Pioneirismo e originalidade no estudo sistemático da cosmologia*
*Artigo escrito em 2009 e publicado em revista interna do CBPF.
* Sobre a imagem destacada.1
Uma verdade científica nova não é geralmente apresentada de maneira a convencer os que se opõem a ela (…) simplesmente pouco a pouco eles morrem, e nova geração que se forma familiariza-se com a verdade desde o princípio.
(PLANCK, 1948)
O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) foi a primeira instituição do país a promover sistematicamente o ensino e a pesquisa da cosmologia moderna. A atividade acadêmica e científica do seu Grupo de Cosmologia e Gravitação iniciou-se em 1976 no Rio de Janeiro, a partir de árduo trabalho de seu idealizador, Mário Novello, que desde meados de 1972 dedicava-se a formar os primeiros físicos brasileiros nesta área.
Hoje, o resultado desse esforço se expande por todo o território nacional e se evidencia no intenso intercâmbio com centros de pesquisa e universidades brasileiras e de outros países, como Argentina, França, Estados Unidos, Espanha, Rússia, Israel e Dinamarca. No Brasil, importantes lideranças científicas formadas pelo CBPF atuam como multiplicadores do conhecimento lá adquirido, na condição de pesquisadores e professores de cosmologia na Universidade Federal da Paraíba, na Universidade de Brasília, no Instituto de Ciências da Escola Federal de Engenharia de Itajubá e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre outras.
O grupo do CBPF ganhou status de instituto somente em 2003, com o anúncio oficial da criação do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA-Brasil) pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, mas sua história começa em 1972.
Naquele ano, Mario Novello cursava seu pós-doutorado na Universidade de Oxford, sob a orientação de Dennis Sciama, que foi aluno de Paul Dirac e orientara teses de doutorado de Stephen Hawking, Martin Rees e John Barrow, entre outros, além de influenciar profundamente Roger Penrose. É nessa ocasião que se dá a guinada nas aspirações científicas do pesquisador brasileiro, que tivera como orientador de sua tese de mestrado a lendária e carismática figura do físico teórico José Leite Lopes (CBPF) e a de Josef Maria Jauch como supervisor de doutorado na Universidade de Genebra.
De fato, é Sciama, com seu vasto e eclético conhecimento em física e interesses que abrangiam astronomia, astrofísica, relatividade geral e buracos negros, quem irá inspirar Novello, fazendo-o se interessar pelas teorias da gravitação em sua vertente técnica. Isto porque, em sua perspectiva histórica, o tema já o encantava desde a década de 1950, quando Novello lera O universo e o dr. Einstein, de Lincoln Barnett (1948).
O conturbado momento político vivido pelo país nas décadas de 1960 e 1970 teria grande repercussão na vida institucional do CBPF. Com o golpe militar de março de 1964 e a publicação do Ato Institucional nº 5, os seus melhores quadros foram proibidos de continuar exercendo suas atividades científicas. Alguns deles optaram por trabalhar em universidades no exterior, como José Leite Lopes, que aceitou convite de Maurice Levy para lecionar na Faculdade de Ciências de Orsay. Outros seguiram para a UnB, como Roberto Salmeron e Jayme Tiomno. A debandada geral esvaziou completamente o Departamento de Física Teórica do CBPF.
Em agosto de 1972, quando Novello regressou ao país, a física passava por um período de grande desenvolvimento. O progresso científico geral observado no Brasil do milagre econômico pode ser atribuído, em parte, à criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e sua competente administração por Jorge Pelúcio Ferreira à frente da Finep. Esta fundação financiara a infraestrutura de grupos de pesquisa em todo o país. Nessa época, por diversas razões, vários físicos que se encontravam no exterior regressam e se juntam aos muitos jovens doutores e estudantes brasileiros de pós-graduação financiados por bolsas do CNPq e da Capes.
Tal efervescência, entretanto, não alcançou a cosmologia. Pode-se dizer que, no início da década de 70, assim como na Europa das primeiras décadas do século XX, apenas um pequeno número de cientistas brasileiros dominava suficientemente as sutilezas da teoria geral da relatividade para prosseguir com as pesquisas na área.
Na verdade, um dos fatos marcantes daquela década na ciência brasileira foi a expansão da física da matéria condensada, por suas inter-relações com a tecnologia avançada. Via-se ali a salvação econômica do país. O CBPF não escaparia dessa tendência, e seus pesquisadores poderiam ser agrupados entre os que se dedicavam à física da matéria condensada e os que trabalhavam na física teórica. Como pioneiro dos estudos e grande sistematizador da teoria da gravitação destaca-se Colber Gonçalves de Oliveira, criador do primeiro Grupo de Relatividade do CBPF, do qual Novello participou durante seu mestrado (1966-68).
Documento sugestivo da situação da cosmologia brasileira na época é a carta que Novello dirige ao então presidente do CNPq, Arthur Mascarenhas Façanha, em 29 de setembro de 1973, ao ver recusado seu pedido de bolsa de chefe de pesquisa do CBPF. Em tom incisivo, o jovem Novello afirmava ser portador de um dos melhores currículos na física brasileira e “ser o único cosmólogo em atividade no Brasil à ocasião”. Em seguida, sentenciava que o setor de cosmologia era totalmente ignorado no país, “a despeito dos recentes e formidáveis resultados experimentais obtidos via satélite e por outros meios”, o que a elevava ao estatuto de “verdadeira ciência”. Informava, ainda, ao CNPq ter começado a formar um grupo de cosmologia no CBPF, com seus alunos de mestrado e doutorado: “a existência de um grupo pioneiro de cosmologia no CBPF já é uma realidade”, afirmava em sua carta.
A resposta não tardaria a chegar. Em 20 de novembro de 1973, uma carta assinada pelo então diretor da divisão técnica do CNPq, Ivan Gonçalves de Freitas, comunicava, em tom breve e burocrático, que o Conselho Deliberativo do CNPq aprovara a concessão da bolsa de chefe de pesquisa a Novello, num reconhecimento velado à argumentação do cosmólogo. Este seria um dos muitos embates em que Novello se envolveria, visando fundar o campo da cosmologia moderna no país.
O físico Sérgio Jofilly, que acompanhou o crescimento do grupo desde os primórdios, declara:
Mario criou este grupo aqui a partir de um fato concreto e não de uma proposta programática. Ele tinha uma força científica muito grande, um trabalho e uma divulgação muito eficientes. Desta forma ia polarizando os interesses e começando a ocupar espaço como se possuísse um departamento. Só assim seria possível criar naquela época um grupo de Cosmologia no CBPF.
