textos.
Ao tratar de propriedades do mundo físico envolvendo características de nosso cotidiano uma versão das fórmulas matemáticas para nossa linguagem usual é simples, ou pelo menos, compreensível. Isso abrange fenômenos que ocorrem sob nossos olhos, e que podemos experimentar com nossos sentidos contendo características comuns de fenômenos que experimentamos em nosso dia-a-dia: temperatura ambiente, não muito elevada nem muito baixa; pequenas pressões; forças de baixa intensidade, como o campo gravitacional da Terra.
Comentar as relações matemáticas que descrevem esses fenômenos usando a linguagem cotidiana é factível, pois estamos tratando de eventos de nossa dimensão, da ordem de grandeza do homem.
Um exemplo simples consiste no comentário de que um gás quando colocado em um recipiente, ocupa todo seu volume. Pode-se não saber as razões pelas quais isso acontece, mas a frase é compreensível, faz sentido, pois descreve um fenômeno ao qual estamos acostumados em nosso cotidiano.
Tenho chamado dialeto newtoniano a essa linguagem envolvendo a descrição de fenômenos físicos convencionais relacionados à nossa experiência pessoal.
Ao penetrarmos em dimensões bastante distintas da nossa para descrever o micro e o macrocosmos uma dificuldade grande aparece. Isso é consequência das estranhas propriedades descobertas no mundo quântico e na cosmologia profunda, em regiões do universo extremamente condensadas. Nesses territórios, o uso desse dialeto newtoniano pode gerar contradições inaceitáveis. Vamos dar alguns exemplos para que possamos entender essa dificuldade, a saber:
- O tic-tac de um relógio em repouso não possui a mesma frequência que o tic-tac de um relógio em movimento;
- Para ir de um ponto do espaço para outro, devo passar continuamente por todos os pontos intermediários. Isso pode não acontecer no microcosmo;
- Ao caminhar para o futuro (ou seja, o que normalmente consideramos um movimento no tempo) nos afastamos de nosso passado. Isso pode não ser verdade absoluta. Ou seja, poderíamos localmente andar para o futuro e, no entanto, nos aproximarmos de nosso passado.
Esses exemplos parecem fantasiosos porque não fazem parte de nossa experiência corporal. Com efeito, para podermos observar essa alteração no relógio deveríamos atingir uma velocidade fantasticamente grande, próxima da velocidade da luz que é de 300 000 (trezentos mil) km/s.
Observar como se passa de um ponto do espaço para outro sem passar pelos pontos intermediários requer que sejamos da dimensão dos átomos e seus constituintes, ou seja, da ordem de 0,000 000 000 001 cm.
Para experimentar essa estranha propriedade do tempo que não segue a relação causal convencional é preciso um campo gravitacional com características impossíveis de acontecer na Terra ou em nossa vizinhança.
Ou seja, essas estranhezas mostram que os cientistas têm feito descobertas que vão muito além de nossas experiências no cotidiano.
É porque elas acontecem em situações bem distintas das que estamos acostumados é que elas parecem estranhas.
A imagem que construímos sobre o mundo, a própria linguagem com que a descrevemos está de tal modo dependente de nossos corpos, de nossa experiência sensível, que é difícil conciliar essas novidades que a ciência está desvendando com as certezas a partir da quais aquela imagem do mundo se organizou.
Criamos uma representação do que chamamos realidade a partir de nossos sentidos e a aceitamos desde sempre como única. A física servia como suporte racional dessa descrição. Ao longo do século 20 esse apoio incondicional sofreu profunda alteração. Foi então que se tornou uma delicada tarefa para um físico descrever em linguagem cotidiana essas propriedades que não pertencem à nossa experiência sensível.
Depois desse desvio, podemos voltar à questão inicial e tentar entendê- la melhor.
Chamar de fóton o par elétron antielétron enfatiza a característica de momento, mas não especifica a duração, a estabilidade dessa igualdade. O fóton é ele e seu entorno. Em um campo de forças (gravitacional, eletromagnética) esse par virtual pode se tornar real. Matéria vir a ser criada. A característica que leva uma certa forma de energia a ser ora fóton, ora o par elétron-antielétron depende da energia disponível. Por exemplo, nas fases iniciais da atual expansão do universo a temperatura ambiente era extremamente alta. Como consequência, a energia disponível era fantasticamente grande. Isso implicava que o fóton e o par elétron antielétron estavam em permanente mutação, transformando-se um no outro permanentemente.
Esse equilíbrio dinâmico, essa transmutação do par de matéria em radiação de fótons e vice-versa, continua acontecendo até o momento em que o fóton não tenha mais energia suficiente para se apresentar como o par elétron- antielétron.
E por que essa perda de energia ocorre?
Isso se deve ao fenômeno de expansão do volume do espaço. A temperatura ambiente que disponibiliza a energia vai diminuindo com essa expansão. Quando ela desce a níveis inferiores a um certo valor, aquele equilíbrio e a aparente hesitação da energia ora como o fóton ora como o par elétron- antielétron não pode mais ocorrer. Esse valor é bem conhecido: trata-se de no mínimo duas vezes a massa do elétron. Quando a energia do fóton, isto é, a temperatura ambiente do universo, decai abaixo desse valor aquela troca não é mais possível. Cada um – o par elétron e antielétron assim como o fóton — pode então ser descrito sem ambiguidade.
