Pensamento e Política
Desde há muito, Sócrates com sua declaração de que ‘uma vida sem reflexão não vale a pena’ e Heidegger, com sua afirmativa de que ‘nada podermos fazer com a filosofia por ela não ser nem útil nem prática, mas talvez seja ela que faça alguma coisa conosco’, têm incessantemente me provocado e servido de inspiração.
Em ambas as proposições o elemento central é o reconhecimento do vínculo largo e inexorável entre filosofia e existência. Mas para além da amplitude desse vínculo, também devemos ressaltar a natureza dessa conexão. O que perfaz genuinamente a filosofia é o exercício do pensar. A filosofia é sobretudo reflexão.
Enquanto reflexão, a filosofia não se submete a normas, interesses, dogmas e fins, mas os questiona indistinta e incansavelmente. Sócrates descreve o pensar como o vento que derruba todas as certezas e abala todas as leis. Heidegger fala do pensar como uma espécie de coragem de tornar nossas verdades, princípios e fins em coisas que, sobretudo, merecem ser questionadas. Hannah Arendt, ressalta que o pensar descongela verdades e que sua vocação não é definir, mas livrar.
Quando no curso da nossa história ocidental a filosofia foi obrigada a fins que não lhe pertencem originariamente e essa conexão foi restrita ou à religião, ou, à política, os resultados foram desastrosos, legando-nos a Inquisição e os regimes totalitários com sua ideologia, seus dogmas, suas verdades absolutas, sua naturalização do extermínio, seu terror e seus crimes contra a humanidade. Arendt nos lembra que os movimentos e regimes totalitários tinham o propósito explícito de eliminar nos homens sua iniciativa, sua convivência com os outros homens, sua identidade, e sobretudo sua capacidade de pensar e de julgar, em outras palavras, tornar os homens supérfluos.
Quando o pensar, a reflexão, está livre de amarras e impedimentos, sua tarefa primordial é livrar para a existência humana suas possibilidades. E a existência humana ora acolhe e ora se esquiva do que o pensamento livra para ela.
Este pensar que livra possibilidades não é, contudo, uniforme. Ele se modifica dependendo das finalidades que o convocam, como indica Arendt em “A Vida do Espírito”, podendo estruturar-se como pensamento propriamente dito, como conhecimento ou como compreensão.
Quando o fim do pensar é a conquista de verdades objetivas que, inclusive, devem durar e também ser úteis (como a resistência dos materiais, a composição química da água…), o pensar realiza-se como conhecimento, e normalmente recorre a experimentos, observações, controle e afins. Sua forma mais peculiar é a que chamamos de ciência.
Se a finalidade do pensar é a busca do significado dos fenômenos (o que é justiça, o que é verdade, o que é o mal…), o pensar é propriamente pensamento e se estrutura como o que costumamos chamar de filosofia, exercendo-se como reflexão.
Mas, quando o pensar quer o entendimento de um acontecimento para poder lidar com ele, como ocorreu com nossa civilização quando os totalitarismos emergiram criando rupturas com nossa própria tradição histórica, aí então o pensar acontece como compreensão. Trata-se de uma atividade ininterrupta que realizamos desde o nascimento até a morte, que ocorre quando perdemos nosso lugar no mundo, e sem compreendermos o que ocasionou esta perda e seu significado, não conseguimos empreender qualquer ação.
Pensamento propriamente dito e compreensão são dimensões muito próximas e parecidas, à medida que ambas estão em busca de significado da realidade. A diferença fundamental entre elas é sua experiência do tempo e sua urgência. Enquanto o pensamento, por exemplo, se ocupa com o significado do morrer para os homens – e isto pode levar anos para ser respondido, além de a resposta imediatamente se converter em outra pergunta -, a compreensão precisa de uma resposta para o momento, para a circunstância vivida, por exemplo, como posso lidar com o meu próprio morrer? Foi essa diferença entre esses dois atos do pensar que fizeram a pólis grega desdenhar dos filósofos que, envolvidos com as coisas eternas, não conseguiam resolver os seus próprios e imediatos problemas. E fez também o filósofo desacreditar dos cidadãos, considerando-os incapazes de olhar para além de si mesmos e de sua situação particular.
Retomo aqui essa distinção realizada por Arendt, pois quando considero o tema deste Simpósio “A miséria da Ciência sem a Filosofia”, entendo que ele não mira especificamente a filosofia na sua vestimenta acadêmica. Ao aproximar Ciência e Filosofia, o tema já pressupõe a ciência como promotora de conhecimento e a filosofia como um exercício mesmo do pensar, que se efetiva como reflexão, e como tal interage com a ciência.
Entretanto, se o vínculo entre filosofia e existência se delineia como um processo em que o pensamento livra para a existência suas possibilidades, no caso das relações entre filosofia e ciência, o pensar não exerce esse mesmo papel. A nomeada miséria da ciência sem a filosofia, só se sustenta pela suposição de que a ciência, entregue a si mesma, é incapaz de refletir sobre o alcance e as consequências éticas e políticas de suas descobertas e resultado e pautar-se por elas. A viabilidade dessa reflexão seria tarefa mais específica da filosofia e da política. E, em verdade, a reflexão requerida pelo tema, é mais uma tarefa da compreensão do que do pensamento, da filosofia, por mais que a primeira busque apoio na segunda.