Mais tarde, Novello admitiria que uma certa arrogância lhe ajudara a enfrentar todos os obstáculos colocados à concretização de seu sonho. “Como eu era muito jovem, tinha uma vantagem. Era bastante arrogante. Em certo sentido foi desagradável, pois criei inimizades sem necessidade. Mas foi muito útil para lidar com autoridades. Como eu era muito assertivo, revelava à autoridade sua incompetência ao não ver a importância da cosmologia. Isso devia transparecer de tal modo que as portas se abriam”.
De fato, enquanto no Brasil a cosmologia inexistia, no exterior a astronomia e a física de partículas travavam um apaixonante diálogo, na busca de respostas aos mistérios que desde sempre intrigam a humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? “Quando voltei ao Brasil, fui bastante criticado nos primeiros dez anos porque meus colegas acreditavam que cosmologia não era ciência e sim filosofia. Isto era um absurdo porque os anos 70 representaram, de fato, o grande boom da cosmologia no mundo inteiro”, recorda.
A força de uma idéia
O projeto de criar um Grupo de Cosmologia e Gravitação no CBPF surgiu para Novello em julho de 1971, após sua participação em um evento que muito o impressionaria, por sugestão de seu supervisor de pós-doutorado, Dennis Sciama. Tratava-se da primeira Escola Avançada de Cosmologia promovida pelo Instituto de Estudos Científicos de Cargèse, cidade situada na costa oeste da Córsega. Desde 1961, eram ali realizados encontros anuais de física, que duravam duas semanas e punham em contato estreito, num lugar aprazível, cientistas de renome e jovens pesquisadores. Naquele annus mirabilis de 1971, sob a coordenação do astrofísico Évry Schatzman e do físico teórico Maurice Lévy, o tema do evento não poderia ser mais apropriado: “Cosmologia e termodinâmica dos primeiros tempos do universo”, razão pela qual Dennis Sciama instara para que seus alunos participassem.
Aquela Escola de Cargèse durou duas maravilhosas semanas, sob a alegre e descontraída coordenação do professor E. Schatzman. Ele, um entusiasta da divulgação científica, reuniu durante algumas noites – ora na praia, ora no centro da pequeníssima Cargèse, os jovens participantes da Escola para, naquelas belíssimas e estreladas noites, explicarmos as recentes descobertas da astrofísica e da cosmologia aos maravilhados moradores das localidades vizinhas. Depois de uma breve introdução ao comportamento e estruturas das estrelas e das galáxias, nosso coordenador incitava os moradores a fazerem perguntas, de todos os tipos, aos cientistas. Perguntas que não se limitavam às áreas da astrofísica, cosmologia e física em geral, mas inevitavelmente transbordavam para o papel social do cientista, um tema que apaixonava Schatzman (NOVELLO, 2008).
A sugestão de Sciama fora crucial para Novello e serviria para renovar sua convicção de que estava no caminho certo. Isso porque, uma semana antes, de passagem por uma conferência no Centro Internacional de Física Teórica, em Trieste, o cientista brasileiro ouvira de um colega, cujo nome prefere não revelar, notícias muito pouco animadoras: “haviam decidido” que seria muito importante para o Brasil e o CBPF que ele desistisse da cosmologia e orientasse suas pesquisas para “uma área mais útil para o país, como, por exemplo, algum setor da física do estado sólido”, sob pena de não ter sua bolsa de doutorado renovada.
Este é mais um exemplo das atribulações por que passava, naquela época, um cientista brasileiro interessado pela cosmologia. O impasse seria resolvido pelo físico brasileiro Roberto Salmeron, que, ao tomar conhecimento do projeto de tese de Novello, quando trabalhava no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN), em Genebra, resolvera apoiá-lo em sua decisão.
Empolgado com o que viu em Cargèse alguns meses após esse incidente, Novello manifestou a um solícito Évry Schatzman sua intenção de replicar aquele modelo de evento científico no Brasil, quando lá chegasse.
Ele [Schatzman], extremamente atencioso como sempre, comprometeu-se dizendo que eu poderia certamente contar com seu apoio, acrescentando uma questão sobre o número de cientistas brasileiros trabalhando nessa área. Respondi que embora houvesse uns poucos isolados físicos que poderiam acompanhar o desenvolvimento das modernas propriedades da teoria da gravitação, não havia nada sistemático em meu país. Ele então acrescentou que, para que esta ideia pudesse ser bem-sucedida, eu deveria antes tratar de criar um pequeno núcleo de jovens cientistas a quem fosse dada uma formação sólida em teoria da gravitação e um ou mais anos de estudos cosmológicos. Quando voltei ao CBPF, no segundo semestre de 1972, foi precisamente o que fiz, criando o grupo de Gravitação e Cosmologia do CBPF (Id. ibid.).
A passagem de Mario Novello por Cargèse foi, portanto, determinante na criação do Grupo de Gravitação e Cosmologia do CBPF (1976) e na concepção das Escolas Brasileiras de Cosmologia e Gravitação (1978).
O Grupo de Cosmologia e Gravitação
A definição canônica de uma escola de pesquisas, na literatura especializada, foi dada por Geison. Segundo ele, “trata-se de um pequeno grupo de cientistas perseguindo um programa coerente de pesquisa lado a lado com estudantes avançados no mesmo contexto institucional e engajando-se em interação intelectual e social continuada e direta” (GEISON, 1981).
Mais tarde, Fruton (1988) irá manifestar sua preferência pela expressão “grupo de pesquisas” para definir a realidade que Geison estaria descrevendo com seu conceito. Isto porque “escola de pesquisa”, no seu entender, falaria a favor de um grupo de cientistas não necessariamente concentrados na mesma instituição, mas partilhando um programa de pesquisas coerente.
Dois fatores são cruciais para se entender o sucesso do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF. O primeiro deles foi a criação da Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação, evento de periodicidade regular em que cientistas de renome internacional no campo da Cosmologia discutem suas descobertas com pesquisadores, mestrandos e doutorandos durante duas semanas. O segundo, a criação do “pequeno seminário”, encontro de periodicidade semanal que há 30 anos reúne os pesquisadores de Cosmologia do CBPF para troca de idéias acerca de suas investigações.
A Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação
Em 1976, o CBPF passou por uma mudança radical. Consciente das dificuldades que constantemente afligem uma instituição voltada para a pesquisa básica, o governo brasileiro decidiu integrá-lo a um órgão federal. O CBPF tornou-se, então, o primeiro instituto de pesquisas físicas incorporado diretamente à administração do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), atual Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
O momento era mais do que oportuno para deflagrar uma ação que visasse constituir massa crítica de cosmólogos no país e debelar o ceticismo da comunidade científica a respeito da novidade instaurada pela cosmologia. Novello aproveitou a ocasião e propôs a organização, em 1978, da primeira edição da Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação (EBCG), inspirado por sua memorável passagem por Cargèse.
