Por um pensamento que supere a autoadulação
Há um paradigma fundamental amplamente disseminado e reproduzido pelo senso comum que remete a um momento específico da história do pensamento – a modernidade, e a consequente visão de mundo que daí se originou.
O século XVII marca o momento da emancipação da razão, que se torna autônoma e audaciosa (o sapere aude), como diz Kant (1985). A modernidade marca o novo lugar para o sujeito como produtor das verdades morais e epistemológicas e a emancipação, do campo das ciências naturais do campo da filosofia. Ou seja, é a entrada da natureza na ordem científica, a compreensão que a natureza deve ser explicada pelos postulados científicos. Ou, melhor dito, pelos postulados científicos agora referenciados, uma vez que a construção da ciência data do início da filosofia.
O que se convencionou entender dai? Uma ideia amplamente difundida no senso comum é a de que houve um progresso na história do pensamento, uma evolução do pensar humano, uma conquista de uma inteligência mais desenvolvida que teria feito o homem se desvencilhar de práticas mágico-religiosas, supersticiosas e metafísicas, para finalmente, chegando a esse momento histórico “mais evoluído”, adentrar em uma prática do conhecimento segura, confiável, demonstrável empiricamente, manipulada experimentalmente e sustentada em cálculos, sustentada pelos princípios inquestionáveis da matemática. Como diz Galileu (2009), a história das ciências não se limita apenas às suas “experiências manifestas”, mas produz a vinculação destas experiências com as “demonstrações necessárias”. Campanella (2007), inclusive, em sua Apologia de Galileu, se serve do caráter matemático do trabalho deste como um elemento diferenciador e, portanto, como um relevante argumento a ser usado em sua defesa.
A partir do momento em que a ciência se torna o autêntico modo de produção do conhecimento, amparado por técnicas, instrumentos e matematicamente comprovado, a ciência emancipa-se da Filosofia. Ocorre que não é só isso. Mais do que se emancipar, a ciência apressa-se em distinguir-se da filosofia. Na visão científica, uma vez que se descobriu o legítimo modo de se conhecer a verdade, livre das superstições e limitações dos antigos, do berço filosófico, era mais do que urgente abraçar esse novo método, impô-lo como condição da ciência e, por conseguinte, desprezar tudo o que se constituísse como traço ou memória metafísica ou filosófica. A filosofia ficaria aqui apenas relegada ao campo das curiosidades, a um tempo primevo, originário, das primeiras especulações.
Em consequência, daí advém, com clareza, a distinção entre o mundo da ciência e o mundo da filosofia. Entre os séculos XVI e XVII, emergem as ciências naturais com a crença de que o discurso científico puro seria possível e mais do que isso, apenas ele favorável à verdade e ao progresso humano. Mais do que desconfiança, a filosofia passa a ser objeto de autêntica repulsa. Com esse completo e preciso afastamento, se elabora um ‘ceticismo anti-metafísico’, teorias científicas nas quais, como parece claro, a filosofia e com mais razão, a metafísica, não teria lugar. Em resumo, o discurso comum do alvorecer da ciência moderna definiria a idade positiva da ciência, em contraposição à sua pré-história ou idade metafísica.
Construída pela razão e apoiada por uma técnica, a ciência nascente, positiva, terá como referência as relações empiricamente observáveis e se erigirá como o saber confiável, o único genuíno para enunciar as verdades, exatamente porque apartado das abstrações filosóficas. O cientificismo, regra geral, tomará a filosofia como sua adversária e considerará que este campo do saber nada tem a lhe oferecer, mas antes, estaria cercado de problemas que atrapalham o seu caminho e mesmo impedem a busca e obtenção do legítimo conhecimento.
Antes de tudo, portanto, é preciso retificar essa crença – a crença de que o cientificismo foi um grande passo que o pensamento deu e que o livrou de formas arcaicas e já ultrapassadas de pensar, chegando a um momento superior, iluminado pela razão, ou seja, uma nova era para as conquistas epistemológicas.