2 Virtual e real
Uma partícula carregada eletricamente, digamos um elétron, pode em seu caminho emitir um fóton e logo em seguida absorvê-lo. E repetir essa configuração um sem-número de vezes. Esse fóton não se separa do elétron: ele é virtual. Não é motivo de uma observação, ocorre somente como uma espécie de solilóquio dinâmico.
Aparece então a questão: esse fóton virtual existe? Dito de outro modo, esse fóton virtual ou outras partículas virtuais que aparecem internamente como um processo quântico semelhante a esse, mas que não são observadas por uma experimentação que o singularizaria, podemos atribuir a essas partículas virtuais a condição de existência? Elas fazem parte certamente da descrição que a teoria quântica permite, mas isso é suficiente para responder à questão: ela existe?
A física newtoniana, que trata de processos da dimensão humana, responde de modo simples e direto a essa questão. Entretanto, não devemos esperar que a física moderna seja capaz de estabelecer uma hierarquia existencial absoluta entre o real e o virtual.
Dito de outro modo: fora do cotidiano, longe das coisas e fenômenos descritos na física newtoniana – e que organiza nossa realidade imediata – a ciência moderna, ao avançar em sua descrição da natureza no microcosmo (no domínio do mundo quântico) e no universo profundo (nos momentos de extrema condensação do cosmos) bloqueia, inibe, impede a caracterização do significado único que quereríamos atribuir à palavra “existir”.
Ao observarmos o movimento dos corpos aparecem limitações impostas pela teoria da relatividade especial. Por outro lado, a virtualidade no mundo das partículas elementares mostra que devemos aceitar a existência de níveis distintos de realidade. Ou, poderíamos dizer, de permanência no real. Por exemplo, quando um fóton se transfigura em elétron e antielétron, esse par é virtual, significando que eles não precisam obedecer às leis da física às quais toda matéria/energia deve se subordinar. Essa liberdade que um processo virtual adquire (por ser virtual) marca uma fronteira entre existência real e existência virtual.
No entanto essa virtualidade pode exercer uma ação sobre corpos reais. Um exemplo notável é a presença de efeitos não lineares na interação eletromagnética devido ao aparecimento de processos virtuais. Somos levados, então, a pensar em camadas do real e do virtual como territórios semelhantes, mas não iguais, distinguidos pela observação.
3 Dos múltiplos tempos da física ao tempo único da cosmologia
Temos que falar do tempo. A física relativista mostrou que cada corpo material possui um seu tempo próprio. Essa multiplicidade temporal eliminou completamente o tempo absoluto newtoniano. No entanto, a cosmologia parece reintroduzir um tempo único. Como entender essa situação?
A descrição dos fenômenos requer uma escolha particular de sistema de coordenadas, isto é, o modo pelo qual se pode caracterizar um ponto, um acontecimento no espaço-tempo. O princípio relativista impõe que não existe um sistema de coordenadas melhor do que os demais, ele pode ser somente mais conveniente. Assim, ao descrever essa enorme quantidade de galáxias (mais de cem bilhões em nosso horizonte observável) cada uma delas contendo da ordem de uma centena de bilhões de estrelas, optou-se por usar um sistema gaussiano de representação. Isto é, a separação de três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo.
Dessa forma introduz-se um tempo cósmico global que embora não seja absoluto é semelhante à descrição tradicional newtoniana. Ele nada mais é do que consequência de uma escolha particular de representação. Os matemáticos chamam a esse tempo de gaussiano (em homenagem ao matemático Gauss), os físicos chamam de tempo cósmico ou global. Possivelmente, os filósofos o chamariam de duração bergsoniana.
4 Das leis físicas às leis cósmicas
A generalização feita por Newton ao reconhecer na queda de um corpo (maçã?) um procedimento universal e seu sucesso ulterior permitiu a aceitação generalizada de que o que acontece na Terra acontece em todo lugar, isto é, as relações entre corpos e acontecimentos (o que chamamos, em alguns casos, lei da natureza) são as mesmas em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Ao longo do século 20 apareceram processos inesperados que limitaram esta generalização.
Comecemos por considerar a proposta de que as leis físicas terrestres valem para todo o universo. Ou seja, a hipótese de que os fenômenos observados na Terra são os mesmos em todo o universo. Essa hipótese de trabalho se transfigurou em verdade absoluta responsável por gerenciar uma visão coerente e totalizante do mundo. No entanto, não é tarefa difícil mostrar sua incoerência. Seja formal, seja factual.
Antes de penetrarmos na descrição desses cenários científicos, um comentário genérico sobre a estrutura das leis físicas se faz necessário. Desde sempre, os cientistas se viram às voltas com as propriedades do que se chamou lei física. É ela que controla os fenômenos da natureza e, embora sua forma possa variar, dependendo do grau de conhecimento obtido em sua análise, ela constitui uma estrutura rígida, inabalável, determinando as configurações possíveis no mundo.
