O rizoma de Yuggoth: modular deleuze
Artigo originalmente publicado na revista Tempo Psicanalítico v. 54 n. 2 (2022): https://tempopsicanalitico.com.br/tempopsicanalitico/article/view/734
Resumo
Vamos abordar o campo deleuziano a partir de alguns autores que consideramos precisos em relação à ressonância com a obra de Deleuze, realizando, em seguida, uma crítica a outros autores desse mesmo campo, que consideramos imprecisos, o que nos levará a avaliar como intercessores de Deleuze, como Hume e Nietzsche, podem ser modulados hoje, seja intensificando seus conceitos ou avaliando sua real necessidade. Finalmente, vamos sugerir alguns desdobramentos no campo deleuziano que consideramos relevantes. Para tanto, vamos abordar a obra do antropólogo Tim Ingold, do escritor H. P. Lovecraft, o atual cinema escandinavo, a mística, entre outros temas.
Nyarlathotep
O estranho veio do Egito, por fim;
Aquele pelos fellahs adorado.
Altivo, misterioso e calado,
Vestido em trajes cor de carmesim.
Multidões suas instruções pediam,
Mas esqueciam uma vez ele ido.
Enquanto pelas nações era ouvido:
Feras o adoravam e seguiam.
No mar, um nascimento começou;
Terras espirais de ouro cindiam
O chão, enquanto auroras loucas caíam
Sobre as cidades que o homem levantou.
E, esmagando o que ele mesmo moldou,
Os restos da Terra o Caos soprou.
Continuísmo
Existe, em coisas ancestrais, um traço
Que vai além da forma, algo invertebrado;
Com um éter tênue, indeterminado,
Porém ligado às leis do tempo e espaço.
Um breve sinal de heranças perdidas,
Que os olhos externos jamais atentam,
De dimensões que anos idos sustentam
E que se abrem com chaves escondidas.
Comovo-me ao ver seu toque pousar
Nas fazendas que a montanha moldura,
E trazer à vida formas que duram
Por séculos para além do contar.
Em tal luz sinto não estamos distantes
Da massa de eras que vieram antes.
“Os fungos de Yuggoth”
H. P. Lovecraft
Um problema recorrente para os autores, pensadores, intelectuais e criadores que habitam a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, tão contundente e influente, incluindo aqui sua parceria com Félix Guattari (doravante: campo deleuziano), se apresenta do seguinte modo: como adquirir proficiência na multiplicidade de conceitos, campos do saber, intercessores e desdobramentos políticos suscitados por ela e ainda cultivar um dos seus temas mais caros, a saber, o devir, ou melhor, uns devires, sobretudo acerca da crítica ao clichê, não apenas na arte, mas também na vida?
Nosso percurso aqui será comentar alguns dos autores deleuzianos, bem como certos intercessores da obra de Deleuze, e sugerir alguns desdobramentos criativos possíveis do campo deleuziano hoje.
Campo deleuziano
Quando fazemos um passeio pelo campo deleuziano, o mais comum é percebermos autores que fazem uma exegese de sua obra, como Zourabichvili (2016) e Lapoujade (2015) que, à luz da obra deleuziana, podemos considerar uma tarefa menos importante. O grande tributo à sua obra seria – a partir de seus conceitos (entre outras inspirações) e sua postura diante da Filosofia e de outros saberes – criar novos conceitos. Se Zourabichvili concentrava-se em alocar Deleuze de modo canônico na história da Filosofia, Lapoujade, ao menos, elenca o que chama de “movimentos aberrantes” na obra do filósofo, apesar de estranhamente deixar de mencionar as ressonâncias não-locais de Deleuze em sua obra, justamente o que seria uma de suas propostas mais “aberrantes”, ainda que elas já estivessem embrionárias em autores como Leibniz e Bergson.
Existem alguns autores que fazem uso dos conceitos deleuzianos supostamente usando-os para fertilizar outros campos: alguns deles o fazem de modo potente, outros de modo brilhante e há os que apenas degeneram os conceitos de Deleuze, usando-os como verniz para reificar velhas ideias. Um dos autores potentes é Andrew Culp (2020) em Dark Deleuze, que denuncia a proposta reacionária – no sentido do que se espera de pensadores deleuzianos – de se retornar ao estruturalismo, feita por antropólogos “deleuzianos” como Descola, Kohn, Maniglier e Viveiros de Castro. Culp cita o seguinte trecho de Nietzsche e a filosofia de Deleuze (2018), quando este denuncia o estatuto da Filosofia desde Hegel, no intento de mostrar o que tais autores, de fato, fazem: “uma estranha mistura de ontologia e antropologia, de metafísica e humanismo, de teologia e ateísmo” (pág. 231). Culp, então, termina sua crítica:
Nossa conspiração precisa de mais, não apenas saber como o outro se condiciona em relação ao inimigo, ou como eles se devoram uns aos outros; nossa conspiração é um comunismo que quer consumir a carne e o sangue de todo o cosmos (pag. 117 e 118).
Culp também vai direcionar, com razão, suas críticas a Donna Haraway, por tentar conciliar a identidade com o pensamento de Deleuze. Haraway e seus ciborgues também receberão críticas de outro deleuziano criador, Brian Massumi (2017), quando este propõe, no lugar do “pós-humano”, o mais-que-humano de Erin Manning. Com isso, ressoando com Deleuze e alguns de seus intercessores, como Bergson e Simondon, e ao invés de legitimar a lógica do “pós”, Massumi insistirá na crítica às taxonomias e pensamentos tipológicos em geral, ao enfatizar o contínuo, o processual e o vital, apreendendo o ciborgue – segundo Haraway – enquanto “irônicos”, fazendo, em contraponto, um elogio ao brincante.