Retificando então essa ideia vulgarmente disseminada, podemos pensar que a filosofia, em determinado momento histórico, enamorou-se por uma nova forma de pensar e construiu novos critérios de verdade, o que significa dizer que a filosofia, no século XVII, faz uma nova experimentação de pensamento e essa experimentação altera por completo o caminho do conhecimento.
Ou seja, a filosofia, em determinado momento histórico, passa a reagir contra aquilo que seria a sua dimensão mais original; ela apaixona-se pela crença de que pode produzir verdades definitivas por meio da razão e da técnica experimental e se disfarça de outra natureza. Daí o conceito de filosofia disfarçada. A ciência não enxerga esse disfarce, porque a ciência já parte do pressuposto da evolução, já parte do pressuposto de um outro discurso, independente e autônomo em relação à filosofia.
Como diz Stanley Cavell em seu texto Pursuits of Happiness: “É algo que constitui a dificuldade específica da filosofia e requer sua força peculiar, de receber inspiração para o pensamento das próprias condições que se contrapõem ao pensamento” (apud Davidson, 1990).
A ideia é que haveria forças no interior do próprio pensamento que se contrapõem àquilo que há de mais potente no pensamento, como se ocorre um enamoramento, uma sedução por experiências do pensamento que são menores do que a atividade de pensar pode proporcionar ao homem. Essa é a ideia fundamental.
Não se trata aqui de opor campos do pensamento, muito menos de inverter uma orientação comum, mas sim de propor uma interpretação em que se entende a ciência moderna como uma experiência da própria filosofia, um momento em que a filosofia se disfarça, por assim dizer, que ela produz algo que parece distinta dela mesma.
A questão é que essa nova experiência vai ser por demais festejada pelos homens, como se fora uma conquista definitiva, como se fora de uma suficiência tão absoluta que nenhuma outra experiência do pensamento importa. E assim, de experiência do pensamento ela passa a ser proclamada como o grande êxito humano, como critério inquestionável de produção do conhecimento, como saber independente, neutro, fidedigno.
É claro que, na história das ciências, seguiram-se muitas e diversas formas de compreender a própria ciência, o modo como ela pode se constituir, a partir, inclusive, de importantes diferenças paradigmáticas. Com Popper (2019), por exemplo, assenta-se a ideia de que a descoberta da verdade é um processo que não tem fim, logo, na visão desse autor a ciência seria algo de natureza frágil e que está permanentemente sob provas, experimentos que a avaliam e que tentam falseá-la.
Mas a questão aqui não é essa. A questão aqui é que, de modo geral, a atividade científica tem frente à vida uma atitude bastante peculiar, pois determinadas ideias, teorias ou possibilidades assombra a ciência, provocando por parte dela uma reação de rejeição ou repulsa.
O cientista, a despeito do caminho crítico que se construiu ao longo da própria história da ciência, sempre trabalha com um horizonte e esse horizonte, de modo geral, não contempla formas de pensar paradoxais, estranhas às suas referências intelectuais, diversas do modo como vivenciamos o nosso cotidiano.
Quando se pensa a vida ou o universo sem nenhuma ordem ou determinação, com múltiplas e surpreendentes propriedades, com funções que estão sempre a mudar em um dinamismo atordoante, com frequência, a reação científica é de rejeição. A ciencia, habitualmente, opta por uma abordagem que tenta conter a multiplicidade, desacelerar as velocidades infinitas, reproduzir o já observado.
Certamente pode haver uma forma diferente de se fazer ciência, distinta dessa anteriormente mencionada, em que o cientista não teme estar diante de um universo inacabado, em que não rejeita as surpresas potenciais do mundo, em que se apaixona pelo paradoxo e por ideias que violam as regras do intelecto. Mas para isso é preciso que ele afirme uma outra imagem do pensamento, uma imagem diversa da que se consolidou ao longo da história .