A posse de Antonio César Olinto como diretor do novo CBPF/CNPq foi fundamental para a consolidação da EBCG. Comprometido com a renovação da instituição, Olinto concordou em conceder o apoio financeiro necessário à realização da Escola e abriu caminho para que a cosmologia se tornasse uma nova área de atuação do CBPF e conquistasse seu espaço no Brasil.
A cada Escola, os temas se sofisticavam, acompanhando os avanços da pesquisa no setor, e “hoje essas escolas são do mesmo nível daquelas encontradas na Europa e em qualquer lugar do mundo’’, afirma Novello. Em 2008 foram comemorados os 30 anos dessa iniciativa, que prossegue rumo a 14ª. edição, que acontecerá em 2010.
O físico Luiz Alberto Oliveira, colaborador de primeira hora de Novello no CBPF, é enfático em destacar:
Não preciso dizer para você as dificuldades extenuantes e assombrosas que se enfrentava para promover estas Escolas e que só foram sanadas pela persistência de Mario Novello. Realmente é incrível a quantidade de esforço que ele teve que despender para conseguir realizar não uma Escola, mas 13! É algo que precisa ser destacado, num país com as dificuldades, mazelas e incompreensões do Brasil.
Cada Escola era dividida em duas partes, envolvendo cursos básicos que duravam uma semana inteira, e seminários avançados cujas aulas poderiam se limitar a uma ou, no máximo, três sessões. Seu orçamento era muito pequeno e provinha basicamente do CBPF. Mas o entusiasmo dos estudantes foi tão grande que a transformou imediatamente em um enorme sucesso. A força de vontade dos alunos estimulava enormemente os professores, que passaram toda a Escola em permanente atividade, produzindo uma interação aluno-professor que se tornou sua marca registrada. O sucesso da estréia possibilitou que o diretor do CBPF convencesse órgãos de fomento, como CNPq e Capes, a financiar imediatamente a segunda edição da EBCG, ocorrida em 1979, muito mais completa e organizada do que a primeira.
A primeira e a segunda edições da EBCG serviram para consolidar, junto aos jovens físicos, a estrutura básica da teoria da gravitação, e para oferecer conhecimentos sólidos a respeito das ferramentas e técnicas matemáticas, indispensáveis à maior compreensão da teoria da relatividade geral e da estrutura evolucionária do espaço e do tempo. Além desse trabalho de base, foram ali apresentados conceitos primordiais de teorias correlatas à gravitação e à relatividade geral, envolvendo rudimentos das teorias unificadas e aspectos básicos da astrofísica relativística.
A EBCG rapidamente se configurou em fórum privilegiado de estudo e análise das principais questões associadas à cosmologia. Um breve exame do perfil assumido por esses eventos ao longo desses 30 anos permite compreender como esta ideia tem evoluído e atestar seu impacto na consolidação da cosmologia como legítimo campo do saber.
Um balanço positivo
A década de 1980 foi marcada por uma grande retração das verbas federais destinadas à ciência e tecnologia, mas isso não representou obstáculo à determinação de Novello e seus colaboradores em promover a Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação.
Na terceira e quartas edições da EBCG, ocorridas em 1982 e 1984, foram aprofundadas as noções de astrofísica apresentadas nas Escolas anteriores. Além disso, focalizou-se o estudo das teorias de partículas elementares e sua íntima associação com o chamado Modelo Padrão da Cosmologia – modelo identificado com a noção de um princípio explosivo e quente para o universo, conhecido na literatura como hot big bang hypothesis.
Em sua quinta edição, em 1987, a Escola se internacionalizou, com a participação de pesquisadores e alunos de 24 países. Passou então a ser conhecida como Brazilian School of Cosmology and Gravitation (BSCG), e os cursos nela realizados também refletiram esta nova realidade. A base de conhecimento e análise apresentada nos anos anteriores se ampliou, evoluindo para um debate mais profundo sobre as possíveis alternativas de explicação do comportamento em larga escala do Universo. Realizaram-se cursos baseados no Modelo Padrão, e cursos que examinavam a ideia de um Universo eterno, sem começo nem fim. Além dessas abordagens específicas, foi possível investigar, em detalhes, a relação entre a física quântica e a gravitação. Embora essa união esteja longe de ser considerada completa, foram expostas naquela Escola as ideias básicas envolvendo processos quânticos da gravitação, posteriormente desenvolvidas na sexta edição.
Em 1988, o Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF pretendeu dar uma função permanente às Escolas, por meio da criação de um Centro de Cosmologia, na esfera do Ministério de Ciência e Tecnologia. Naquela ocasião, opiniões a respeito do grupo de pesquisas foram solicitadas a vários físicos a pedido do então ministro Ralph Biasi, e deve-se destacar o apoio oferecido a Novello por César Lattes.
Quando Lattes vinha ao Rio, costumava conversar com o cosmólogo a respeito dessa possibilidade, mas achava desnecessário escrever sobre seu apoio à ideia de transformação das Escolas de Cosmologia e Gravitação em um foro permanente e contínuo, voltado integralmente para questões cosmológicas. Por fim, convencido de que sua carta poderia ser importante para que os gestores de ciência e tecnologia conhecessem sua posição a respeito da questão, Lattes concordou em escrevê-la.
No entanto, a institucionalização do Grupo de Cosmologia e Gravitação teria de esperar até 2007, quando foi publicado no Diário Oficial o decreto de criação do ICRA-Brasil.
Durante as duas semanas da sexta edição da BSCG, em 1989, ideias rapidamente esboçadas na Escola anterior foram desenvolvidas. Nota-se na programação dos cursos a ênfase dada a processos quânticos em cosmologia. Além desses cursos, com duração de uma semana cada, ocorreram pequenas reuniões de trabalho, baseadas em cursos paralelos. Entre os eventos adicionais ali promovidos, dois tiveram particular importância: a abertura de uma sessão de seminários dos alunos-participantes, permitindo assim uma maior interação entre eles e os expositores, e a criação de uma sessão extraordinária de debates, na qual os dez professores palestrantes expuseram, individualmente, a sua opinião sobre as principais questões da cosmologia e áreas correlatas. Esta experiência foi tão bem-sucedida que passou a integrar a organização das Escolas subsequentes.
Entre os anos de 1990 e 1992, a crise de financiamento federal, que já se anunciara na década de 1980, agravou-se substancialmente.