Também ressoamos com a crítica de Massumi ao “correlacionalismo” de Quentin Meillasoux e à “Ontologia Orientada ao Objeto” (OOO) de Graham Harman. Segundo Massumi, Deleuze e vários de seus intercessores já produziram rotas alternativas ao pensamento não correlacionalista, desenvolvendo uma metafísica relacional em que coexistem humano e não-humano. O que Massumi propõe de relevante é, mais uma vez, o mais-que-humano no próprio ato de pensar. Já em relação à OOO, que desloca o enfoque do sujeito para o objeto, deixando o tão importante “nós” aparecer apenas de modo genérico e pouco reflexivo, Massumi deixa claro que “é pouco mais que uma produção em massa de falsos problemas filosóficos vestindo velhos conceitos e enigmas em roupas novas e chamativas” (pag. 127).
Tim Ingold (2018) vai fazer coro à crítica aos antropólogos estruturalistas supostamente “deleuzianos” de Culp indo direto à fonte: o antropólogo critica a antropologia estrutural de Lévi-Strauss por considerar que a vida social pode ser pensada a partir da troca significativa de signos e símbolos. Segundo Ingold (2022), a vida escapa para além dessas trocas, estendendo suas críticas à semiótica de Pierce, confessando-se um “semiófobo”. Nas palavras de Ingold (2015):
O plano de Lévi-Strauss de elaborar um inventário de todas as sociedades humanas, passadas e presentes, com a visão de estabelecer suas complementaridades e diferenças, é certamente a coisa mais próxima a coletar borboletas já encontrada nos anais da antropologia. Sem surpresa, dada sua ambição, o plano acabou em nada. (pag. 335)
Outro autor celebrado pelo campo deleuziano menos crítico e mais afeito a modismos que também recebe críticas contundentes ao longo da obra de Ingold é Bruno Latour. Por exemplo, a “Teoria Ator-Rede” é desconstruída por Ingold (2015) justamente por seus dualismos (nem tão) ocultos: se, de um lado, há uma separação entre atores e suas redes, a própria noção de rede é infeliz, no sentido que a continuidade está mais explícita ao longo da malha, e não na ênfase nos “nós da `rede`”, como Latour faz. Nesse sentido, substitui-se os “nós” da rede por emaranhados de linhas e a rede por malha. O pensamento do “entre”, tão recorrente na obra de Deleuze, vai ter em Ingold uma proposta inovadora, quando este propõe substituí-lo por esse ao longo de.
No âmbito político, o campo deleuziano vem se alimentando da obra de Toni Negri, incluindo sua série com Michael Hardt. Apesar de Negri ter como “álibi” ter conhecido e trocado com Deleuze e Guattari, não quer dizer que os dois franceses corroborariam com as teses mais recentes do italiano. Apreciamos as críticas que a revista Tiqqun (2014) e seu desdobramento, o Comitê Invisível (2015), fazem em relação ao pensamento de Negri. Segundo a Tiqqun:
Mesmo que essa teoria tenha o mérito de romper com a teoria que todos os socialismos e, por extensão, todas as esquerdas, buscam preservar, mesmo se valendo de massacres para tanto – a ficção de uma unidade final da sociedade –, ela oculta duplamente: 1) que a “primeira sociedade” não existe mais, entrou num processo de implosão contínua; 2) que o Partido Imaginário, aquilo que se recompõe como tecido ético além dessa implosão, não é em hipótese alguma um, em todo caso, tampouco é unificável numa nova totalidade isolável, a segunda sociedade. É exatamente essa operação que Negri reproduz hoje, de forma atávica, chamando de multidão, no singular, qualquer coisa cuja essência é, segundo seus próprios dizeres, uma multiplicidade. Esse tipo de embuste teórico nunca vai ser tão medíocre quanto a finalidade a que se presta: unificar espetacularmente em um sujeito o que, a seguir, poderá se apresentar como intelectual orgânico. (pág 61 e 62)
Já o Comitê Invisível critica Negri por insistir no processo democrático, sobretudo quando este entende que as ditas “revoluções” recentes resultam em algo ético. Ao invés de pensar revoluções democráticas, o Comitê Invisível vai propor insurreições e destituições, menos na lógica da luta e mais na lógica da superação, entendendo, com razão, que a “luta pela democracia” é justamente a atitude dentro do sistema que ele próprio quer, de modo que esses grupos anônimos convidam a pensar em uma lógica fora do sistema.
Intercessores
Após a crítica às recepções questionáveis feitas pelo campo deleuziano, colocamos agora questões inerentes ao interior da obra deleuziana. A primeira delas em relação a um de seus principais intercessores: Nietzsche. Nos reportamos a uma entrevista quase sempre ignorada de Guattari, feita por Kuniicho Uno (Kuniichi e Santos, 2016), onde revela ter uma “hostilidade profunda” (pag. 68) em relação a Nietzsche, reconhecendo que tem “textos memoráveis” mas tecendo suas críticas principalmente à ambiguidade do termo “força” e o fato do filósofo alemão ser a favor da figura do “chefe” (“führer”).
É no mínimo curioso notar que, a partir da obra conjunta com Guattari, Deleuze começa a citar menos Nietzsche. De fato, a ontologia em Spinoza já daria conta de muito do que o autor de “Além do Bem e do Mal” propõe. Se levarmos em conta a crítica recorrente de Domenico Losurdo (2009) a Nietzsche, no sentido que este reitera em sua obra certo desprezo ao nivelamento igualitário no discurso moderno, percebemos que as questões levantadas por Guattari encontram ressonância num escopo de crítica que passa ao largo de ser considerada simplesmente leviana.
