O pensamento aliado ao infinito – Deleuze e Novello intercessores.
Buscar caminhos que possam levar a uma mesma imagem do pensamento é a prática deleuziana por excelência e tais caminhos não precisam ser estritamente filosóficos, mas ao contrário, podem ser trilhados por qualquer outra disciplina, dado que não existe nem privilégio nem inferioridade entre a arte, a filosofia e a ciência, podendo ser, cada uma delas, igualmente criadora (DELEUZE, 1992, p. 154; DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 13).
A ideia deleuziana de intercessor remete a relações de ressonância mútua que podem se dar, por exemplo, entre um conceito filosófico e uma função científica. Estes se encontram numa vizinhança, realizam um diálogo invisível ainda que em diferentes tempos, colocando os mesmos problemas e, sobretudo, afirmando a mesma imagem do pensamento. Os intercessores não são imitadores, mas distintas expressões do pensamento em que há conjugações, conexões, reflexos, intimidade, linhas que “não cessam de interferir entre si”, como se fizessem soar o mesmo ritmo.
Os intercessores Novello e Deleuze se opõem a uma imagem dogmática do pensamento que se solidificou ao longo da história da filosofia, desde a sua origem grega. Se Deleuze ensina qual tal imagem é dominante no modo de pensar ocidental, Novello ensina porque ela se impõe de modo tão natural ao homem comum, facilmente disposto a aceitá-la e a reproduzi-la: ela é a hipótese mais simples, a mais ajustada à limitação do seu intelecto, à sua pequena humanidade.
Ao estudar Deleuze e ao estudar Novello é possível se aproximar, por vias distintas, do mesmo caminho do pensamento, tendo como orientação uma imagem que provoca surpresa e inquietação, propiciando a desconstrução das habituais formas de pensar. Em Novello, tal desconstrução se evidencia exemplarmente ao propor um novo modelo cosmológico[1] em substituição ao hegemônico cenário-padrão chamado big bang que se sustenta desde a década de 70. O modelo do big bang tão popularmente difundido nas últimas décadas, alcançou enorme popularidade e se vulgarizou como uma verdade inquestionável. Novello ensina que essa descoberta científica, tida como uma verdade máxima da física, nada mais é do que uma renovação das antigas crenças que explicam o nascimento do universo, isto é, não passa de um mito científico. A ideia de um momento singular, mágico, identificado com o começo de tudo o que existe, embora defendido pelo discurso científico, não é tão distinta do imaginário de sociedades arcaicas e de seus mitos cosmogônicos da criação há milênios reproduzidos (NOVELLO, 2005b, p. 27; 2006, Capítulo 8; 2010, p. 22; p. 54; 2018, p. 165).
A teoria de que o universo se originou em uma grande explosão remonta às observações do astrônomo americano E. P. Hubble em 1929. De acordo com suas experiências, o universo sofreria um processo de expansão, tendo o seu volume variado ao longo do tempo. Na década de 60[2] passou-se a entender que essa expansão seria uma consequência natural de uma grande explosão ocorrida há poucos bilhões de anos (NOVELLO, 2010; 2018). Desses experimentos se desdobrou a compreensão de uma singularidade inicial (o big bang) que limitava no tempo a criação do universo. Nessa perspectiva, o que aconteceu há poucos bilhões de anos seria identificado com o início de tudo o que existe, associado a um tempo de valor zero e à concentração de todo o espaço em um ponto (NOVELLO, 2010, p. 18). Ou seja, a ideia de expansão do cosmos provocou, de imediato, a ideia de começo do mundo, uma “singularidade inicial”, um momento único da criação.Na verdade, há duas ideias distintas que surgem quando se fala em big bang: a ideia de que o universo foi extremamente condensado no passado (e, para Novello, não há dúvida que foi assim); a ideia de que esse momento de extrema condensação se identificaria com o início de tudo o que existe. É essa segunda ideia que Novello não aceita. Ou seja, é ponto pacífico, no século XX, para a comunidade física que o universo é um processo em evolução, que fora bem mais quente e concentrado no passado e que o seu volume total aumenta com o tempo. A divergência de compreensão se dá quando se pensa o que teria ocorrido ao universo no momento de máxima condensação: no modelo do big bang, esse seria o início singular e explosivo do universo; no modelo do universo eterno esse início poderia se prolongar ainda mais (NOVELLO, 2010; 2018; 2021). Para Novello a conclusão de que o Universo teria um começo singular há poucos bilhões de anos foi precipitada e errônea: “Em verdade, a conclusão correta deveria ter se limitado a rejeitar os cenários cosmológicos que não incluíam em sua explicação a evolução dinâmica do Universo, em particular a versão da proposta steady state[3]” (2010, p. 69).