Institutos e departamentos de física que contavam com apoio regular da Finep desde a década de 1970 tiveram seus financiamentos interrompidos ou drasticamente reduzidos. O CNPq não teve recursos para pagar auxílios para pesquisa aprovados em 1991 e 1992. Em consequência, muitos técnicos pagos com verbas de projetos foram despedidos e atividades de pesquisa foram interrompidas ou tiveram seu ritmo muito reduzido, provocando o desânimo entre pesquisadores e estudantes e estimulando a evasão de doutorandos bolsistas no exterior (REZENDE, 1996, p. 188).
Por conta dessa conjuntura desfavorável, não foi possível manter a periodicidade da BSCG, em 1991. Entretanto, com o objetivo de não prejudicar toda uma geração de jovens cientistas, realizou-se um pequeno encontro no CBPF, uma mini-escola, entre os dias 15 e 26 de julho.
Em 1993, a BSCG volta a seu ritmo normal, e sua sétima edição é realizada novamente em duas semanas. Além de apresentar um panorama geral sobre as principais conquistas da cosmologia, prossegue o debate sobre uma das mais formidáveis questões não resolvidas do pensamento: a criação do Universo. A grande novidade se deveu à mudança geral de comportamento dos cientistas quanto ao passado remoto do nosso Universo. Se até aquele momento atribuía-se a uma inacessível explosão inicial a função de geradora de explicação de todos os ulteriores processos da natureza, na sétima edição da Escola começaram a surgir propostas concorrentes acerca da teoria da criação, tanto clássica quanto quânticas.
Assim, modelos de Universo eterno sem singularidade foram discutidos nessa edição da Escola.
Havia, entretanto, um consenso geral de que o Universo teria passado por um período extremamente quente. Isto poderia significar que um processo de tunelamento quântico ou fase colapsante clássica anterior à sua expansão deveria oferecer condições para que um momento de tremenda concentração de matéria/energia tivesse acontecido. Diferentes propostas nesta direção foram examinadas nos cursos e seminários dessa Escola.
A faceta internacional da BSCG consolidou-se em 1995. Não somente pelo fato de esta edição ter contado com professores de grande prestígio mundial, mas também em razão do grande número de participantes-alunos vindos de outros países. Nessa Escola deu-se ênfase especial a processos quânticos e suas consequências num Universo em expansão.
Examinaram-se os processos quânticos de matéria, tanto do ponto de vista observacional e clássico quanto por meio de processos quânticos elementares, e foram apresentadas diferentes propostas de tratamento quântico do próprio campo gravitacional. Discutiram-se também tentativas de explicação da existência e formação de grandes estruturas, como galáxias e aglomerados de galáxias.
A nona edição da BSCG, em 1998, contou com a participação de cientistas da Argentina, Canadá, Dinamarca, França, Israel, Itália, México, Portugal, Rússia, Espanha, Estados Unidos e Venezuela. A comemoração do vigésimo aniversário da BSCG foi o momento oportuno para prestar uma homenagem à física Yvonne Choquet-Bruhat, com discurso pronunciado pelo físico canadense Werner Israel. Nessa escola enfatizaram-se os processos astrofísicos localizados, em particular [as] propriedades de buraco negro. O astrofísico George Smoot ministrou uma palestra sobre radiação cósmica de fundo, considerada o Santo Graal da cosmologia. Por suas pesquisas nessa área e seus trabalhos com o satélite COBE (1974), Smoot foi agraciado com o Nobel de Física em 2006. A teoria de campo gravitacional e as teorias de campo a respeito do cone de luz e as geometrias representando universos em expansão também foram apresentadas nesta Escola.
A décima edição da BSCG ocorreu em julho de 2002 e recebeu cientistas do Brasil, Argentina, Alemanha, Bolívia, Canadá, Chile, Dinamarca, França, Inglaterra, Irlanda, Itália, México, Polônia, Rússia, Estados Unidos e Turquia. Nessa ocasião, a BSCG consolidou sua tendência ao exame de questões não convencionais da cosmologia e de áreas correlatas.
Em 2006, a 12ª BSCG teve o número recorde de 120 inscrições. Porém, em virtude das restrições orçamentárias e do compromisso dos organizadores com a qualidade do evento, foram aceitas 70 pessoas, entre palestrantes, pesquisadores e estudantes. Os cursos realizados durante as duas semanas do evento tiveram conteúdo teórico e observacional, destacando-se, na primeira delas, o de Vladimir Belinski, que apresentou novidades que questionam profundamente a existência da chamada “radiação de Hawking”. Jean-Pierre Gazeau fez uma análise completa das estruturas associadas ao grupo de deSitter e ao grupo anti-deSitter, suas representações irredutíveis e os respectivos limites para o grupo de Poincaré quando a curvatura vai a zero. No seminário avançado de U. Moschella foram vistas algumas das importantes diferenças que este grupo pode gerar, não somente na questão do conceito de massa, como em algumas propriedades notáveis envolvendo o decaimento de partículas em um background de deSitter. Remo Ruffini expôs as últimas novidades relacionadas aos pulsos abruptos de raios-gama e como seu cenário de “dyadosphere” parece explicar bem as recentes observações.
Na segunda semana, A. Dolgov trouxe a público uma série de cenários alternativos para algumas das questões cruciais da cosmologia, entre as quais o excesso de matéria sobre anti-matéria e os diferentes mecanismos que poderiam ter gerado esta desigualdade, dentro do tradicional “programa de Sakharov”. Discutiu algumas das importantes consequências da existência de uma pequeníssima massa para o fóton, compatível com a precisão das medidas da lei de Coulomb, e, em particular, quando esta massa aparece como decorrência de acoplamento não-mínimo entre os campos eletromagnéticos e a gravitação – proposta que na literatura científica foi exaustivamente examinada por Mario Novello e José Salim. Martin Bojowald relatou os mais novos desenvolvimentos da teoria quântica da gravitação no espaço de laços (loops), e sua possível incidência na singularidade inicial e nos buracos negros. Thomas Buchert revelou um cenário totalmente novo sobre o desenvolvimento das perturbações e como isso poderia esclarecer o mecanismo de formação de estruturas (galáxias etc.) no Universo. Já Lev Titarchuk apresentou os resultados recentes de candidatos a buraco negro.