O objetivo final da ciência é atingir o cerne da lei e obter sua descrição completa. Um objetivo que de tempos em tempos os cientistas acreditam terem conseguido, para mais adiante se darem conta de que novos fenômenos desconhecidos até então, impõem alterações na forma da lei. Essa variação da lei é convencional e está associada à natureza humana. Não diz respeito às leis do mundo propriamente dita.
Pois bem, ao longo do século XX foi se acumulando evidências de um tipo de variação mais dramático, ao se reconhecer que essas leis não são as mesmas em todo o cosmos, podendo variar com sua localização espacial e/ou temporal. Em um primeiro momento, essa variabilidade das leis apareceu como uma fantasia, uma especulação de cientistas renomados – como Dirac, Lattes, Hoyle e outros – que podiam se permitir interpretações pouco comum de alguns fenômenos induzindo à possibilidade de tratar leis físicas como variáveis.
Essas especulações, é bom que se diga, nunca foram de agrado do establishment, mas não eram tratadas com repulsa total. Aos poucos, no entanto, diversas propriedades mereceram análise tão distinta das convencionais que essas propriedades de variação das leis físicas passaram a ser convencionais, tornando- se uma importante área de investigação.
Quando se admite a variabilidade das leis físicas e a usamos para entender a estrutura do universo como o fez Sakharov, produzimos a liberação do universo de uma obediência formal imposta por cientistas entusiasmados com o sucesso de seu saber. Por outro lado, os pensadores livres saúdam nesse momento o fim da submissão do cosmos a uma ordem rígida e o retorno da liberdade que havia sido retirada da natureza por arrogância.
Vamos comentar dois exemplos, um observacional e outro teórico, ambos associados ao campo gravitacional. A universalidade da interação gravitacional e suas características permitem associar a força gravitacional à evolução da geometria do espaço-tempo. Essa é uma daquelas propriedades que não fazem parte do dialeto newtoniano.
O exemplo mais marcante de que propriedades da física local, na Terra e suas vizinhanças, podem não ser válidas globalmente, nos confins do universo, foi apresentado em 1949 pelo matemático austríaco Kurt Gödel. Em uma conferência em homenagem a seu amigo A. Einstein, Gödel apresenta um modelo de universo na qual embora o princípio causal seja válido em cada ponto desse universo, ele não vale globalmente.
Localmente, a existência de um limite máximo de propagação de informação identificado com a velocidade da luz permite construir configurações tipo cones, em uma representação espaço-temporal, de tal modo que a luz se propaga sobre esses cones e toda e qualquer forma de matéria e energia só pode se propagar no interior desses cones. Isso significa que para cada observador no mundo existe associado um cone no espaço-tempo que determina a distinção passado-futuro para este observador. Assim, causalidade local é rigorosamente definida (ver figura 1 e 2 anexas).
Entretanto, a força gravitacional atuando sobre os fótons, os grãos elementares da luz, distorce a orientação desses cones. O resultado mais dramático, descoberto por Gödel, se refere à possibilidade dessa deformação impedir a veracidade global da sentença “ao caminhar para o futuro, afasto-me de meu passado”. Essa sentença que para nós, em nosso cotidiano, é uma verdade sem dúvida, deixa de sê-la globalmente. Com efeito, Gödel mostrou que em certas configurações do campo gravitacional –que não são as de nossa vizinhança terrestre – ao caminhar para o futuro estaria me aproximando de meu passado (ver figura 3). Ou seja, como se a imagem mental do tempo como uma linha reta deveria ser transformada na imagem mental de um círculo (ver figura 4).
Assim, Gödel mostrou que a ideia utópica de volta-ao-passado não conflita com a lei física que descreve os processos gravitacionais. Ao mesmo tempo, ele conseguiu pela primeira vez uma demonstração clara e simples da razão pela qual não é possível na Terra termos a experiência de volta-ao-passado: porque o campo gravitacional produzido pela Terra, com características diferentes da configuração descoberta por Gödel, é fraco.
Um outro exemplo notável da dependência das leis físicas com o tempo cósmico vamos encontrar ao tentarmos responder a questão: por que existe matéria e não antimatéria no universo?
A origem dessa questão está intimamente relacionada à descoberta em laboratório terrestre de que os processos envolvendo matéria bariônica (como o próton e o nêutron, constituintes fundamentais de todos os átomos) são perfeitamente simétricos na troca matéria por antimatéria. Isso significa que um processo em que se envolve uma partícula tem a mesma probabilidade de ocorrer com sua antiparticula. Ou seja, se essa lei física fosse válida em toda história do universo, deveríamos ter uma quantidade de matéria igual à de antimatéria. Ora, isso não é observado. Nosso universo contém matéria e não antimatéria, pelo menos em quantidade apreciável.