Deleuze faz algumas aproximações entre Spinoza e Nietzsche ao longo da sua obra, como em Nietzsche e a filosofia (Deleuze, 2018) em que é estabelecida uma relação crítica entre a capacidade de afetar e ser afetado em Spinoza e vontade de potência em Nietzsche, em Espinosa e o problema da expressão (Deleuze, 2017) em que Deleuze estabelece uma crítica semelhante a ambos os filósofos em relação ao Bem e o Mal, propondo o bom e o ruim e em Diferença e Repetição (Deleuze, 2006a), em que são construídas etapas do ser unívoco pensado em Duns Scot, afirmado em Spinoza e realizado pelo eterno retorno em Nietzsche.
Se quisermos nos desviar de uma possivelmente excessiva influência nietzschiana, podemos recorrer, entre outros, à mudança sem suporte proposta por Bergson (2006), em seu artigo seminal “A percepção da mudança”, cuja mudança, assim apreendemos, libera o conceito de devir da indesejada imutabilidade da substância spinozista, permitindo uma imanência inteiramente da ordem do mutável, sendo que até mesmo no platô “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível” de Mil Platôs (Deleuze e Guattari, 1997a), o conceito de devir ainda foi mantido nesse, digamos, “estágio”.
Um autor que costuma ser celebrado junto com Deleuze no campo deleuziano é Michel Foucault. Se, de um lado, a influência de Foucault é inegável em Deleuze, até por ter dedicado um livro e diversas aulas a ele, por outro, é preciso apreender os limites dessa influência foucaultiana. Ao ser perguntado por Tetsuo Gokawa pelas mortes recentes de Sartre, Barthes, Lévy, Althusser etc., Guattari (Guattari e Gokawa, 2020) responde: “Os grandes intelectuais que você mencionou já não conseguem compreender a realidade social (incluindo Michel Foucault, que hoje praticamente não faz mais intervenções públicas).” (pág. 67)
É verdade que Guattari vai desenvolver novas teorias políticas em suas últimas obras, mas é um pequeno texto de Deleuze que vai criar uma crítica mais contundente a Foucault e abrir algumas brechas para se pensar novos modos de insurreição. Trata-se de “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” (Deleuze, 1996). Nele, Deleuze parte das “sociedades disciplinares” de Foucault que, através da constante vigília “de cima” do panóptico, confina indivíduos em uma série pré-configurada: maternidade – família – escola – caserna – fábrica – hospital e eventual prisão – cemitério. Deleuze coloca que deixamos de ser confinados para constituir uma sociedade de controle, em que o indivíduo confinado e moldado é substituído por um indivíduo endividado e modulado. Já estão ali a denúncia de um mundo em que os computadores serão ferramentas de controle ao determinar quais cartões serão aceitos ou não, a transformação de universidades em empresas, crise das instituições, inaptidão dos sindicatos, um capitalismo que quer vender serviços e comprar ações, a dissipação das fronteiras e a explosão de guetos e favelas. Ao anunciar todos esses problemas, Deleuze apressa-se a afirmar que “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.” (pág. 220)
Modular Deleuze
Se as observações de Deleuze foram assustadoramente precisas, as questões da sociedade de controle só vieram a se sofisticar. Nesse ponto, o campo deleuziano se beneficiaria ao se alimentar de conceitos como estado de exceção, guerra híbrida e guerra cognitiva, ao invés de requentar conceitos datados ou em estado germinal. Além disso, é preciso atualizar que o controle exercido outrora pelas multinacionais são cada vez mais exercidos pelos grandes fundos de investimento, como BlackRock, Vanguard, State Street e Fidelity. Além de gestar juntas um PIB maior que o dos E.U.A., controlam cerca das 140 maiores empresas do mundo (Rügemer, 2021).
O conceito de estado de exceção vem sendo desenvolvido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (2004), para nós, o autor contemporâneo mais preciso em atualizar algumas ideias foucaultianas, além de contar com uma relativa entrada no campo deleuziano. Segundo ele, no estado de exceção, a política – que deveria ser a mediação entre direito e violência – vem sendo substituída pelo direito, observando que as leis estão cada vez mais fascistas, mesmo comparadas com as leis da época do regime fascista.
A guerra híbrida (Korybko, 2018) evita o uso de armas, em prol da diplomacia, e utiliza robôs, cujos algoritmos têm como objetivo manipular a opinião pública nas redes sociais, e a cismogênese, uma estimulação de divisões sociais em que cada lado define-se por oposição à outra – as famosas “bolhas” de hoje em dia – com objetivo de, por exemplo, destituir um presidente, contribuindo para a eleição de outro mais disponível a ser controlado por tais grupos financeiros transnacionais. A tática de guerra híbrida foi responsável por diversas “primaveras” e “revoluções coloridas” ao redor do mundo, com características muito semelhantes entre elas. O conceito de guerra híbrida é um tanto sofisticado: a cismogênese, por exemplo, foi cunhada pelo antropólogo Gregory Bateson, que teve relações estreitas com a CIA desde seus primórdios (Atwill, 2015).
A guerra cognitiva (Martins e Ambrosio, 2022) é uma proposta de parceiros da OTAN para transformar cidadãos comuns em armas de guerra – os onipresentes “mínions” – ao manipular suas opiniões políticas por intermédio de algoritmos de redes sociais e afins. Tanto a guerra híbrida quanto a cognitiva possuem seus embriões em estratégias militares norte-americanas, datadas ao menos do início do século XX, chamadas PsyOps ou “operações psicológicas”, que visam atacar o inimigo sem armas físicas, através da manipulação mental.
Nenhuma dessas duas modalidades de guerra contemporânea tem popularidade no campo deleuziano, mas afeito em usar conceitos foucaultianos e de Negri à exaustão quando o assunto é política. Tal impopularidade encontra uma possível explicação por elas operarem em outro campo semântico, o que explicaria a afinidade maior com o estado de exceção de Agamben.