O ano de 2008 marcou o trigésimo aniversário da BSCG, em sua 13ª edição. Dos 140 inscritos, 60 foram selecionados, entre jovens pesquisadores e estudantes de doutorado e de mestrado. Na primeira semana, Jayant Narlikar criticou o modelo convencional da cosmologia (modelo-padrão) e enumerou uma série de alternativas para algumas das questões cruciais deste campo do saber, entre as quais, a criação da matéria, a hipótese dos grandes números de Dirac e a modificação da dinâmica newtoniana (MOND). O curso de A. Starobinski relacionou as propostas atuais sobre energia escura envolvendo a nova física, suas possibilidades e relações com a constante cosmológica. O professor Ugo Moschella tratou da teoria quântica dos campos e reviu, num primeiro momento, a situação da TQC em espaço plano (Minkowski) e em sistemas de coordenadas de Rindler e Milne. Em seguida, examinou a extensão para espaços curvos, com aplicação no mecanismo de criação de partículas. O professor A. Perez relatou os mais novos desenvolvimentos da teoria quântica da gravitação no espaço de laços (loops), e sua possível incidência na singularidade inicial e nos buracos negros. Os professores A. Challinor e T. Villela dividiram o curso de modo a apresentar aos participantes uma visão completa da teoria e das recentes observações da radiação cósmica de fundo – incluindo seu espectro, distribuição angular, anomalias em grande escala e polarização. Mario Novello realizou dois seminários, um dos quais resumindo os diferentes modelos cosmológicos com bouncing, baseado em artigo publicado no Physics Report em 2008. Já V. Melnikov coordenou um seminário sobre modelos não singulares em diferentes teorias, incluindo dimensões superiores (a quatro). Na segunda semana, Belinski fez uma descrição completa dos resultados recentes de análise das equações da relatividade geral e a da estrutura de solitons. Essa análise culminou com a interpretação de que um buraco negro é um soliton, resultado notável, que abre uma série de possibilidades formais. W. Kundt e P. Chardonnet trataram das dificuldades em demonstrar cabalmente a existência de buracos negros no Universo e, em particular, no centro de nossa galáxia. J. Alcaniz mostrou alguns cenários da energia escura, R. Sheth abordou as questões fenomenológicas associadas a estruturas de longa escala, com vistas ao exame dos mecanismos de formação dessas estruturas.
O ‘pequeno seminário’
Mario Novello inspirou-se na experiência que conheceu em Genebra, quando era orientado em seu doutorado por Josef Maria Jauch, para criar o ‘pequeno seminário’, reunião informal entre os pesquisadores do grupo de Cosmologia que acontece desde 1979, nas manhãs de sexta-feira, no CBPF.
Sem pauta determinada de antemão e sem textos preparados para apresentar, o pequeno seminário é uma oportunidade para cada pesquisador partilhar com seus colegas os estudos que está conduzindo, os insights que teve e os aspectos que lhe parecem problemáticos na sua pesquisa. Após as discussões, todos seguem para um almoço coletivo. Houve tempos em que, após os debates, todos se confraternizavam em uma partida de futebol, para depois almoçar. A ideia deu certo e muitos físicos que passaram pelo CBPF em sua pós-graduação levaram a experiência para as universidades e centros de pesquisa onde hoje trabalham.
Com essa iniciativa, pode-se dizer que Mário Novello desenvolvia técnicas de gestão do conhecimento avant la lettre.
O big bang: mito científico da criação?
A cosmologia como ciência é relativamente nova. Quase inexistente no início do século xx, surge como tal a partir da década de 1920. Desde então a acompanha um paradigma poderoso: o big bang. A genealogia deste paradigma pode ser rastreada inicialmente em uma ideia desenvolvida entre 1927 e 1933 pelo padre belga Georges-Henri Lemaître, sob o nome de “hipótese do átomo primordial”.
Tal hipótese teórica foi confirmada experimentalmente em dois importantes momentos do século xx. O primeiro deles em 1929, quando o astrônomo norte-americano Edwin Hubble realizou observações “que permitiram interpretar certas alterações no comportamento da luz proveniente de fontes de fora de nossa galáxia como a demonstração de que o Universo como um todo experimentava um processo de expansão” (NOVELLO, 2006, p. 27). O segundo, em 1964, quando os astrofísicos Arno Penzias e Robert Wilson apresentaram provas observacionais definitivas de que o Universo estava mergulhado em um gás de fótons em equilíbrio térmico. O fato poderia ser interpretado como se estivesse associado a um corpo negro à temperatura de 2,7 graus Kelvin. A partir dessa interpretação, o Universo efetivamente teria sido menor e mais quente no passado.
Esses dois achados observacionais foram decisivos para que se pudesse definir o estatuto científico da cosmologia, tirando-a do lugar um tanto metafísico em que se insistia em colocá-la. Afinal, foram essas duas revelações que, articuladas, elevaram o Universo à categoria de objeto formal de pesquisa e legítimo campo de estudos. Desde então, o big bang é a base do modelo padrão da cosmologia moderna. Até bem recentemente, a mídia o adotara como verdadeiro dogma, apesar dos constantes abalos que vinha sofrendo no meio científico, por força das novas descobertas observacionais que frequentemente o contradiziam.
Fato absolutamente normal. Não fosse assim, o big bang não se converteria em um paradigma da cosmologia. Para entender o fenômeno antes descrito, convém resgatar a obra do historiador Thomas Kuhn e seu conceito de “paradigma”.
[Paradigma] é um resultado científico fundamental que inclui ao mesmo tempo uma teoria e algumas aplicações típicas aos resultados das experiências e da observação. Mais importante ainda é um resultado cuja conclusão está em aberto e que põe de lado toda uma espécie de investigação ainda por fazer. E, por fim, é um resultado aceite no sentido de que é recebido por um grupo cujos membros deixam de tentar opor-lhe rival ou de criar-lhe alternativas (KUHN, 1979, p. 65).
Kuhn divide os cientistas entre os solucionadores de quebra-cabeças e os exploradores. Grande parte da atividade científica rotineira (que Kuhn denomina ciência normal) é desenvolvida pelos primeiros, sob a orientação de “paradigmas”, como aquele do big bang. A metáfora do quebra-cabeças fica mais interessante quando é associada à figura do cubo mágico.2 “Em vez de se assemelhar a uma exploração, a pesquisa normal apresenta-se antes como o esforço de montar um cubo mágico cujo aspecto final é conhecido desde o princípio [e que é dado pelo paradigma]”, afirma Kuhn (1979, p. 71).
Por conta disso, Kuhn vai mais além e aconselha a nos livrarmos de visões idealizadas acerca da ciência e dos cientistas. De fato, ela não é um empreendimento que busca a inovação a cada momento. Na verdade, para Kuhn, certo dogmatismo caracteriza as ciências maduras. Nelas, os conhecimentos são transmitidos ao longo de um treinamento altamente estruturado que inculca um compromisso continuado com os modos vigentes de percepção, crenças, paradigmas e resolução de problemas. “Preconceito e resistência parecem ser mais a regra que a exceção no desenvolvimento científico” (KUHN, 1979, p. 55).