O físico soviético A. Sakharov associou essa ausência de simetria em escala global à interação gravitacional. A questão que se colocou então foi: onde essa interação poderia ter ocorrido e de forma tão radical? A solução natural foi associar esse processo aos momentos em que o campo gravitacional era extraordinariamente intenso, ou seja, na região extremamente concentrada do universo, nos primórdios da atual fase de expansão do volume espacial total.
Esses exemplos mostram que em certas situações especiais as leis físicas terrestres adquirem uma modificação devido à forte influência do campo gravitacional. Como a gravitação na Terra e suas vizinhanças é fraco, esses fenômenos são praticamente inexistentes e escapam totalmente à observação.
Para observá-los, devemos olhar nas profundezas do cosmos, em regiões de altíssima curvatura da geometria do espaço-tempo.
A descoberta da possível variação das leis físicas levou a questões, aparentemente, inusitadas. Foi introduzida, principalmente entre astrônomos ingleses, o que se chamou a questão teleológica.
As propriedades específicas da matéria e a evolução do cosmos, a dependência das leis físicas com o tempo, se associam com um objetivo final? A massa das partículas elementares, por que têm precisamente este valor que medimos? As constantes das interações, a carga do elétron, a massa do neutrino, por que possuem este valor preciso e não outro? Estariam esses valores relacionados à estabilidade deste universo, permitindo sua existência por um tempo suficientemente longo para o aparecimento da vida? A explicação da aparência do universo estaria assim à nossa espera?
Que cenário do universo podemos inferir dessa dependência cósmica das leis físicas?
Em um primeiro momento, parece que se introduz um certo encantamento do mundo, ao identificar uma origem teleológica para essa dependência.
Deixando de lado esse antropomorfismo exacerbado ao aceitar que a humanidade tem um papel fundamental na história do universo, creio que podemos afirmar que essa variabilidade em verdade nada mais é do que a contrapartida da imposição de uma ordem especifica no mundo. Ou seja, consequência da utilização exagerada e sem fundamentação da validade inalterada das leis físicas terrestre em todo o universo.
5 Um salto no vazio: a origem do cosmos
O mundo quântico trouxe à tona uma das propriedades mais estranhas da física: o vazio. Contrariamente ao que se entende por esse termo no dialeto newtoniano, o vazio quântico é composto. Enormemente composto de estruturas opostas que se cancelam, como os pares de partículas com que começamos esse nosso diálogo, elétrons e pósitrons.
Esse estado fundamental, o vazio, é desprovido da qualidade convencional que permite apontar para uma coisa e dizer “ela existe”. A multiplicidade desse vazio permite afirmar que alguns desses vazios admitem uma cosmologia associada, capaz de descrever uma fase do universo.
A matéria que existe no cosmos, sua energia, a totalidade do espaço- tempo parecem ter sido derivados desse estado imaterial, o vazio que não se deixa caracterizar como matéria ou energia. Segue, então, que a dicotomia o ser e o nada se dissolve no território da física moderna.
5.1 Hierarquia entre os vazios
Uma das mais estranhas propriedades do vazio é saber que ele pesa. Isto é, como toda forma de energia e matéria, o vazio também cria campo gravitacional. Mais inesperado ainda: alguns vazios são mais vazios do que outros. Como isso é possível?
Um universo que se expande no espaço homogêneo uniformemente no tempo. Completamente homogêneo espacial e temporalmente. Sua origem é uma misteriosa constante cosmológica identificado com a própria geometria cósmica que Einstein imaginou, para logo em seguida rejeitá-la. Ela foi mais tarde associada ao vazio especial do mundo quântico.
Mais inesperada do que essa proposta de Einstein, o físico americano E. Kasner encontrou uma solução das equações da relatividade geral que foi interpretada como uma cosmologia sem nenhuma forma de matéria ou energia. Essa cosmologia de Kasner ultrapassa as estranhezas de outros vazios representando um universo homogêneo espacialmente anisotrópico, possuindo expansão e contração distintas conforme as direções do espaço.
Qual sua origem? Qual sua fonte? O vazio completo de matéria e energia. Sem sequer a constante cosmológica, isto é, o vazio clássico absoluto.
Uma tal cosmologia é possível devido à propriedade da dinâmica gravitacional estar associada a equações não-lineares como descrita na teoria da relatividade geral.
Aqui, talvez fosse importante lembrar que esses processos não lineares não requerem uma fonte que lhe dê existência, pois podem resultar de um auto estímulo. Ou seja, o universo não necessita uma fonte externa para sua existência: ele foi autocriado.
6 Além do vazio: metacosmologia
Dissemos que a cosmologia trata da aplicação de leis físicas (dependentes do espaço-tempo ou não) ao universo para explicar observações de natureza global. A Metacosmologia coloca questões do tipo “por que a massa do nêutron tem precisamente este valor? Por que existe matéria e não antimatéria no universo? Existe somente um universo? Poderia ter existido uma fase anterior e alguns restos desses universos anteriores estarem ainda perambulando pelo cosmos atual? Por que existe alguma coisa e não nada?”