Mario Novello propõe, então, a substituição do modelo do big bang por outro, menos simplista e explosivo e a consequência foi ter sido ele o primeiro cosmólogo a abandonar a ideia de singularidade inicial, estando há mais de 40 anos desenvolvendo a ideia do universo eterno. Nesse modelo haveria uma sequência de fases colapsantes e expansionistas que se sucederiam alternadamente – o próprio começo deste universo cíclico poderia nunca ter tido um começo e essas fases seriam infinitamente enumeráveis para o passado (2010; 2018; 2021). Diz o autor: “Cenários eternos, dinâmicos, possuem o que se chama boucing, isto é, um valor mínimo para seu volume. Eles passam de uma fase de contração a outra, de expansão, possuindo momento de ricochete e podendo repetir essa configuração – semelhante a um processo de sístole-diástole – mais de uma vez” (2010, p. 67).
Nesse modelo, a existência do universo é extrapolada para um passado infinito, autocriador, e, portanto, para a pergunta “O que havia antes do big bang”?, a resposta é: há o infinito se expressando infinitamente por infinitas formas e, assim o big bang é apenas um fragmento do infinito. Ao pensar o universo, é preciso compreendê-lo não como uma consequência natural de uma grande explosão que teria ocorrido há cerca de poucos bilhões de anos, mas sim por sua infinitude, o que leva a momentos ininterruptos de criação, a um processo dinâmico cuja variação, com o passar do tempo, se dá de modo não uniforme. A natureza é uma sequência de processos ativos em permanente movimento, que não caminha em linha reta, mas sim em incansável variação. Diz Novello: “Assim, neste caso, o Universo se estenderia desde o infinito passado (sendo então identificado ao tempo plano, sem curvatura, vazio) até o infinito ter então novamente a estrutura de espaço-futuro (voltando a espaço-tempo plano, sem curvatura, vazio). Isto é, o universo, nosso universo, em expansão atual, seria não mais que uma arbitrária flutuação do vazio: viria do nada (em t= – ∞) e terminaria no nada (em t = + ∞)” (1988, p. 57).
Novello força os cosmólogos a se acostumarem a pensar o infinito, a conviver com essa ideia, tornando-a uma necessidade do pensamento. Todo modelo do universo bem comportado, que pressupõe uma simplificação, uma idealização, é abandonado em razão de não permitir “descrever o formidável e complexo fluxo do real em suas múltiplas e aparentemente inesgotáveis formas” (1988, p. 34). A cosmologia de Novello vira uma página da história da física, pois permite que seja o universo seja pensado de forma complexa e múltipla, rica de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais: a cosmologia dinâmica é uma “ideia nova, seminal, cheia de potencialidades na gestação de uma visão aberta do universo” (2010, p. 38). Com ela as situações estáveis e permanentes, as regularidades e previsibilidades cedem lugar a transformações, evoluções, crises e instabilidades.