A cosmologia nasce aqui no CBPF com uma postura bem diferente daquela midiática do big bang. Este foi um handicap adicional porque íamos contra a maré há 25 anos atrás. Diziam, no final dos anos 1980 e início dos 1990, que ainda estávamos na fase especulativa da Cosmologia porque não levávamos em conta que as observações tinham demonstrado o big bang. Ora, ninguém duvida que o universo foi mais condensado no passado. Isto é ponto pacífico! Seria uma ingenuidade pensar que alguma pessoa pudesse imaginar isso hoje em dia. O ponto concreto é que vendiam a imagem do big bang como o começo do mundo. Nós sempre fomos contra esta imagem por razões de ordem técnica, e não filosófica. E por causa disso tivemos que enfrentar muitos problemas.
É através de paradigmas (como os do big bang) que a ciência avança na maior parte de seu tempo, segundo nos ensina Kuhn. Em certas circunstâncias é bom que seja assim, mas sobre isso não iremos nos alongar aqui3. O problema é que, por conta dos paradigmas, muitas vezes o cientista deixa de ser um explorador do desconhecido. “Em vez disso, ele luta por articular e concretizar o conhecido.”
Este definitivamente não é o caso de Novello e seu grupo de pesquisa, que, desde 1979, na condição de exploradores, desafiam o paradigma do big bang em importantes revistas científicas internacionais, abrindo novos caminhos para a cosmologia. É desse ano o artigo de sua autoria, em colaboração com José Salim, em que são propostos modelos alternativos ao big bang para a criação do Universo, como veremos adiante.
Dois aspectos relacionados ao paradigma do big bang incomodam particularmente Mario Novello. O primeiro deles teria a ver com o surgimento de um tipo de ciência pós-empírica (ou “irônica”), no afã de se preservar a todo custo este modelo teórico. O segundo seria o fato de esse paradigma prever uma singularidade inscrita na história da origem do Universo, num momento inicial inacessível à investigação humana.
Em linhas gerais, o paradigma clássico do big bang sustenta que o Universo, que teria cerca de 13,7 bilhões de anos, expandiu-se e resfriou-se a partir de uma fase inicial densa e quente, que mais tarde levaria à formação de galáxias e estrelas. Mas esse modelo possui também uma característica que o torna objeto das maiores especulações filosóficas: o fato de o Universo ter tido um momento inicial absolutamente impermeável ao conhecimento científico, o que pressuporia a existência de um Deus criador. A este momento zero os físicos dão o nome de “singularidade”.
Esse modelo, capitaneado na mídia pelo físico Stephen Hawking, causou sensação nas páginas de inúmeras revistas e jornais em todo o mundo, em parte porque trazia embutida em sua proposição a justificativa para a existência de Deus.
Pecker (2005) constata que, em seus primórdios, no início do século xx, tal modelo era a única solução possível diante das observações astronômicas existentes. À medida que novas observações se sucederam, afirma o astrofísico francês, novos parâmetros foram a ele agregados de modo a salvar seus princípios básicos. Em muitos aspectos, tais acréscimos ad hoc visando preservar o paradigma pertenciam a um domínio que não é experimentalmente testável ou solucionável e não poderia ser considerado ciência em seu sentido estrito, tal como definido por Galileu, o pai da física experimental.
Seriam expressões de uma ciência pós-empírica ou, nas palavras de Horgan, “ciência irônica”, cuja finalidade primária consistiria em “nos manter deslumbrados diante do mistério do Universo”, mas sobre a qual jamais chegaríamos a um acordo dada a ausência de possibilidade de confirmação empírica presente ou futura. A essas expressões, Novello dá o nome de “especulações selvagens”.
Por exemplo, a observação da radiação cósmica de fundo, e de suas flutuações, as medidas da abundância estelar e galática de elementos químicos leves (hidrogênio, deutério, hélio), o brilho de supernovas extragaláticas etc., legitimaram a introdução sobre o quadro teórico do big bang de “inflação”, “grande unificação”, super-simetria”, “matéria escura”, “energia obscura” etc. Fico perturbado por esta situação, que se assemelha após séculos à progressiva acumulação ptolomaica (e copernicana) de epiciclos sobre o sistema original de esferas homocêntricas dos cosmólogos aristotélicos, como bem observou Jayant Narlikar (PECKER, 2005, p. 187).
De acordo com o modelo padrão da cosmologia, o momento zero da criação seria caracterizado por uma densidade, curvatura e temperatura infinitas, ou seja, um momento em que as leis da física teriam sido quebradas, inviabilizando sua observação. Ora, desde sempre o infinito é o terror dos físicos e matemáticos. Diante do infinito, cessam os poderes humanos de resolução de problemas.
O infinito é exatamente o inacessível da Física. Não existe. Tudo o que a Física faz é se afastar do infinito como o Diabo da cruz. A densidade da matéria, a energia e a temperatura sendo infinitas, serão quantidades que nunca poderão ser observadas enquanto tais. É realmente espantoso que os físicos tenham aceitado que o big bang fosse realmente o começo de tudo e ainda fizessem Física. Os precursores da idéia de big bang sabiam muito bem que essa era uma etapa do conhecimento que precisava ser superada. [ Novello]
Mas não foi isso o que aconteceu, ao menos num primeiro momento. A idéia do big bang mais e mais se consolidava e era adotada por cosmólogos como dogma inquestionável. Deve-se destacar que, já na década de 1960, esse modelo teórico ganhara ainda maior sustentação formal entre os cosmólogos e o público em geral por conta dos “teoremas da singularidade” desenvolvidos por Roger Penrose, Stephen Hawking e George Ellis. Estes cientistas demonstraram que, sob certas condições gerais (em que, por exemplo, o Universo sempre tivesse densidade e pressão positivas), toda solução para as equações de Einstein deveria resultar em uma singularidade, um estado para o qual o universo teria se condensado em um ponto matemático. Mas seria esta uma descrição apta do que aconteceria realmente na Natureza?
Para Mário Novello e seus colaboradores, não. Aceitar uma singularidade na origem do Universo representaria, a seu ver, a rendição do cientista aos enigmas da Natureza e sua aposentadoria compulsória pela total falta de sentido de seu papel social. O físico Heinz Pagels de certa forma endossa tal posição, ao afirmar que, “com base na experiência passada, tais singularidades na descrição matemática das entidades físicas simplesmente expressariam uma compreensão incompleta da física”. E prossegue:
O surgimento de singularidades matemáticas na descrição da Natureza deve representar um desafio aos físicos para que desenvolvam uma melhor descrição matemática baseada em leis físicas mais aprofundadas que evitem a singularidade. A singularidade na origem do universo sugerida por alguns modelos deve nos convidar a um desafio e não ser vista como um véu de ignorância para além do qual não devemos olhar (PAGELS, 1992, p. 244).