Ao longo do século XX, os físicos construíram teorias, modelos de interpretação de fenômenos, que permitem o desabrochar de configurações extraordinárias, inesperadas, algumas até mesmo fantasiosas, impossíveis de serem observadas no cotidiano. Embora organizadas no interior da prática científica, elas exibem propriedades tão singulares, tão incomuns, que foram colocadas à margem do discurso convencional da ciência, como se fossem impossibilidades formais, o que em verdade elas não são.
Curiosamente, algumas dessas configurações povoam há muito o imaginário popular, como por exemplo, a construção formal de caminhos que levam ao passado e complexas formulações representando o universo como um átomo de um universo maior.
Essas formas são entendidas como utopias controladas, isto é, processos admitidos no esquema convencional da ciência identificados como exemplos de configurações de difícil realização que, embora descritas no interior de teorias cientificas aceitas, produzem imagens conflitantes não só com o senso-comum como também com o establishment científico. Como consequência, elas são colocadas no limbo, à parte das afirmações cientificas usuais. E, no entanto, a teoria sobre a qual esses processos se sustentam, aceita integralmente como verdadeira, os tornam parte integrante do mundo descrito pela ciência.
A teoria da relatividade de Poincaré e Einstein, a teoria quântica de Schrodinger e Heisenberg, a dinâmica expansionista do universo de Friedman e Hoyle são alguns exemplos conhecidos e que já fazem parte do imaginário popular construído a partir da visão autoritária da ciência. Existem processos descritos no interior dessas teorias que permitem o aparecimento de estruturas que levam a imaginação a empreender voos tão estranhos quanto os sonhos mais esdrúxulos de Joseph K. São esses exemplos que chamamos utopias controladas. Uma característica comum de reação a essas configurações extraordinárias é sua obsolescência pela comunidade científica bem como a repulsa a considerá-las como temas convencionais, mesmo sendo essas propostas consequências formais de teorias bem aceitas. Contrariamente ao que ocorria no passado, aqueles que se dedicam ao exame dessas propostas não são excomungados como Galileu, nem colocados em fogueiras como Giordano Bruno. Nos tempos atuais, na sociedade do espetáculo que vivemos, eles recebem um castigo equivalente à morte em vida: são ostensivamente ignorados pelo establishment. Elimina-se qualquer referência a esses projetos, a não ser em mínimas notas de pé-de-página em alguns poucos textos técnicos. Ou, nos últimos tempos, são associados como se fossem fantasias delirantes apresentados como configurações no limiar de irracionalismos.
Eu me limitarei aqui a citar três dessas utopias controladas que pertencem ao domínio da ação gravitacional descritos pela teoria da relatividade geral de Einstein, a saber:
- A estrutura causal em geometrias que possuem curvas temporalmente fechadas (Gödel); Utopia causal ou a volta ao passado;
- Utopia Gulliveriana ou é nosso universo um átomo de um universo maior?
- Extensões analíticas para fora do universo (Markov). Utopia dos vários ciclos pelos quais o universo passou.
O que essas configurações têm em comum?
Em um primeiro momento podemos afirmar que elas produzem desconforto formal pois embora se apoiem em conceitos convencionais e teorias bem aceitas, elas tratam de exemplos que povoam a imaginação popular identificados como estruturas irracionais, fantasiosas, impossíveis de constituírem parte integrante da ciência. E, no entanto, repito, eles estão solidamente apoiados nos conhecimentos atuais da ciência física.
Alertados para a dependência cósmica das leis da física, projetando a natureza histórica das próprias leis da natureza, independentemente de sua formulação na ciência, podemos empreender a tarefa de examinar esses exemplos de utopias controladas. Antes, uma advertência.
A física não pode penetrar nesse reservatório de virtualidades onde as leis físicas se fazem e se desfazem. Se a ciência quer investigar essas questões então o instrumento necessário para isso vamos encontrar na cosmologia e ir além da racionalidade “dura”, ou seja, examinar os universos compossíveis que a metacosmologia exibe. A proposta de Giordano teria então sua versão moderna semelhante ao que ele caracterizou como a dualidade Natureza e Deus.
6.1 Utopia Gulliveriana ou é nosso universo um átomo de um universo maior?
O universo é um sistema fechado? Sim é a resposta convencional e óbvia desde sempre. No entanto, o físico russo M. A. Markov ensinou que pode não ser assim. A demonstração disso é por demais técnica para ser apresentada aqui, mas uma descrição compacta de como Markov a construiu é possível. Ela se desenvolve em quatro etapas, todas elas associadas a processos gravitacionais controlados pela teoria da gravitação de A. Einstein.
O resultado dessa complexa sequência de soluções exatas das equações da relatividade geral pode ser visualizado como o interior de um corpo, integrando-se solidariamente a um universo maior.
Essa construção que Markov organizou pode assim ser descrita como se um corpo, uma estrela, um grande conjunto de estrelas, um conjunto de galáxias, identificado a um elemento único compacto ou universo, que, juntamente com inúmeros outros corpos semelhantes, estivesse imerso em uma configuração maior constituindo o que deveríamos chamar super universo.