O tema da política em Deleuze nos leva à sua primeira obra com Guattari: O anti-Édipo (Deleuze e Guattari, 2010). Apesar de seu grande sucesso, já na época de seu lançamento, os próprios autores vão celebrar seu intento do projeto maior intitulado “capitalismo e esquizofrenia”, no seu desdobramento: Mil Platôs. Se a esquizoanálise, prática clínica crítica à psicanálise proposta no primeiro tomo, surge ainda trocando um modelo de inconsciente por outro, a saber, o teatro grego psicanalítico que representa Édipo indefinidamente pela produção fabril esquizoanalítica, é apenas no segundo tomo que surge o conceito que escapa aos modelos: o rizoma (Deleuze e Guattari, 1995).
Curiosamente, Deleuze já possuía munição o suficiente para criar conceitos que tratassem do psiquismo de modo que estivessem para além dos modelos: a crítica à causa e efeito feita por David Hume em seu Tratado da natureza humana, que é tema do primeiro livro de Deleuze (2008), Empirismo e subjetividade. Ali já sabemos que a mente é o enlace de memórias que relacionam por hábito a relação de causa e feito, da qual , Hume insiste e Deleuze concorda, não há nenhuma prova, logo, não há substancialidade da mente: o próprio eu é um hábito. Deleuze sabe bem que Hume considera a natureza humana menos egoísta e mais parcial o que leva a humanidade a um estado delirante.
Apesar de Hume não ser citado em O anti-Édipo, percebe-se sua influência quando é dito que o investimento revolucionário inconsciente da libido substitui pessoas por linhas de vibração, por amores não-figurativos e isso “só pode ser feito às expensas e em proveito de uma ruptura de causalidade” (pag 500).
Ora, essas noções já bastam para deslegitimar – se não no próprio campo psicanalítico, mas à luz da filosofia da diferença de Deleuze – os modelos de aparelho psíquico freudiano, lacaniano, junguiano etc., por serem baseados em relações de causa e feito cujos hábitos são reificados na experiência clínica de seus autores.
Já as críticas esquizoanalíticas ao mito na psicanálise, por descobrir nele as figuras de uma libido subjetiva universal, devem ganhar, hoje, um estatuto mais preciso, estendendo-as ao campo junguiano. O “monomito” que Joseph Campbell conceituou a partir de Jung, possui uma larga aplicação na cultura de massas contemporânea (Ellwood, 1999). A partir de uma ideia universalista de como todos os mitos operam, o monomito de Campbell é usado para criar grandes franquias em Hollywood, como as várias da Disney: Star Wars, Marvel, Pixar etc. Praticamente todos os grandes blockbusters de hoje em dia são usados enquanto método pelos manuais de roteiro em Hollywood, desdobrando-se em séries, best sellers, histórias em quadrinhos, games etc. Isso gera uma espécie de cultivo de narrativa única no socius, empobrecendo a experiência de vida e tornando as pessoas previsíveis, facilitando sua subjugação ao controle. Verificaremos alternativas criativas para filmes e outras narrativas monomíticas no item “Arte intensiva” neste artigo.
Ainda em O anti-Édipo, suas questões políticas podem ser desdobradas de modo ainda mais consistente se houver uma ressonância com autores anarquistas ou pós-anarquistas contemporâneos. O antropólogo anarquista David Graeber (2016) em seu Dívida, vai expressar os aspectos econômicos da obra de Deleuze e Guattari mesmo sem citá-los, trazendo todo o percurso histórico e econômico da ideia de que a dívida é anterior ao dinheiro e de como esse fato é utilizado enquanto controle social pelo viés econômico.
Em relação ao capítulo “Selvagens, bárbaros, civilizados” de O anti-Édipo, Graeber vai trazer uma esplêndida contribuição em seu livro com o arqueólogo David Wengrow, The Dawn of Everything (Graeber e Wengrow, 2021) – um livro-acontecimento que causa trepidações ressoantes às de Mil Platôs em sua época -, ao mostrar com dados atuais que a humanidade, em sua maior ocorrência na história foi pacífica, além de legitimar um matriarcado que coexistiu com o patriarcado e que o estado de igualdade foi o mais comum na história. Fazendo as críticas aos limites da fórmula sociedade contra o Estado de Pierre Clastres, autor que Graeber considera ingênuo, The Dawn of Everything vai mostrar tribos mais anarquistas do que as que Clastres faz sua etnografia e que os líderes de tais sociedades igualitárias abundantes mostravam solidariedade ao abrigar em suas próprias casas os deficientes e mais pobres.
Para que a ressonância de Deleuze com a anarquia seja mais clara, cabe nos dirigirmos à obra de Saul Newman (2005), que ao aproximar Deleuze da obra do anarquista Max Stirner, vai propor duas operações: a primeira seria retirar da anarquia as noções de que “o Estado é um artifício”, o que promove uma ressonância com o Estado imanente de O anti-Édipo, o Urstaat, e a segunda seria a crítica à ideia de um sujeito “corrompido” pelo Estado, posto que, pela filosofia da diferença de Deleuze, não caberia a conceituação de “sujeito” separado de seu campo relacional.
A partir dessas equalizações feitas por Newman, podemos apreender a obra de um anarquista contemporâneo, leitor de Mil Platôs, o historiador sufi Peter Lamborn Wilson, sobretudo pelo seu pseudônimo Hakim Bey (2001), mais especificamente na obra em que essa ressonância é mais explícita, a sua TAZ (sigla de Zona Autônoma Temporária, em português), pois ela se inspira no conceito de nomadologia de Mil Platôs. Nela, não se espera mais a revolução, ao realizar o levante da TAZ em qualquer ocasião livre, itinerante e sem hierarquia, seja ela um piquenique ou em uma festa auto-organizada. Hakim Bey traz o pragmatismo das microrrevoluções que tanto querem Deleuze e Guattari, de modo que sua TAZ inspirou o movimento de ocupações, as festas raves e o movimento hacker, para citar exemplos mais óbvios; todos eles, com o tempo, absorvidos em graus variáveis pelo controle, sejam as ocupações pelas guerras híbridas, as raves pelo capitalismo e movimento hacker pelos modismos. Enquanto isso, Julian Assange é preso por denunciar crimes de guerras… cabe a nós conjurarmos novas TAZ, ainda mais selvagens, livres e, se não invisíveis, ao menos opacas (Tiqqun, 2020).
