O Vortex de 1900
“O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca por si mesmo, esgota em si todos os venenos, para guardar apenas suas quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana; em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao desconhecido! Já que cultivou sua alma, já rica, mais que qualquer outro! Ele chega ao desconhecido; e quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência de suas visões, ele as viu! Que exploda em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!”
(Arthur Rimbaud – Carta a Paul Demeny, 15 de maio de 1871)
Nessa carta, acertadamente sob a alcunha “do Vidente”, Rimbaud (2002) intuía o que estava por vir. Ele referia-se à poesia e à literatura, mas o trecho serve como epílogo para todas as transfigurações ocorridas na virada do século XIX para o XX.
Também desde a literatura, na mesma época, Kafka, borrava as fronteiras entre leitor, obra e escritor, enquanto denunciava a infinita máquina burocrática que se instalava, e que só aumentaria, ao longo do século XX (DELEUZE E GUATTARI, 2002). Os irmãos William e Henry James criaram o conceito de fluxo de consciência, que culminaria na obra de Joyce. Fernando Pessoa(s) inventava a poética dos heteronômios. O poeta fez o mapa astral e ajudou a forjar o suicídio do mago Aleister Crowley – personalidade a que retornaremos adiante (ANES, 2014).
Talvez um dos escritores que melhor tenha captado o zeitgeist de 1900 tenha sido H. P. Lovecraft, em sua época considerado menor, e dono, hoje, de uma crescente fortuna crítica. Lovecraft ficou conhecido pela ideia da cosmicidade: a extrema indiferença que o cosmos dedica ao ser humano. Ele a explicitava, em seus contos, nos inúmeros exemplos de “Grandes Antigos” – entidades cósmicas que habitaram a Terra muito antes dos humanos e habitarão, segundo sua obra, muito tempo depois. Lovecraft já citava a Mecânica Quântica e a geometria não-euclidiana como aspectos de um cosmos transespacial e transtemporal. Criticava Freud por seu “simbolismo pueril”, e preferia Jung, apesar de considerá-lo ainda insuficiente. (ROMANDINI, 2013).
Vamos agora investigar outros saberes. Dois deles considerados oriundos da Grécia Antiga estiveram, desde então, quase adormecidos por cerca de dois milênios: a lógica[i] e a geometria. Tentativas de superar Aristóteles e Euclides foram pouco produtivas até o século XIX, quando começaram a aparecer as lógicas de Cantor, Peano, Russel e Whitehead que culminaram, no século XX, com o Teorema de Gödel, em que a matemática deixa de ser a linguagem perfeita, passando a ser entendida como consistente ou completa, e nunca ambas ao mesmo tempo. A geometria não-euclidiana também se desenvolveu nas obras de Gauss, Riemann, entre outros (PENROSE, 2005).
A segunda metade do século XIX trouxe a Teoria da Evolução de Darwin-Wallace e as descobertas da natureza da luz e do campo eletromagnético, que deram fomento, por sua vez, à descoberta do quantum de Planck, em 1900. Esse, como desdobramento de Bohr e outros, deu origem à mecânica quântica[ii] – a estranha física do microcosmos cujas partículas se comportam como onda, ou, segundo a interpretação de alguns (WOLFF, 2003), são ondas. Einstein[iii], cocriador e detrator da mecânica quântica, elaborou a Relatividade Restrita, propondo a equivalência entre matéria e energia, e, anos depois, a Relatividade Geral, entendendo o espaço-tempo como não-absoluto, relacional. O físico alemão foi tributário das novas geometrias não-euclidianas do espaço curvo.
Na filosofia, a virada do século viu os últimos momentos de Nietzsche e conheceu a obra de Bergson. Bergson (1999) conceituou o virtual – espécie de memória cósmica atemporal que abriga todos os tempos múltiplos. Bergson também trouxe a novidade ontológica da mudança sem suporte – um devir mais potente na história do conhecimento. Gilles Deleuze (1985) encontrou nessa criação bergsoniana profunda ressonância com o advento do cinema, na mesma época: se Bergson colocava em movimento as imagens do pensamento, o cinema, por sua vez, colocava em movimento a fotografia.