Uma tal estrutura é a versão sofisticada, no interior de uma teoria – a Relatividade Geral – da ideia quase infantil de imaginar que nosso universo é um átomo de um universo maior.
Pode-se perceber que essa construção de Markov pode continuar para além das quatro fases de Markov. Com efeito, nos anos 1980 minha aluna Regina Célia Arcuri em sua Tese de Mestre no CBPF examinou a possibilidade de compatibilizar esses universos em várias camadas. Uma tal estrutura resultou ser estável e pode efetivamente constituir um modo formal de construção de múltiplos universos como se fossem camadas representando cada uma delas uma dada configuração.
E se é assim, poderíamos imaginar ações entre esses átomos-universos submetidos a leis especificas, semelhantes ou não às leis desse nosso mundo. Ou seja, esse universo em que vivemos, identificado como um átomo, um elemento de um mundo quântico, se abriria para complexas e extraordinárias configurações.
O que podemos concluir desses inesperados exemplos que fomos buscar em configurações físicas pouco conhecidas, mas satisfazendo leis convencionais da ciência? Cada uma delas possui uma versão popular que a qualifica como utópica. E, no entanto, vimos que possuem uma versão científica, constituindo um processo aceitável, não contraditório com o conhecimento científico.
Chamamos de utópicos esses exemplos porque constituem situações que se afastam do experimentado em nosso cotidiano, sendo idealizações que preenchem um desejo latente que persiste em explodir no real.
Voltar ao passado, fisicamente, dentro do cenário descrito no espaço- tempo da ciência não é impossível ocorrer em nosso universo. No entanto, a impossibilidade factual de realizar essa viagem em minha experiência pessoal continua qualificando-o como utópico. A utopia não está na minha relação com a natureza das leis físicas, mas sim na resistência a pensar para além de uma ação física no mundo.
Surge então a questão: esses exemplos que descrevemos aqui, as utopias controladas, possuindo o aval da ciência, retiram do utópico a condição de ser irrealizável?
É verdade que eles chocam o senso comum. Embora descritos dentro das leis físicas aceitas, aqueles exemplos parecem impossíveis de serem vivenciados. Como experimentar “o lado de fora do universo”? Como experimentar a “volta ao passado” se devemos, para isso, acessar uma configuração gravitacional especial, distinta da que podemos experimentar na Terra e vizinhanças? Como vivenciar ciclos passados do universo?
A utopia, como empregada nesse texto, extrapola a descrição usual limitada à construção de sociedades perfeitas. Ao estender esse conceito ao estudo de propriedades especiais de regiões do espaço-tempo identificada a distintas configurações do universo, relacionamos a física às utopias sociais, permitindo a utilização da força de conceitos deslocados, ostensiva e independentemente, para a frente de suas realizações factuais.
A ciência, a partir da revolução produzida pela cosmologia nos últimos anos do século XX, apoiada na dependência cósmica das leis físicas, afastando- se da descrição tradicional do mundo de viés essencialmente antropológico, aproxima-se assim da utopia de Giordano Bruno segundo o qual, ao produzir uma leitura do universo a partir de uma nova ordem estabelecida nesse território global e, consequentemente, induzir uma nova visão do papel do homem no cosmos, abre-se o caminho para mudanças profundas na ordem social. Dito de outro modo, ao enfatizar esse aspecto histórico, a ciência deixa aparecer seu lado revolucionário, não somente nas ideias que estendem seu território de ação, mas na elaboração de uma ordem utópica da sociedade.
A partir desses exemplos apossados da ciência, e com ênfase na turbulenta gestão da lei da física, transformada em lei cósmica pelo reconhecimento de sua dependência com a evolução do universo, estamos nos preparando para empreender o grande salto prefigurado por Giordano Bruno na produção de uma nova ordem social.
- O todo e as partes
Devemos rever a questão que aflige alguns pensadores, como Nietszche descreveu, em sua programação inacabada sobre a teleologia de Kant, ao afirmar que “…o todo não condiciona necessariamente as partes, enquanto as partes condicionam necessariamente o todo.”
Ou, ao contrário, deveríamos ouvir atentamente o matemático-filósofo Lautman que nos conduz a aceitar uma simbiose benéfica a ambos, às partes e ao todo. A Cosmologia traz à cena a afirmação de que podemos identificar o universo com essa estrutura riemanniana quadridimensional espaço-tempo que constitui um substrato material para a descrição iterativa de todos os processos que chamamos a realidade.
Se essa totalidade resiste ou não aos ataques dos filósofos não é nossa questão, não é relevante, pois aqui se trata preferencialmente de incentivar o diálogo. Se as posições de uns e outros são opostas, devemos entendê-las como uma questão formal, passageira. O diálogo deve permanecer. Através de Lautman, é a matemática que se intromete para gerar um modo comum a físicos e filósofos, de tratarem a questão das partes e do todo e permitir este diálogo.
Reconhecemos então que o que está em questão não é a negação da certeza do outro, mas o jogo de pensar como entretenimento da vida.