Voltando ao conceito de rizoma, este também vai receber uma inovação por Tim Ingold (2015). O pai de Ingold, Cecil Ingold, foi um grande especialista em fungos. Seu filho vai considerar, com razão, que o rizoma oriundo da botânica é uma apropriação indevida por Deleuze e Guattari, pelo fato de o rizoma ser uma espécie de “clonagem” da Natureza. Um rizoma reproduz-se, criando uma rede de semelhanças. Quando, por exemplo, um rizoma é atacado por fungos, ele pode ser totalmente destruído se o problema não for sanado, contrariando a tão celebrada plasticidade do rizoma de Deleuze e Guattari. É justamente no micélio fúngico que Ingold vai encontrar a melhor ressonância conceitual para o conceito filosófico de rizoma.
De fato, os fungos são muito versáteis, evidenciando uma descentralização da ideia de sujeito, sendo um sistema eficaz de transmissão de informação em florestas e são inclusive considerados o maior ser vivo (orgânico) da Terra – mais precisamente, o fungo Armillaria, em Oregon, EUA (Sheldrake, 2021).
O rizoma fúngico de Ingold é atravessado por suas linhas – inspiradas pelo pintor Paul Klee, que antes inspirou Deleuze e Guattari -, cujos emaranhados podem substituir os tubérculos do rizoma, que são alternativas consistentes para o conceito de objeto, como mostramos anteriormente.
No entanto, as linhas de Ingold precisam ser mais explicitamente transduzidas para as linhas de vibração que surgem brevemente em O anti-Édipo. Se essas linhas de Ingold se inspiram na linha expressiva de Klee, que considera que “a linha é ponto que saiu para passear”, cabe realçar o quanto Ingold ressoa também com estéticas ao longo do impressionismo e expressionismo de Van Gogh e outros, cabendo a nós aqui expressá-las enquanto pura vibração. Para tanto, é preciso dar mais realce na obra deleuziana a um intercessor vibracional que, se aparece pouco nela, suas aparições ocorrem em momentos-chave: o filósofo e tecnólogo Gilbert Simondon.
A obra de Simondon (2020a) orbita nos temas que apontam o limite do esquema hilemórfico inspirado em Aristóteles, ou seja, do esquema que diz que a forma determina a matéria. Simondon propõe o processo de individuação, no sentido que nenhum indivíduo está pronto, sempre se processando, através de uma ressonância interna, que mantém a sempre coletiva metaestabilidade, ignorada pelo hilomorfismo. Opondo-se à dialética e inspirando-se na física, Simondon propõe, em seu lugar, a transdução, que é, grosso modo, a transmissão e conversão de certo meio energético para outro. No entanto, o filósofo desdobra a transdução, colocando-a como uma operação física, biológica, mental e social, e cuja propagação de vizinhança em vizinhança num determinado campo na tensão pré-individual – de onde emerge o processo de individuação -, será desdobrado em dimensões múltiplas: transdução é invenção, descoberta de novas dimensões. O processo de individuação, segundo ele, se dá por modulação (variação de vibrações), que é processual, em oposição à moldagem, que é definitiva: o pré-individual é sem fase e o ser após a individuação é fasado, de modo que não é o ser que passa através das fases, é o ser que devém ser das fases. Individuação é modulação, fases do ser: devir, que é transdução do presente.
Deleuze não conheceu a obra completa de Simondon, de modo que o campo deleuziano tem muito o que desdobrar a partir da obra simondoniana. Muito do que trazemos aqui acerca dos conceitos de um leitor de Simondon e ainda mais de Bergson – o já citado Tim Ingold -, realiza parte desse desdobramento; no entanto, queremos intensificar os aspectos modulacionais que os conceitos de Simondon podem operar na obra de Deleuze.
Estamos cientes de que a apresentação acima dos conceitos de Simondon podem parecer por demais intrincada. Esse é o preço a se pagar por se operar uma ontologia para além do aristotelismo; no entanto, uma fórmula perigosa, tanto por ser aparentemente simples demais e/ou ecoando certos reducionismos espirituais, mas também por radicalizar um mundo sem objetos, também é a proferida por Deleuze (2006b) em suas aulas sobre outro filósofo vibracional, Leibniz, em trecho que comenta sua relação com mais um autor dessa linhagem vibracional da filosofia, Bergson: “o fundo da matéria é vibração e vibração de vibrações. A correspondência com Bergson se revela em todos os níveis, são filosofias muito próximas. Tudo é vibração.” (pág. 256) (grifo nosso).
Para trazer mais consistência para a fórmula “tudo é vibração”, recorreremos a uma nova interpretação da mecânica quântica, a interpretação transacional, proposta por John Cramer e desenvolvida por Milo Wolff, cientes de que Deleuze e Guattari pouco visitaram a mecânica quântica, preferindo a teoria do caos, ressoando com seus fractais.
Físico oriundo dos estudos do eletromagnetismo, John Cramer propôs que o colapso de onda na mecânica quântica – canonicamente explicado, dentre inúmeras outras interpretações, como uma onda estatística, dando ênfase à ideia de partícula – seja, na verdade, um encontro de uma onda do passado com uma onda do futuro – ressoando, aparentemente sem saber, com o virtual bergsoniano. O físico Milo Wolff (2008), por sua vez, deixa bem claro, a partir de Cramer, que tal interpretação resulta em uma física absolutamente sem partículas, de modo que, por meio dessa interpretação transacional da mecânica quântica de Cramer, inexistam partículas; dito de outro modo: no universo só existem ondas. O que se apreende pela física dominante enquanto “partículas”, seriam, na verdade, ondas esféricas estacionárias, ou seja, tudo é vibração.