Quando se olha para a história do pensamento, embora existam muitas escolas e teorias, é possível perceber (com a maior facilidade) que há um modo de pensar predominante, vitorioso, que estabelece como que uma direção geral do ato de pensar e um modo de compreender o que ele seja.
Por outro lado, a história sempre registrou pensadores escalenos, pensadores que marcam em relação a essa forma de pensar predominante uma importante e curiosa declinação – isso em todos os campos do saber. Os pensadores escalenos, de modo geral, são pouco conhecidos, estudados ou referenciados, muitas vezes ditos loucos ou excêntricos, de todo modo, são aqueles que ousam fazer da experiência de pensar não um contentamento de si, não uma busca por segurança e bem estar; não são os que produzem suas ideias com base no interesse da sociedade ou que podem ser com facilidade aceitas e reproduzidas.
Tais pensadores pertencem a uma linhagem prodigiosa do pensamento, em que o fundamental é a criação, a criação permanente, o que faz desmoronar todas as leis, todas as pretensões morais, toda idealidade em favor de um ânimo que já não se apoia em nenhuma figura transcendente. Eles possuem um gosto pelo pensamento afirmativo e criador, pela cultura da alegria, pela inspiração para o aumento de força, para novas possibilidades de vida e lutam para não serem devorados pela vulgaridade.
E por que seriam esses pensadores escalenos? Por que eles são os chamados “menores”? Por que o modo de pensar predominante é outro? O modo de pensar predominante na história, a chamada imagem dogmática do pensamento, como define Deleuze (1988, p. 219), se ajusta, se adequa às pretensões humanas, porque ela faz uma autoadulação no sujeito que pensa.
Mas o que significa ser autoadulado? O que significa buscar o pensamento que adula a si mesmo?
O homem tem pretensões, tem desejos de realizar um modo de existência em que todas as suas promessas ideais possam ser cumpridas. Ele gostaria de ver realizado, para a sua segurança, para o seu contentamento, para o seu bem-estar, inclusive do ponto de vista da espécie (limitado que é por sua constituição biológica), um mundo ordenado, determinado e verídico, livre das ambiguidades e contradições que caraterizam o mundo em que se vive.
O repouso, a identidade, a coerência, a permanência, as leis universais são ideais quase que infantis que caracterizam o homem e, suas ambições civilizatórias, é que tudo isso possa ser plenamente realizado. Desse modo, toda construção teórica sobre o mundo que reproduz esse ideal parecerá ao homem o óbvio e o sábio caminho que o pensamento deve seguir.
Quando o homem cria uma interpretação do mundo que afirma ser a vida marcada pela organização causal, pela coerência dos fenômenos, pela homogeneidade das formas, pela racionalidade dos acontecimentos, ele se sente confortável, se sente bem, se sente acolhido, acalentado, amparado, como que acarinhado em um abraço materno.
Em outras palavras, o homem, em razão de sua pequena humanidade, de sua fragilidade enquanto espécie, de sua necessidade de conservação, de ser apaziguado frente a suas dores, tormentos e incertezas, construiu uma forma de pensar em que tudo está apascentado, contido, a salvo. E é assim que o homem tornou o pensamento que mais lhe agrada, o pensamento que mais contenta suas pretensões, o pensamento referencial da história humana.
E, quanto mais esse pensamento parece cumprir as promessas que ele vê realizadas, mas ele o saberá valorizar. Quanto mais adequado às suas pretensões esse pensamento for, mais será tomado por certo, sólido, verdadeiro, admirável. Entra-se em uma espécie de círculo vicioso delirante, em que o homem constrói o pensamento que parece o livrar dos seus medos e quanto mais parece efetivamente colocar a vida a salvo dos riscos, mais se torna vitorioso.
Toda a questão é que essa forma dogmática de pensar, solidificada, cristalizada em estratos ao longo da história é reconfortantemente aduladora. Quanto mais aduladora é a ideia, o estrato que se construiu, mais você confia no estrato; quanto mais você confiar no estrato, mais adulado você fica e quanto mais adulado você fica, mais você quer confiar no estrato.