7 O cosmos indeciso: limitando o determinismo
O processo de bifurcação, a possibilidade de soluções de uma dada equação mostrarem características distintas quando um parâmetro associado passa por um dado valor, foi uma das grandes descobertas feita pelo matemático Henri Poincaré, mais conhecido por seus trabalhos na construção da relatividade. Uma das principais consequências da bifurcação foi retirar o caráter absoluto que parecia relacionar intimamente as equações das teorias com as quais
os físicos descrevem nossa realidade ao determinismo científico.
A análise de Poincaré, o modo pelo qual ele examinou as propriedades de certos tipos de equações, foi empregada em diversas configurações na ciência e também na engenharia. Quando foi usada na compreensão de algumas transformações químicas os filósofos se interessaram pois foi então explicitado, para além da comunidade científica, que o determinismo na ciência perdera seu caráter absoluto. Pelo menos em fenômenos reproduzidos em laboratório (Prigogine-Stengers).
Depois de quase quinhentos anos de descrição determinista a controlar todo processo clássico a ciência foi levada a aceitar a entrada do indeterminismo na descrição de suas leis terrestres. E quanto aos fenômenos no universo? Uma análise semelhante foi possível somente nesse século quando o processo de bifurcação foi finalmente descoberto formalmente em processos globais na cosmologia (Novello – Ligia Rodrigues). Abriu-se então um novo território de libertação do pensamento sobre o mundo. Não se tratava mais da explicitação do indeterminismo envolvendo processos limitados, da dimensão humana, mas sim do sistema de equações que descreve a dinâmica da geometria do espaço- tempo global, o universo. Curiosamente, os filósofos, desatentos, não se interessaram em ouvir os cosmólogos e se informar sobre esse abandono do determinismo a nível cósmico.
8 Repetição e diferença: múltiplos ciclos do universo
A instabilidade do vazio permite afirmar que o universo estava condenado a existir.
Talvez o exemplo mais contundente que a Cosmologia pode nos oferecer está explicitado no cenário cosmológico cíclico.
Sabemos que o Universo está em expansão. Depois de um longo período de dominação de uma ideia esdrúxula associando um período extremamente condensado ao seu início – chamado, pejorativamente, de big-bang, cenários mais realistas considerando o chamado bouncing foram propostos.
Nesses modelos o Universo teria passado por um período inicial de colapso, onde seu volume espacial diminui com o tempo cósmico, atingido um valor mínimo para seu volume e depois iniciado uma fase de expansão.
Ao final de 1979 surgiram dois cenários pioneiros (Melnikov-Orlov na URSS e Novello-Salim no Brasil) representando configurações de universos sem singularidades possuindo bouncing, isto é, exibindo soluções analíticas na qual o universo teria experimentado uma fase de colapso gravitacional na qual seu volume espacial total teria atingido um valor mínimo, diferente de zero; e em seguida iniciado o processo atual de expansão. A propriedade de ter um volume mínimo distinto de zero elimina a singularidade dos modelos do tipo explosivo e permite consequentemente a passagem de toda forma de informação de uma fase a outra. Os cosmologos costumam chamar cada uma dessas fases envolvendo colapso e expansão de universo. Ou seja, estaríamos em presença de uma sequência de universos.
Superada essa dificuldade maior do cenário bigbang, esses cenários cósmicos permitiram então o exame de configurações mais sofisticadas e complexas onde mais de um ciclo colapso-expansão teria acontecido.
Uma das propostas mais coerente identifica a origem desse colapso inicial à instabilidade do vazio quântico. Como o futuro desse modelo se identifica com seu passado original, pode-se imaginar uma sequência de universos repetindo essa sucessão de colapso-expansão indefinidamente.
Um outro modo de pensar essa multiplicidade de configurações do universo pode ser construída alargando-se este conceito e, como na figura anexa contendo ciclos de colapso e expansão indefinidamente.
Um tal cenário foi construído a partir de uma combinação da gravitação, descrita na Relatividade Geral, e do campo eletromagnético não linear. Ao reconhecer que a linearidade do campo eletromagnético implica necessariamente um universo singular, alguns cientistas começaram a examinar possíveis formas de teoria não linear do eletromagnetismo. Esse universo de múltiplos ciclos é uma das notáveis consequências dessa combinação dos dois campos clássicos conhecidos.
Algumas dessas propostas sugerem que fases sucessivas do universo, podem exibir características distintas, quer seja na evolução de suas perturbações, quer seja na sua composição material e até mesmo na evolução das suas leis físicas. Ou seja, as características desses universos poderiam ser diferentes de um ciclo para outro.
9 O universo solidário
O que podemos concluir desse sobrevoo sobre algumas questões fundamentais da cosmologia?
Não resta dúvida que a Cosmologia destruiu a paz racional que a ciência ordeira, paciente e eficientemente organizou nos últimos 400 anos conduzindo à imagem de um universo pronto controlado por leis físicas eternas. Se o universo está ainda em construção (não somente fenomenologicamente, mas pela dependência cósmica de suas próprias leis) ele deveria ser compreendido em um cenário de solidariedade.
Como entender solidariedade no universo? Talvez a palavra mais adaptada seria coerência. No entanto, há mais do que isso e podemos entender através de poucos exemplos.