Nas artes plásticas[iv], a médium Hilma af Klint, com sua pintura, “trazia imagens do mundo sutil para o plano físico” (VENTRE, 2018). Sua obra foi precursora da arte abstrata, antes mesmo de Kandinsky – que escreveria “O Espiritual na arte”, sobre suas obras inspiradas nos xamãs da Sibéria. O impressionismo do século XIX convidou à linha livre de Klee, bem como ao cubismo de Picasso, inspirado nas máscaras africanas; especula-se até que ponto a amizade de Picasso com Minkowski o possa ter inspirado, também (HENDERSON, 2013). Estavam abertas as portas para as vanguardas do século XX.
Na antropologia, iniciava-se a prática da etnografia. A Europa mergulhava cada vez mais em suas colônias, para extrair delas novos conhecimentos, novas inspirações; encontros mais intensos com a alteridade.
Aleister Crowley (2017), o mago, fora expulso da ordem secreta Golden Dawn em 1907, ao escrever livros que abriam seus segredos ao grande público. Essa façanha marca a singularidade do esoterismo no “momento 1900”, a saber, a abertura do “hermético” para o grande público. Crowley veio a tornar-se um ícone pop do século XX, aparecendo em capa de álbum dos Beatles, em músicas de heavy metal, em filmes e séries. Dion Fortune, outra ocultista da época, também tornou-se conhecida ao escrever sobre “autodefesa psíquica”, entre outros temas, tendo gerado sua própria escola. Austin Osman Spare, que conheceu Crowley pessoalmente, deixou poucos escritos e desenhos, mas sua obra serviu de inspiração para uma das práticas mágicas mais difundidas hoje em dia – a Magia do Caos (CARROLL, 2016) . O esoterismo ainda traz desconfiança e preconceito, entretanto vem abrindo, desde 1900, um diálogo mais intenso com a sociedade.
A psicanálise[v] de Freud, como contraponto, veio racionalizar o discurso mágico. A narrativa freudiana colocou todos os supostos efeitos como aspectos exclusivos do campo mental, e não do “mundo em si”. Jung buscou fazer uma conciliação, entretanto ainda um tanto eivado de representações.
A grande trilha sonora dessa época foi a música atonal, fora da escala tradicional – como em obras de Debussy, Stravinsky e outros. Há também marcos além da Europa: o nascimento do jazz nos prostíbulos de New Orleans, do tango nos prostíbulos de Buenos Aires e da mutação que ocorreu no samba, no Brasil, ao sair dos guetos do Rio de Janeiro e ganhar o país inteiro, chegando a tornar-se sua música mais emblemática.
O que percebemos com essas ressonâncias? O “momento 1900” foi marcado por uma espécie de “reviravolta” dos saberes, que os colocou a todos em maior dinamismo. O caso da lógica e da geometria são mais extremos; os outros vinham em lento desdobramento, e, nesse momento, passaram por verdadeiras revoluções. O mundo e o humano jamais seriam os mesmos.
Esse pulso, entretanto, não foi propulsor apenas de grandes descobertas. A instabilidade social, política e econômica do século XX gerou também as guerras mundiais. A bomba atômica, prefigurada pela nova física, desestabilizou efetiva e afetivamente a “matéria”.
Percebemos, agora, que todas as novidades do momento 1900 possuíam uma forte relação: a de revirar, “para além do Bem e do Mal”, o que estava pré-estabelecido. Entendemos esse pulso como um vortex.
O vortex é uma relação de vibrações transtemporais, transespaciais e autossimilares – ou seja, o vortex é composto por vortexes e forma vortexes. Os saberes se comportam em procedimentos com o vortex: a ciência explora o vortex; a filosofia explica o vortex; a arte emoldura o vortex; a espiritualidade modula o vortex; e a ética potencializa o vortex (JOB, 2018).