Se Hume critica as relações de causa e efeito, por sua vez, as linhas de Ingold, as modulações de Simondon e a interpretação transacional da mecânica quântica mostram que todo o mecanicismo que se apresenta no mundo é muito mais uma limitação da percepção, pois tudo opera por ressonância, seja interna, como em Simondon, ou seja por ressonância não-local, como Leibniz e Bergson ajudam Deleuze a conceber.
Agora que verificamos as questões a serem equalizadas acerca da mecânica quântica, o que diríamos acerca do caos em Deleuze, algo mais profundo que o próprio plano de imanência? Em O que é a filosofia?, somos apresentado às três caoides, filhas do caos: a filosofia que conceitua a partir do caos, a ciência que explora o caos e a arte que emoldura o caos. Deleuze e Guattari (1992) iniciam a conclusão do livro com a frase “Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos”, que pode ser muito mal-entendida. Acerca disso, Franco Berardi (2020) nos esclarece:
Não devemos sentir medo quando o caos engole a mente (no que inclui a mente social), não devemos nos esforçar para submetê-lo à ordem. Isso não dará certo, porque o caos é o mais forte do que a ordem. O que devemos fazer é tentar nos tornarmos amigos do caos e, no olho do furacão, procurar a ordem mais elevada que ele traz em seu interior. (pág. 163)
Mas é preciso ainda dar precisão ao que Berardi chama de “ordem mais elevada”, indo além de suas propostas. Se apreendemos, como foi desdobrado anteriormente, que tudo é vibração de vibrações, o caos seria uma espécie de instância de vibração máxima, de onde emergem o tempo e o espaço. O caos – que é anterior à filosofia, ciência e arte, logo, anterior ao plano de imanência, pois este é campo de onde parte a filosofia, anterior ao vácuo quântico, pois este seria o caos já matematizado, logo, explorado, e anterior ao invisível, pois este seria já captável pelo artista -, ao vibrar infinitamente, gerando infinita sutileza adimensional e atemporal, cria a ilusão de imutabilidade, que vibra em tudo ao mesmo tempo, mas “tudo” aqui é adimensional e a simultaneidade é apenas uma ilusão, já que ainda não emergiu o tempo; no entanto, vibra-se. Esse vibra-se – de onde advirá todas as outras vibrações, cada vez mais lentas, gerando tempos mais apreendidos na duração e extensões mais densas, com instâncias cada vez mais localizáveis no eixo cartesiano – possui vibração infinita no caos, que, ao deixá-lo, ou seja, ao vibrar menos, ganha alguma densidade. A vibração que aparenta a imutabilidade, mas é o máximo de vibração, chamamos de Paradoxo. Com o Paradoxo associado a uma ontologia vibracional para além dela mesma, dado os devires mais selvagens, podemos propor que se abdique mesmo do atual e virtual bergsonianos e habitemos um puro intensivo, posto que até mesmo Bergson, no prefácio ao seu Matéria e memória (1999), considera seu sistema:
claramente dualista. Mas, por outro lado, considera corpo e espírito de tal maneira que espera atenuar muito, quando não suprimir, as dificuldades teóricas que o dualismo sempre provocou e que fazem que, sugerido pela consciência imediata, adotado pelo senso comum, ele seja pouco estimado pelos filósofos. (pág. 01)
Caso não se apreenda devidamente o Paradoxo, ou seja, que a vibração infinita gera a ilusão de imutabilidade – como as hélices em giro do ventilador geram a ilusão da presença de um círculo -, provavelmente irão emergir inúmeras ilusões que nomeiam facetas da transcendência, correlacionando esta com o imutável, sem saber que esse aparente imutável vibra – caoticamente – como nunca. A partir do Paradoxo, podemos apreender melhor os aspectos místicos em Deleuze.
Mística deleuziana
O orientador de Deleuze em Diferença e repetição foi Maurice de Gandillac, filósofo especialista e tradutor de pensamento medieval, tendo traduzido, entre outros, Pseudo-Dionísio (o Aeropagita) e Nicolau de Cusa (Dosse, 2010). Deleuze (2016) escreve o artigo “Os rincões da imanência” em sua homenagem, mencionando os dois citados e Mestre Eckhart. O jovem Deleuze de vinte e um anos escrevera o artigo “Do Cristo à burguesia” dedicado a Marie-Magdalène Davy, filósofa, teóloga e esotérica, publicado em 1946. No mesmo ano, Deleuze, a pedido de Davy, escreve o prefácio “Matese, ciência e filosofia” para o livro Estudos sobre a mathesis ou anarquia e hierarquia da ciência de Johan Malfatti von Montereggio (2012), médico e místico alemão, que escreveu o original em 1845. Nesse prefácio, percebe-se já um Deleuze monista, escrevendo sobre a “unidade na diversidade” (pág. 30) e “O êxtase não passa justamente da realização pelo qual o indivíduo se eleva ao nível da espécie” (pág. 32). O livro de Montereggio, por sua vez, possui passagens que parecem prefigurar tanto conceitos peculiares acerca do cérebro concebido por Deleuze e Guattari, como o transindividual:
Como na mathesis, onde cada ternário constitui o começo do seguinte e, por isso, cada ternário isolado se torna e dura não somente em si mas também fora de si, no primeiro caso se estabelece o período triádico; no segundo, o tetrádico. (pág 167)
O filósofo inglês Joshua Ramey (2012), em seu livro The Hermetic Deleuze, realiza uma recuperação mística em vários intercessores de Deleuze, passando pelos principais, como Bergson (com sua concepção de que o universo é máquina de produzir deuses), Spinoza, mas passando também por Nicolau de Cusa e Plotino – Deleuze (2018) dirá numa de suas aulas sobre cinema: “Plotino é extraordinário, é um dos maiores filósofos que já existiram.” (pág. 442) -, para afirmar que “o pensamento sistemático de Deleuze não é totalmente compreendido sem situá-lo na tradição hermética” (pág. 08), de onde derivam todos esses intercessores. Para Ramey, as questões de intensidade, de reversão do platonismo e de devir mostram claramente isso.