Quando Einstein elaborou o primeiro modelo cosmológico do século 20 ele considerou a hipótese de que no universo não havia interação entre suas partes. Aceitou então que a fonte principal da geometria do espaço-tempo global deveria ser um fluido perfeito caracterizado somente por sua densidade de energia constante. Ou seja, não haveria pressão nesse fluido cósmico.
Como consequência dessa ausência de interação e o fato dele ser estático, inalterado, o modelo do universo de Einstein é instável, ou seja, ele não persiste por muito tempo. Dito de outro modo, ele não teria tempo de existência suficiente capaz de permitir a criação de estruturas como galáxias, estrelas, planetas, vida.
Foi somente quando um cientista russo, Alexandre Friedmann produziu um modelo de um universo dinâmico que se pode perceber a importância da geração controlada de instabilidades capazes de fazer evoluir pequenas perturbações até a formação de estruturas como as que existem hoje nos céus.
Para isso, formas variadas de interação, simplificadamente descritas com a presença de pressões internas, tiveram papel importante. Esse processo de evolução controlada, através de interação entre diferentes partes do universo é o que sugiro chamar solidariedade cósmica.
Reconhecemos, assim, a solidariedade como um princípio fundamental do Cosmos, na tentativa de descrever os misteriosos processos no universo através de leis cósmicas.
Talvez devêssemos lembrar que no universo encontramos diversas catástrofes cósmicas, como galáxias que se devoram, estrelas que colapsam e se transformam em buracos negros etc.
Esses exemplos parecem contradizer a tese de solidariedade do cosmos. No entanto, estes exemplos são sempre questões locais, não envolvem a globalidade do cosmos, da qual a solidariedade que estamos nos referindo está associada.
Embora a analogia com a situação da espécie animal seja ineficiente, eu ousaria considerá-la somente para relatar a dicotomia local-global e suas diversas aparências no universo e nas relações entre animais. Ou seja, vamos ver (salvadas as consequências do comentário acima) o que diz André Pichot sobre a dualidade egoísmo-altruísmo na espécie animal.
Le dawinisme est consideré comme totalement égoiste, car il suppose une lutte sans merci entre les individus, dont seuls les plus aptes à vivre sortiront vainqueurs. Autrement dit: chacun pour soi, la sélection reconnaîtra les meilleurs. Pour sortir de cet égoïsme tout en conservant les principes darwiniens, il fallait donc imaginer un comportement altruiste héréditaire ayant une valeur sélective supérieure à celle de la lutte de tous contre tous un comportement conférant aux individus le pratiquant un avantage tel que l´évolution le conserverait. Wallace trouva ce comportement altruiste dans l´entraide entre les individus d´un même groupe social (il dit «tribu»). En effect, selon lui, une telle entraide entre ses membres permet à la tribu de plus facilement survivre dans la lutte pour la vie, comparativement aux tribus dont les membres ne s`entraident pas, tribus qui sont donc moins solidement soudés face à l´adversité (PICHOT apud NOVELLO, 2020).
Ou seja, o individualismo pessoal se transferiu para o egoísmo do grupo.
Para preservar o grupo, um efetivo altruísmo se instalou individualmente.
No caso do universo, a solidariedade global requer que as catástrofes acima apontadas sejam sempre localizadas, limitadas no espaço e no tempo, e que elas possam ser incorporadas como pequenas oscilações no território maior do cosmos. É nessa perspectiva que devemos entender os diversos ciclos do universo.
Quando isso não acontece, quando essa solidariedade global não se instala, o resultado é uma catástrofe global, o universo se destrói. O exemplo mais simples é o cenário cosmológico de Einstein.
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Recebido em 31 de março de 2021. Aceito em 15 de maio de 2021. Publicado em 22 de julho de 2021.
1 AVANT-PROPOS: Quando convidado a escrever sobre a diferença sexual, feminilidade e diferença em si mesma, minha primeira reação foi: “Não posso aceitar! O que um cosmólogo estaria fazendo nesse simpósio?” Mais tarde, conversando, ele me convenceu que sua ideia em me convidar estava relacionada à parte final complementando aquele título —Encontro para pensarmos uma ética das diferenças no mundo contemporâneo — o que me levaria uma vez mais a considerar um aggiornamento das críticas de Giordano Bruno ao establishment e trazer sua visão solidária do universo para a cosmologia contemporânea. Produzir uma ética a partir de uma visão cósmica, como Giordano Bruno pretendia, retira o cientista de uma orientação subordinada a interesses imediatistas e aponta um caminho que restitui o cientista à sua missão mais nobre de diálogo permanente com a natureza, o que sua prática cotidiana tende a dificultar cada vez mais. Para ser eficiente, um tal projeto requer que estendamos a mão para outros saberes, recolhendo e incorporando seus diferentes modos de olhar o universo. Mais do que uma simples aliança formal, um exercício teórico, esse diálogo entre ciência e filosofia é uma condição necessária, indispensável mesmo, à sobrevivência da espécie humana.