Já em 1988, Novello se pronunciaria a esse respeito, ao afirmar, em seu livro Cosmos e contexto:
Mesmo reconhecendo a compatibilidade entre as poucas observações cósmicas disponíveis e o modelo padrão, sua origem singular deveria ser entendida como uma falha do modelo que possivelmente estaria relacionada à sua extrema simplificação e que ao aumentarmos o número de graus de liberdade, reduzindo as imposições de simetria do modelo do Universo, provavelmente conseguiríamos encontrar o modo de continuar a descrição do mundo para além do ponto singular do modelo padrão (NOVELLO, 1988, p. 48).
Na verdade, Novello e seu grupo de pesquisa já haviam acatado o desafiador convite de Pagels quando publicaram, em 1979, na Physical Review, o primeiro artigo a apresentar soluções exatas para uma geometria ricochete (“bounce”), baseada em modelo de um Universo não singular. Já naquela época, para Novello e seus colaboradores, o Universo era eterno e teria experimentado uma expansão após passar por uma fase colapsante.
O físico José Salim, um dos mais antigos participantes do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF, revela um pouco do espírito explorador que seu líder incutia em seus colaboradores.
Já naqueles tempos Novello nos convidava a questionar a ortodoxia dominante neste campo, propondo que quebrássemos os postulados dos teoremas da singularidade. Isso era uma ousadia. Pois, hoje, os dados observacionais parecem apontar para a existência de energia escura no Universo, o que confirma que aquela sua atitude era bastante acertada.
Mas, voltando a Kuhn, convém lembrar que a ciência normal nem sempre tem sucesso em sua empreitada que se orienta por pétreos paradigmas. De tempos em tempos, períodos de inovação radical acontecem e, dessa forma, interrompem a caminhada da pesquisa normal, ensejando o que esse historiador denomina “revolução científica”. “No curso de qualquer pequeno período de ciência normal, problemas, dificuldades e anomalias, que só surgiram por causa da tentativa de se encaixar a natureza no padrão definido pela ortodoxia vigente, se acumulam” (BARNES, 1982, p. 11).
É nesses momentos que ocorre uma revolução científica: conceitos, teorias e procedimentos mudam, problemas se alteram, critérios de julgamento são mudados, incluindo o que conta como problema e como solução de um problema, a percepção em si é modificada, assim como a base da imaginação científica.
Os estudos sobre modelos cosmológicos sem singularidade conduzidos por Mario Novello lhe valeram o título de doutor honoris causa, concedido pela Universidade de Lyon em 2004. Mas, para o cientista, a confirmação de estar vivendo no limiar de uma “revolução científica” só aconteceu em março de 2008, quando uma das mais respeitadas revistas internacionais no campo da física, a Physics Reports, o convidou para escrever um alentado artigo de revisão (NOVELLO e BERGLIAFFA, 2008) sobre universos sem singularidade (modelo que se opõe ao proposto pelo paradigma do big bang).
A publicação recente 4 em revistas de divulgação científica de artigos que sustentam a tese de um Universo eterno, sem singularidade, só serviu para confirmar a sua suspeita de que o paradigma do big bang encontra-se com seus dias contados.
Divulgação científica
Einstein, o pai da cosmologia moderna, é um dos precursores da estilística assumida pela divulgação científica no século xx. É difícil não se impressionar com a versão acurada e clara das suas mais importantes teorias, por ele mesmo desenvolvida, em seu já clássico A teoria da relatividade especial e geral, de 1916.
Seguindo a trilha do mestre e impressionado com o que viu em Cargèse, Mario Novello notabilizou-se junto à opinião pública brasileira e entre seus pares por sua determinação em refutar o ‘modelo padrão’ da cosmologia e tornar acessível ao público leigo as pesquisas conduzidas pelo CBPF. Já em 1983, mais precisamente no dia 3 de maio, o Jornal do Brasil ostentava na capa de seu caderno cultural (Caderno B) a manchete “Cientista brasileiro prova: O universo é eterno”, em matéria assinada por Gardênia Garcia.
A indignação com a difusão de uma ideia não consensual entre os físicos como verdade absoluta na mídia sempre mobilizou Novello. O estopim de tal atitude foi a ‘revelação’ do big bang, estampada em uma revista semanal de grande tiragem nacional na década de 1980. A partir daí, o cientista constatou que era hora de sair da frente do quadro-negro e se expor em auditórios e órgãos de imprensa de todo o país, numa espécie de ‘guerra santa’ em nome da verdade científica. Seus diálogos com frei Betto, sobre as relações entre fé e ciência, lotaram auditórios e engordaram páginas de jornal. Com coragem louvável e respeito às diferenças, Novello discutiu suas idéias com psicanalistas, artistas plásticos, médicos, místicos, em um sacerdócio da divulgação científica que poucos pesquisadores brasileiros de qualquer área do conhecimento abraçaram.
De um modo geral, ao longo da história da divulgação científica, as interpretações mais exatas das novas teorias físicas sempre foram feitas pelos próprios físicos, que esclareceriam, deste modo, suas posições particulares, ainda que as explicações nem sempre fossem acessíveis ao grande público (MORA, 2003, p. 25). Este foi o caso de Schrodinger, Heinsenberg, Einstein, Born e Gamow, para citar apenas alguns dos cientistas que se preocuparam em sair da redoma de vidro e abraçar a causa da popularização da ciência.
É também o caso de Novello, autor de inúmeros livros de cosmologia destinados a leigos informados, como O círculo do tempo (Campus, 1997); Os sonhos atribulados de Maria Luiza (Jorge Zahar, 2000); Os jogos da natureza (Campus, 2004); Máquina do tempo (Jorge Zahar) e O que é cosmologia? (Jorge Zahar, 2006).
Se o objetivo da divulgação do conhecimento é tentar refazer uma linguagem universal que possa unir humanidades, arte e ciência, visando à mútua compreensão (MORA, 2003, p. 15), Novello, ao levar a cada recanto do país os resultados das pesquisas do CBPF, transmite a cada brasileiro alcançado pela sua mensagem a nobreza e a elegância das mais elevadas conquistas do pensamento humano, acumuladas ao longo de gerações. Afinal, recomenda-se que a paixão do conhecer sempre esteja ao alcance de todos.