Ramey não cita Simondon, mas este está a todo o tempo de sua obra remetendo-se à espiritualidade. Poucos dos seus comentadores, os do campo deleuziano inclusos, mencionam isso. Simondon (2020a) vai dizer que a espiritualidade é a significação da coerência de outro e do mesmo numa vida superior: uma relação entre individuado e pré-individual, uma sinergia. O pré-individual funda o espiritual no coletivo: “A unidade espiritual está no nexo transdutivo entre ação e emoção; poder-se-ia chamar esse nexo de sabedoria, sob condição de não se entender com isso uma sabedoria humanista.” (pág. 379). Simondon (2020b) também vai dizer que “a técnica e a religião são herdeiras da magia”. (pág. 260), “Técnica e religião são contemporâneas uma da outra e, consideradas separadamente, ambas são mais pobres que a magia, da qual saíram.” (pág. 261)
Entre os autores citados por Deleuze e Guattari em Mil Platôs está o antropólogo Carlos Castañeda, que relata seus encontros com o bruxo Don Juan Matus e seu nagualismo, cujos componentes ressoam com a ontologia bergsoniana: o tonal (mundo normalmente perceptível) e nagual (mundo sutil) de Don Juan com o atual (o presente do sensório-motor) e virtual (a memória e a consciência) de Bergson, respectivamente.
Também em Mil platôs, Deleuze e Guattari (1996) citam a ioga como exemplo de criação de Corpo sem Órgãos (CsO). No verbete “Rizoma”, acerca das “multiplicidades anômalas, nômades, em devir, de transformação” eles dizem que “do ponto de vista da pragmática, é a bruxaria que as maneja” (pág. 221). Finalmente, é em O que é a filosofia?, que surge a afirmação sugestiva de que “Pensar é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa”. (pág. 239)
Com esses aspectos místicos na obra de Deleuze, conjuramos então uma quarta caoide, a mística, que modula o caos. Certos estamos que a conceituação, a exploração e a emolduração são modos de modulação, no entanto, a modulação da mística é mais ampla, ainda que menos específica. A partir disso, apreenderemos melhor a relação de Deleuze com a obra do escritor norte-americano H. P. Lovecraft.
Arte intensiva
Deleuze e Guattari referem-se à Lovecraft no platô “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível”, sobretudo nos itens “Memórias de um feiticeiro”. Apesar dos autores não se referirem a E. Hoffmann Price, ele é o co-autor de Lovecraft no conto em questão: “Através dos portais da chave de prata”. Lovecraft escreveu outros contos da série “chave de prata”, cujo protagonista é sempre Randolph Carter, normalmente associado como seu alter-ego. Price o convidou a escreverem juntos esse último conto da série. A chave de prata é um artefato místico que permite ter acesso a outras dimensões. No caso desse conto, ele abre portais em instâncias cada vez mais amplas. Deleuze e Guattari não colocam dessa forma, mas consideramos preciso dizer que o conto descreve etapas de desreferencialização, em outras palavras, Carte(siano)r cria um CsO. No entanto, Carter não tem coragem de abrir o último portal, de desreferencialização absoluta. Atingiria ele o caos ou, em termos místicos, a iluminação? Carter retorna então com o corpo mitigado pela desreferencialização, passando seus dias – numa deliciosa perspicácia de Lovecraft – se fantasiando de guru indiano.
Patricia MacCormack (2013) desdobrará o que estamos chamando aqui de criação de CsO, em etapas, ressoando cada portal com aspectos da obra de Deleuze: modos de animalidade, intensidade, devires, alteração de modos de percepção no sentido do barroco leibziniano, abstrato e finalmente, uma ética.
Se preferimos a modulação à ideia de “portal”, é por este remeter para “outro lugar”, podendo turvar a experiência de imanência, ou seja, o que se entende por portal é menos uma passagem de um local para outro e mais uma modulação, cuja intensidade pode-se chegar até em variações da vibração ao longo das dimensões.
A questão da criação de CsO em Lovecraft é, no referido conto, abortada em sua última instância. Aqui consideramos o fato de Lovecraft ser considerado um autor de horror cósmico. Justamente, o horror apenas se dá em um paradigma do sujeito: “Através dos portais da chave de prata” mostra um sujeito experimentando uma desreferencialização como algo negativo, ainda que haja certo fascínio pelo processo. No âmbito deleuziano, completar todos os portais seria um belo exercício de criação de CsO; mas estamos falando de Lovecraft, um autor do começo do século XX, fascinado e assustado, mas muito ciente das mudanças nas artes, na ciência e na sociedade como um todo, passando por um processo de suavização de seu racismo e conservadorismo depois de seus anos morando em Nova Iorque. O horror cósmico de Lovecraft tem como base a suposta indiferença dos Grandes Antigos – as famosas criaturas presentes em muitos de seus contos – em relação à humanidade, mas cabe uma questão deleuziana: e se a humanidade não for mesmo centro da vida no cosmos e se nos considerarmos, posto a imanência, unívocos aos Grandes Antigos?