Aquietado em suas angústias, amparado em suas incertezas, sejam elas biológicas, morais ou políticas, o homem constrói um pensamento sob medida para si e ilusoriamente cria a cura de si mesmo, quando em realidade nada mais faz do que se auto adular, se auto proteger do que não pode ser protegido. Assim, os homens vão patinando de teoria autoaduladora em teoria autoaduladora e, sentindo-se confortável, ele só deseja que tal forma de pensar se reproduza e penetre todos os campos do saber.
O pensamento autoadulador é o que estabelece uma conformação da natureza às ideias do homem, descrevendo leis e princípios que a sua capacidade intelectiva consegue conceber e demonstrar. As leis físicas de validade universal, as regras do intelecto, os princípios de controle moral são uma limitação ao pensamento e um caminho de busca de referências seguras de autoadulação, mas ilusórias e limitativas. Como diz Nietzsche (1984), é uma fábula, um equívoco, uma vida na ilusão.
É preciso, então, ter coragem para encarar o mundo como ele é, para se situar no caos que é a vida. O ato de pensar não existe para o contentamento humano, para lhe trazer qualquer tipo de proteção ou engodo.
Significa dizer que para além de construir um conhecimento útil, prático e claramente importante para sua sobrevivência e bem-estar, o homem tem a possibilidade de colocar o seu espírito a serviço de potências que extrapolam os interesses corriqueiros e vulgares. O homem tem a possibilidade de experimentar usos por ele insuspeitos, de compreender, inclusive, como o intelecto possui regras que limitam a própria atividade de pensar.
A filosofia e a ciência podem entrar em relações de ressonância múltipla, em relações de troca, nesse caminho não dogmático, sendo capaz de fazer transformações no mundo, de desfazer as imagens dadas, de sair de seus limites, de suas tendências autoaduladoras. Tais disciplinas podem fazer essa nova experiência do pensamento, não mais dominada pela afeição que o homem sente por si mesmo, mas impulsionada pela revelação de novas novas conquistas, novas formas de resistir.
As teorias da adulação reivindicam mundos ordenados, mas o contraste entre este e a realidade efetiva constitui um dos aspectos mais característicos dos pensadores escalenos. Ela se dá quando no mundo homogeneamente ordenado que acreditamos viver, o caos irrompe assustador e perturbador e a confiança metafísica em um sentido do mundo, na bondade e racionalidade, vacila, e todas as garantias de um pensamento objetivo, real, adequado, perdem a sua razão de ser, tornado impossível encontrar-se diante dos seguros caminhos.
Como diz Mach (apud SIGISMONDI, 2002), que a visão científica (ou filosófica) não seja econômica, que não seja apenas uma recombinação de velhas ideias, uma filiação a representações que não admitam variações ou mudanças frente ao já pensado, comodamente adequada aos interesses constituídos. Se se parte do pressuposto que a natureza não se repete, para melhor pensá-la ou compreendê-la, é imperativo um pensamento que supere a autoadulação. Nas palavras orientadoras de Foucault: “liberem-se das velhas categorias do negativo que o pensamento ocidental há muito tempo sacralizou como forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade” (2013, p. 105).
Referências
CAMPANELLA, T. Apologia de Galileu. São Paulo: Hedra, 2007.
DAVIDSON, Arnold et all. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Âyiné, 1990.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Volume VI. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
GALILEI, G. Ciência e fé. São Paulo: Unesp, 2009.
KANT, I. O que é o esclarecimento? In Textos seletos. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
NIETZSCHE, F. O livro do filósofo. Porto: Rés, 1984.
POPPER, K. O mundo de Parmênides. São Paulo: Unesp, 2019.
SIGISMONDI, R. La teoria della conoscenza di Ernst Mach. Chieti: Tabula Fati, 2002.