ICRA Brasil – O sonho possível
A excelência alcançada pelo Grupo de Cosmologia e Gravitação ao longo de sua história motivou convite do físico italiano Remo Ruffini para que o CBPF integrasse o ICRANet, rede internacional de laboratórios associados ao Centro Internacional de Astrofísica Relativística (ICRA) por ele dirigido. Atualmente, o ICRANet tem apoio da Unesco e representações na Austrália, Chile, China, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Rússia, Vaticano e Vietnã. O ICRANet é ideia francamente inspirada no modelo do CERN, o laboratório europeu de física de partículas, mas adaptada aos tempos das comunicações velozes via internet.
Fundado em 1985, com sedes em Roma e Pescara, o ICRA é um desdobramento do antigo Gruppo 9 (G9), coletivo de astrofísica relativística do Departamento de Física Teórica da Universidade de Roma, que fora criado em 1978 por Ruffini. O físico italiano Rufinni foi co-autor do primeiro estudo publicado sobre buracos negros, em 1971, e está fortemente envolvido com a pesquisa dos misteriosos pulsos abruptos de raios gama no cosmos.
A criação do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA-Brasil) foi anunciada em 2003, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, durante a X Marcel Grossmann Meeting on General Relativity (MG10) no Rio de Janeiro, conferência da qual participaram mais de 460 pesquisadores de 58 países. Integrado ao CBPF, em nível de coordenadoria, o ICRA-Brasil conta com recursos da Comunidade Européia e dos governos da Itália, Armênia e do Vaticano. Tem a função de dar continuidade e ampliar as atividades realizadas pelo Grupo de Cosmologia, incorporando pesquisadores das universidades e centros de pesquisa do Brasil.
A missão institucional do ICRA-Brasil é realizar pesquisas científicas em cosmologia, relatividade, astrofísica relativista e áreas afins, atuar como um centro nacional de doutorado e pós-doutorado e dar continuidade à tradicional Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação (EBCG). Está voltado, em particular, para pesquisas nas áreas de gravitação clássica e quântica, cosmologia e estruturas em grande escala, buracos negros (gravitacionais e análogos), ondas gravitacionais e astropartículas.
Entre seus objetivos, destacam-se ainda: promover intercâmbio e cooperação com centros de pesquisa nacionais e internacionais; realizar e coordenar o Programa Mínimo de Cosmologia com a finalidade de atualizar o ensino desta matéria nas universidades brasileiras, além de divulgar o conhecimento científico para o grande público.
A cosmologia e a universidade
Uma lacuna importante se observava no ensino superior na área de física. Os projetos pedagógicos da maioria das universidades brasileiras pouca atenção davam à moderna teoria da gravitação. Diante dessa constatação, o ICRA-Brasil elaborou um repertório básico de conhecimentos de cosmologia, fundamental à boa formação do físico. Como desdobramento desse projeto, foi publicado o livro Introdução à cosmologia, obra coletiva de cientistas associados ao ICRA-Brasil.
Por meio de convênios assinados com universidades brasileiras, cientistas do ICRA-Brasil ministram cursos gratuitos de 12 semanas de duração para os jovens estudantes de física. No segundo semestre de 2005, o curso foi realizado pela primeira vez na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A partir daí, novos convênios foram celebrados com a Universidade Estadual do Ceará e com a Universidade Estadual do Norte Fluminense, e outros se encontram em andamento.
O programa mínimo de cosmologia permite ao jovem cientista uma visão bastante completa das áreas de atuação necessárias ao estudo da Cosmologia, ou seja: teoria da relatividade especial; teoria da gravitação; objetos compactos; buraco negro; ondas gravitacionais; história da cosmologia; fenomenologia da cosmologia; cosmologia relativista; termodinâmica; astrofísica e partículas, gravitação e cosmologia quânticas.
O grupo do ICRA
Antes de se consolidar como um Instituto do MCT sob o guarda-chuva institucional do CBPF, ao longo destes mais de trinta anos, o grupo de Cosmologia sofreu várias re-organizações administrativas como Departamento de Física Teórica, Departamento de Relatividade e Partículas e, em particular, a criação de uma inovadora experiência – o LAFEX. Este último constituiu uma novidade no cenário brasileiro, pois foi criado com o propósito de acompanhar o desenvolvimento de uma união que começava a aparecer no horizonte da ciência internacional. Tratava-se de reunir em um mesmo grupo cientistas das duas das mais fascinantes áreas daquele período: o microcosmo da Física de Altas Energias e o macrocosmos da Cosmologia. Infelizmente, este momento de união foi pensado muito à frente de sua época, e dificuldades de várias ordens – todas de origem não-cientificas – impossibilitaram seu crescimento. Finalmente em 2003 foi criado o ICRA.
Uma simples análise dos membros atuais do ICRA exemplifica muito bem a breve história que contei aqui e o importante papel de Mario Novello. Com efeito, além de seu companheiro de Faculdade Nacional de Filosofia e amigo, o professor Sérgio Joffily, a lista dos pesquisadores Titulares do ICRA é formada pelos cientistas José Martins Salim, Nami Fux Svaiter e Nelson Pinto Neto. Todos três formados no interior do Grupo de Cosmologia do CBPF tiveram suas Teses de Doutorado orientadas por Novello. Se acompanharmos o desenvolvimento destes três, reconhecemos de imediato que a mesma tradição de qualidade e empenho na formação de novos cientistas é o legado deixado por Novello a seus colaboradores e que se tornaram centros de formação de novos cientistas. A lista é realmente enorme e se pode constatar diretamente por um exame no Curriculo Lattes destes pesquisadores.
Revisão Alba Gisele Gouget.
Reproduzido do original em publicação interna do CBPF (2009).
Referências bibliográficas
BARNES, B. T.S. Kuhn and social science. London: MacMillan Press, 1982. 135 p.
KUHN, T. S. A função do dogma na investigação científica. In: DEUS, J.D. A crítica da ciência: sociologia e ideologia da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1979. 240 p.
MORA, A.M.S. A divulgação da ciência como literatura. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003. 115 p.
NOVELLO, M. Cosmos e contexto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.182 p.
______. O que é cosmologia? A revolução do pensamento cosmológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 176 p.
NOVELLO, M.; BERGLIAFFA, S.E.P. Bouncing cosmologies. Physics Reports, 463(4) p. 127-213. 2008.
PAGELS, H.R. Perfect simmetry: The search for the beginning of time. United Kingdom: Penguin Books, 1992. 390 p.
PECKER, J.-C. The big bang? Three questions without a reply. European Review, 13(2) p. 183-93, 2005.