No tópico de seu conservadorismo, podemos também realizar mais uma torção em prol de temas deleuzianos: Lovecraft (2022), termina seu conjunto de sonetos de horror cósmico, Os fungos de Yuggoth, com o soneto “Continuísmo” (segunda epígrafe deste artigo), tema caro ao autor. Trata-se da ideia de que mesmo na contemporaneidade estamos ligados às eras mais remotas. Se, de um lado, essa postura pode remeter-se ao conservadorismo do autor, por outro, pode nos dar elementos para uma concepção imanente de sua obra. Nesse sentido, à luz de uma Ética, o exercício lovecraftiano passa a ser, de modo potente, apreender-se enquanto cósmico e (a)temporal.
Lovecraft é uma das maiores influências do terror do século XX e sua influência tende só a aumentar neste novo século, ainda que seu continuísmo desdobre-se também de modo inesperado na literatura contemporânea, com ou sem uma relação direta com o própria obra lovecraftiana – seja em Lourenço Mutarelli, cujos elementos de autoficção passam pelo transindividual, em Gonçalo M. Tavares, que a cada produção de livro faz emergir um novo gênero literário ou em Ana Martins Marques, cujas indagações acerca da metapoesia, desdobram-se em uma nova poética.
Passando da literatura ao cinema, a taxonomia inspirada por Peirce e Bergson nos livros de Deleuze sobre a sétima arte, a despeito de sua enorme relevância e influência, padece precisamente disso: ser uma taxonomia. Se propormos, via modulação, abdicarmos do atual e virtual para habitarmos um puro intensivo, para além das imagem-movimento e imagem-tempo propostas por Deleuze, para dar conta do cinema de ação e do cinema autoral do pós-guerra, respectivamente, cabe também propormos uma imagem-intensivo. Se Deleuze (2018) critica o cinema de imagem-movimento do pós-guerra: “os maiores sucessos comerciais sempre passam por aí, mas por aí não passa mais a alma do cinema” (pág. 306) -, cabe agora nos atentarmos para obras cinematográficas que habitam um espectro ao longo das imagem-movimento e imagem-tempo, posto que Deleuze mesmo coloca o cinema de Hitchcock – cineasta ao longo dos estatutos de pensador e entertainer – como crise da imagem-movimento.
Se Deleuze vai focar em cineastas que deixam de ser entertainers para pensar seu cinema de imagem-tempo, nos perguntamos: quem seriam os cineastas de hoje que cumprem o legado de Hitchcock, não como “mestre do suspense”, mas enquanto cineastas que percorrem o espectro de pensador e entertainer, fazendo com que possamos apreender as novas imagens-intensivo?
A lista é cada vez mais longa, dado às facilidades tecnológicas que o cinema permite, ainda que o processo de divulgação seja um tanto intrincado para o cinema independente. Vamos apenas elencar alguns exemplos. De modo geral, as obras do roteirista e diretor Charlie Kaufman seguem essa linha: seus roteiros filmados por Spike Jonze, como Quero ser John Malkovich (EUA, 1999), por operar uma dobra mental em si mesma, Adaptação (EUA, 2002), por operar um meta-roteiro, Brilho eterno de um mente sem lembrança (EUA, 2004), filmado por Michel Gondry, por criticar a neurociência à luz de uma concepção de memória um tanto bergsoniana e seus próprios Sinédoque, Nova Iorque (EUA, 2008), em que real e imaginário se co-produzem e Estou pensando em acabar com tudo (EUA, 2020), em que o tempo ganha aspectos também bergsonianos.
Outro blockbuster que trouxe uma concepção bergsoniana, agora voltada à temática onírica é A origem (EUA, 2010), de Christopher Nolan. Por sua vez, o body horror que emerge a partir de um inusitado agenciamento Cronenberg-Mcluhan, fomentou uma nova geração de cineastas que vem concebendo novas estéticas cinematográficas. Nela, destaca-se a diretora francesa Julia Ducournau, que com seu Raw (França e Bégica, 2016) trata da questão do canibalismo em um viés mais intimista e Titane (França e Bélgica, 2022), que explicita os afetos que passam por certos agenciamentos contemporâneos de humano-máquina.
Já o cinema escandinavo vem cada vez mais trazendo exemplos de imagem-intensivo, sempre com protagonistas femininas fora do lugar-comum. Lars von Trier, com seu Anticristo (Dinamarca etc. 2009), por trazer a imanência de modo brutal na relação conjugal e Melancholia (Dinamarca, 2011), pela crítica aos valores ocidentais diante do caos. Mais recentemente, novos filmes vêm trazendo uma peculiar noção de sobrenatural no natural, que ressoa com a mística à luz de Deleuze que abordamos aqui, sempre atravessado por devires-animais. Estamos falando de Quando os animais sonham (Dinamarca, 2014), de Jonas Alexander Arnby, em que uma licantropa (lobisomem fêmea) é tratada como questão genética, Thelma (Dinamarca, 2017), de Joachim Trier, em que uma portadora de telecinese passa por dramas pessoais oriundos de sua habilidade singular, Border (Suécia, 2018), de Ali Abasi, em que uma troll passa por conflitos éticos por ter que lidar com as convenções humanas e Lamb (Suécia, 2022), de Valdimar Jóhannsson, que radicaliza o agenciamento humano-animal.
Todos os elementos de terror e horror que atravessam as obras citadas acima podem ter a sua apreensão inspirada em como Deleuze toma as obras de Kafka, Beckett e Bacon: se você não riu, é porque ainda não as entendeu devidamente.
Ressonâncias
Deleuze é um dos maiores filósofos do século XX. Sua influência e importância vão muito além dos temas que elencamos no escopo deste artigo. Esperamos que seus leitores possam desviar-se das armadilhas que o senso comum insiste em infiltrar na obra deleuziana e que o campo deleuziano possa, com isso, ser um pouco mais crítico em suas ressonâncias e criativo no cultivo dos devires que o atravessam.
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