Os Transgressores (revolução na fisica do século xx)
No dia 14 de março de 2019, no anfiteatro principal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas os físicos Carlos Romero, Ioav Waga, Eduardo Bittencourt, José Abdalla Helayël-Neto, Nelson Pinto Neto, Ignácio Bediaga e Mario Novello apresentaram o Simpósio Os Transgressores.
Na primeira metade do século XX, ocorreu uma transformação tanto no mundo microscópico com o advento da teoria quântica quanto no mundo macroscópico com o progresso na compreensão da dinâmica do universo pela cosmologia que alterou de maneira profunda a ciência da natureza.
Em particular, os cientistas Paul Dirac, Fred Hoyle, Albert Einstein, Alexander Friedmann, Andrei Sakharov, David Bohm e Kurt Gödel participaram ativamente desse processo.
Comentar o trabalho desses cientistas não deve ser entendido como culto à personalidade, mas sim como um modo simplificado de expressar uma verdadeira metamorfose que transfigurou nossa visão do mundo. O olhar crítico desses cientistas a partir de uma atitude não subserviente ao establishment abalou alicerces até então aceitos como sólidos sustentáculos do conhecimento da natureza daquele período. Uns poucos comentários sobre suas atividades como desbravadores do pensamento crítico são necessários.
Einstein elaborou dois dos pilares fundamentais da física clássica, a Relatividade Especial e a Relatividade Geral pondo fim a mais de 300 anos de dominação absoluta da descrição de Newton da lei da gravitação. Por outro lado, estabeleceu as primeiras importantes análises sobre o mundo quântico.
Friedmann produziu o primeiro cenário expansionista do cosmos. Para isso teve que afrontar nada menos do que o próprio criador da nova teoria da gravitação que havia elaborado um modelo de universo estático. Ao exibir seu cenário de um universo em expansão, Friedmann destruiu a imagem de um mundo absoluto, dado a priori, acabado e completo, ao mostrar que vivemos em um universo dinâmico, em expansão onde não há lugar para absolutismos.
Dirac, talvez o mais profícuo cientista do século 20, ao desenvolver a moderna teoria quântica, destruiu a ideia absoluta da matéria ao propor, com sucesso, a noção de que cada partícula elementar possui sua anti-partícula. Mostrou então que matéria e antimatéria possuem uma atração irresistível uma pela outra e ao se encontrarem se destroem, perdendo totalmente suas individualidades e deixando em seu lugar somente suas energias sob forma de radiação.
Essa descoberta criou de imediato uma questão formidável para os cosmólogos: por que não observamos essa antimatéria no universo? Por que as galáxias são feitas somente de matéria? Onde foi parar a antimatéria que, segundo a descoberta de Dirac, deveria estar presente em nosso universo em igual número que a matéria? Mais tarde, com o físico Andrey Sakharov, e sua proposta de gênese da matéria bariônica – a que constitui o próton e o nêutron, elementos fundamentais de qualquer átomo – foi possível compreender as causas que limitaram o nosso universo a ser repleto unicamente de matéria e não conter antimatéria em quantidade apreciável.
Ao querer eliminar a história da descrição do universo, Hoyle elaborou uma proposta equivocada de que o nosso universo seria estacionário. No entanto, esse modelo lançou luz sobre o mecanismo de formação da substância existente no cosmos, antecipando cenários físicos que resultaram ser importantes para entender algumas dificuldades inerentes ao comportamento do universo proposto por Friedmann.
Embora haja uma tendência a associar a cosmologia – o modo pelo qual descrevemos racionalmente o universo – ao mundo clássico, é quase impossível aceitar que os conhecimentos que obtivemos no desenvolvimento do mundo quântico não devam ser aplicados ao universo como um todo. Há, no entanto, uma dificuldade de princípio, pois a interpretação do mundo quântico, majoritária entre os físicos, a chamada Escola de Kopenhagen, requer a existência de um observador externo ao processo quântico, qualquer que seja ele. Ora, isso seria incompatível com a visão convencional de que não existe o exterior do universo. Não pode haver um observador externo. Essa propriedade sempre foi entendida como um forte argumento contra a possibilidade de elaboração teórica, formal, de um universo quântico. Foi então que entrou em cena o físico David Bohm ao recuperar antigas ideias de Louis de Broglie alterando a interpretação do mundo quântico de modo a compatibilizar a cosmologia com alguns aspectos quânticos.
E, para encerrar essa lista, o lógico Kurt Gödel. Ele entra aqui, não pelos seus formidáveis resultados na lógica, mas sim por um único trabalho que abalou inexoravelmente a noção de causalidade tradicional. Ele mostrou que as leis físicas válidas na nossa vizinhança terrestre podem não ser válidas nas imensidões cósmicas. Explicitamente, exibiu o modo pelo qual a causalidade local (distinção perfeita entre passado e futuro) não pode ser aplicada em geral ao universo, pois depende de suas propriedades globais. Dito de outro modo, Gödel produziu a desconstrução da causalidade tradicional.
A lição que esses cientistas nos ensinaram, não se restringe aos limites da análise científica, mas deve transbordar para nosso cotidiano. Em particular, ela funciona como um alerta para o perigo do dogma, do sectarismo, seja de natureza científica, religiosa ou política.
Mario Novello é Professor Emérito do CBPF e da FAPERJ