O que podemos aprender com o vortex de 1900? Sobretudo, que há grande ressonância ao longo dos saberes e eventos históricos. Podemos observar que todos os campos do saber estão interconectados, vendo como o “pulso” de momento 1900 afetou a todos, como um tsunami. Os campos mais rígidos sofreram transfigurações mais intensas. Hoje, ainda observamos instabilidades em vários níveis.
Se, por um lado, todas essas mudanças são um belo material que nos ajuda a apreender um cosmos imanente, auto-organizado e interconectado, tendo evidenciado como as fronteiras dos saberes são permeáveis, por outro, tamanha permeabilidade gera um terrível medo de dissolução. Desse medo nascem ativações de segurança e tentativas de controle: a rigidez que percebemos com as ascensões da extrema-direita e de todo tipo de conservadorismo.
Nosso trabalho, agora, é servirmos como médiuns, como “atravessadores” dessa permeabilidade. As membranas entre os saberes e entre as formas de existência estarão presentes, mas interconectadas. É preciso apreender que permeabilidade não implica dissolução, mas acréscimo, ampliação, emergência de novidade. Nosso trabalho com os transaberes – a transdisciplinaridade na vida – é, pelo cultivo da permeabilidade, o de suscitarmos a alegria de dançar juntos a dança cósmica. A tentativa de interrompê-la é apenas uma ação conservadora que adia o inevitável, o incomensurável, o impensável. Nossos passos se dão com um pé no chão e outro no ar, e nessa dança adquirimos intimidade cósmica com o mistério.
Bibliografia
ANES, José Manuel. Uma Introdução ao Esoterismo Ocidental e suas Iniciações. Lisboa: Arranha-céus, 2014.
BERGSON, H. Matéria e memória – ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CARROLL, Peter J. Liber Null e Psiconauta. São Paulo: Penumbra Livros, 2016.
CROWLEY, Aleister. O livro da lei. 1 ed. São Paulo: Ed. Campos, 2017.
DELEUZE, Gilles, Cinema 1 – A Imagem-movimento. São Paulo, Brasiliense, 1985.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
JOB, Nelson. “Emergências no Inominável: os aspectos imanentes à Consciência no conceit de Vortex” in: (Pinguelli et al) A Trandisciplinaridade da Consciência, Rio de Janeiro, Edite, 2018.
HENDERSON, Linda Darlymple. The Fourth Dimension and non-euclidean geometry in modern art. Princeton: MIT Press, 2013.
PENROSE, Roger. The Road to Reality – A Complete Guide to the Laws of the Universe. 1 ed. New York: Knopf, 2005.
RIMBAUD, Arthur. Uma Estadia no Inferno/Poemas Escolhidos/A Carta do Vidente. São Paulo: Ed. Martin Claret,, 2002.
ROMANDINI, Fabián Ludeña. H. P. Lovecraft: a disjunção no Ser. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.
VENTRE, Luciana Pinheiro (2018) “Cartografando o Invisível” in (KLINT, Johan af …et al) Hilma af Klint: mundos possíveis.
WOLFF, Milo. (2003). On Truth & Reality: The Wave Structure of Matter (WSM) in Space. Recuperado em 26 de fevereiro de 2019 de https://www.spaceandmotion.com/Wolff-Wave-Structure-Matter.htm.
NOTAS
[i] Sobre lógica, ver o artigo “A Linguagem Perfeita” de Gregory Chaitin, presente nesta edição.
[ii] Sobre mecânica quântica, ver artigo de Helayël-neto presente nesta edição.
[iii] Sobre as suas teorias da Relatividade de Einstein, ver o artigo “A Desconstrução do absoluto na física” de Mário Novello, nesta edição.
[iv] Sobre as artes plásticas e música atonal, ver o artigo “Mudanças nas Artes e sensibilidade na virada para o século XX” de Paloma Carvalho, nesta edição.
[v] Sobre psicanálise, ver o artigo “Narrativas do Páthos no limiar do século XIX: exorcizar o demoníaco para psicologizar o indivíduo” de Luis Granato, nesta edição.