No prefácio de “A Condição Humana”, referindo-se aos acontecimentos relativos aos anos cinquenta, resultado da produção das ciências a exemplo do lançamento do Sputnik e da fertilização in vitro, Arendt chama nossa atenção para o fato de que as perplexidades geradas por tais fenômenos e seus possíveis usos carecerem de um palco para discussão que não é a academia. Na visão da pensadora, o palco dessa discussão é a própria pólis, nosso contexto social e político. As preocupações e perplexidades geradas pelas descobertas das ciências ultrapassam as fronteiras dos problemas epistemológicos e dizem respeito às possibilidades da nossa própria existência. Portanto, as respostas a elas são dadas
no âmbito da política prática, sujeitas ao acordo de muitos: jamais poderiam se basear em considerações teóricas ou na opinião de uma só pessoa, como se tratasse de problemas para os quais só existe uma solução possível. (…)É óbvio que isto requer reflexão; e a irreflexão – a imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornam triviais e vazias – parece ser uma das principais características do nosso tempo. O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo”. (Arendt, 2002, pg 13).
De certa forma, estas últimas considerações nos lançam numa espécie de círculo vicioso, pois ao mesmo tempo que a filosofia é vista como insuficiente para decidir sobre os impasses éticos da produção científica, enquanto concebida como exercício da reflexão, ela própria é requisitada para a preparação das decisões ético-políticas necessárias.
Ainda que buscando o significado dos eventos, a filosofia não se estrutura sobre decisões. Ela examina questões e se dá, segundo Aristóteles, como um diálogo entre amigos. A filosofia é exegética, hermenêutica. Este o seu lugar e o seu limite. Talvez Heidegger tenha razão em afirmar que o pensamento não nos dota do poder de agir. Mas pode ela influir sobre nosso agir?
Não o pensamento propriamente dito, mas o pensar enquanto compreensão é mais apto para a preparação de um agir, à medida em que nasce de um estranhamento existencial – a perda do nosso lugar no mundo – e é requisitado por ele para reabilitar nosso próprio ser no mundo, nossa ação. Certamente nenhuma compreensão produz respostas inequívocas, pois a existência onde ela própria vive, é requisitada e se desenvolve é múltipla e está em constante mutação, em ininterrupto movimento, levando-nos a ver a realidade sempre de um ponto de vista diferente. A compreensão, como ato do pensamento, também tem natureza hermenêutica, mas por estar voltada imediatamente para a vida vivida, acaba por nos auxiliar a formular não verdades duradouras, mas opiniões (doxas). Como os gregos antigos sabiam, as opiniões são sempre provisórias e relativas, dada a mobilidade inerente à existência, e constituem a matéria ou a tessitura da nossa vida cotidiana e política.
Forjadas a partir de pontos de vista relativos e provisórios, relativos à posição que nos cabe no mundo e restritos à experiências por vezes muito particulares e personalistas, isto é, afeitas unicamente ao caso em questão, as opiniões não são produtos diretos da compreensão. Comumente elas são frutos da incompreensão ou da irreflexão, e podem corresponder, elas mesmas, àquela “… imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornam triviais e vazias”, como aludiu Arendt.
O confronto entre opinião e filosofia/pensamento tem se estabelecido desde sempre. Ambas são inconciliáveis, inclusive porque vivem em reinos totalmente diversos. A filosofia habita junto às ideias e a opinião mora na ação. A compreensão é, então, a modalidade de pensar que pode articular pensamento (filosofia) e opinião, pois se instaura no meio do caminho entre ambas. Esta articulação, porém, jamais é instada por uma problemática de natureza epistemológica, e sim por dilemas concretos que a vida cotidiana e política sofre e sobre os quais é preciso decidir. Ou melhor, em relação aos quais é preciso preparar o agir.
A compreensão é o pensar que pode nos preparar para a ação. Ela pode dialogar com o pensamento para aprontar os dados que favoreçam nosso julgamento de atos futuro, de nossos projetos. A compreensão nos esclarece sobre nossos fins e razões, alimentando nosso poder de agir. Através de um diálogo com o pensamento, a compreensão pode iluminar a consciência da nossa destinação e das consequências éticas e políticas do nosso fazer. É sempre a ação possível e/ou necessária o que requisita o pensar, seja na sua modalidade de pensamento, seja na modalidade de compreensão.
Asseverar, portanto, “A miséria da Ciência sem a Filosofia” é o mesmo que declarar ‘a miséria da vida sem filosofia’, ou nas palavras de Sócrates citadas no começo destas considerações, é afirmar que “uma vida sem reflexão não vale a pena”. E o que reclama essa reflexão, não é nenhuma dúvida teórica, mas o toque de um sentimento que emerge da nossa pólis e invade o território da academia. É o sentimento de uma pólis já intimidada pelo recrudescimento de um obscurantismo que ameaça extinguir os princípios e os valores essenciais para a existência humana duramente conquistados, como o direito à diferença, à expressão das ideias e modos de ser. Um obscurantismo que ameaça, sobretudo, nos destituir do pensar e roubar nossa liberdade.
Bibliografia
Arendt, Hannah – A Condição Humana, Forense Universitária, SP/RJ,2001, trad. De Roberto Raposo
– A Vida do Espírito, Civilização Brasileira, RJ, 2009
– “Filosofia e Política” in A Dignidade da Política, Relume-Dumará, RJ, 1993, trad Antonio Abranches e outros
– “Pensamento e Considerações Morais” in A Dignidade da Política, Relume-Dumará, RJ,1993, trad Antonio Abranches e outros
Heidegger, Martin – Caminhos de Floresta, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2014, trad Irenr Borges-Duarte e outros.
Platão – Apologia de Sócrates, Edipro, SP, 2015, trad. Edson Bini,