Ao propor a ideia de universo inacabado, Novello mostra que as leis do universo ainda estão em formação, sendo a cosmologia reveladora das novidades inesperadas da ciência (2018, p. 18). Em verdade, ao perder o caráter de fixidez, universalidade e invariabilidade, as leis nem mais mereceriam o nome de leis. Eis o profundo golpe diferido nos fundamentos da ciência que levam os intercessores a entender a natureza como um processo dinâmico, em movimento permanente, que nunca esgota suas virtualidades potenciais. Ao invés da criação ter lugar em um só lugar e em um único momento, ela é pensada de forma contínua, como produção permanente do novo, sem possibilidade de interrupção, sem cansaço. Deleuze afirma que pensar é pensar a criação, a multiplicidade, o infinito. Ao invés dos conceitos de ser e não ser, permanência, identidade, estabilidade próprios da tradição metafísica clássica, ele traz os conceitos que expressam o movimento e o devir. O objetivo do pensamento deleuziano é liberar os fluxos para fazer multiplicar mundos possíveis, afirmando sempre a diferença. Eis a instauração da Filosofia: “o pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito” (DELEZE, GUATTARI, 1992, p. 53). Todo problema da filosofia é não perder o infinito (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 59), é se abrir para o caos, não renunciar aos movimentos aberrantes; é mergulhar na imanência. Dar ao pensamento a insubmissão a tudo o que impede a novidade, eis a vertigem filosófica que Deleuze se propõe e que a cosmologia novelliana nos conduz.
Para além de todas as consequências que a Teoria do Big Bang traz, pode-se acrescentar mais estas: a compreensão que tudo o que existe foi criado (ou atualizado) do nada, do vazio e, em um único momento, não guardando a natureza mais nenhuma virtualidade ou nenhuma surpresa. A ideia comum de vazio, cujas propriedades foram atribuídas pelo mundo clássico, afirma que o vazio é um lugar sem qualidade, um puro nada, uma ausência absoluta, tal como pressupõe a própria cosmogonia da religiosidade judaico-cristã. Entretanto, a cosmologia, ao explicar a gênese do universo, trabalhará com outra consistência do conceito de vazio: trata-se do vazio quântico, um vazio instável, ou seja, uma vazio que, paradoxalmente, é pleno de potencialidade. O vazio quântico não é um puro nada, mas sim um vazio latente, um vazio virtual, o que significa dizer que não é uma ausência absoluta, mas uma ausência que guarda, virtualmente, a potencialidade de uma ação sobre o mundo.
Novello diz que o nada que origina o colapso do universo, é um nada instável, suficiente para colapsar e fazer começar a expansão. Ou seja, no início havia o vazio, mas o vazio quântico, um vazio prenhe de estados fisicamente possíveis que poderiam ocupá-lo. Nesse sentido, a própria palavra vazio parece inadequada, uma vez que se trata de um estado em que nada ainda está atualizado (por isso dito vazio), mas se trata antes de um estado pleno, dado que carrega consigo infinitas possibilidades. Afirma Novello: o estado inicial do universo é o de um vazio instável e dessa instabilidade gera-se a matéria e tudo o que existe (2005a, p. 91). Aqui a ausência de matéria não é uma negação, mas “uma estrutura complexa de opostos que se cancelam e que eventualmente podem ser diferentemente excitados gerando o aparecimento de alguma forma material que então se destaca” (1988, p. 99, nota de rodapé).
Novello (2005a, p. 84-85) ensina que cada partícula existente possui o seu vazio, o que se chama vácuo quântico, que nada mais é do que seu estado fundamental. As partículas deste vácuo não têm existência atual, isto é, elas não existem “de verdade”, mas possuem existência virtual. Daí esse vazio ser considerado um vazio instável, onde matéria e antimatéria, elétron e anti-elétron lutam longamente, o que produz uma indefinida sequência de múltiplas aparências, sem um momento sequer de repouso. O vazio como virtual é a gênese da vida, o que equivale a dizer que ali está a força genética de tudo o que existe, mesmo não existindo nada. E esta instabilidade do vazio, por sua vez, não é dada por nenhum elemento exterior, por nenhuma transcendência, mas sim provocada pelo próprio vazio.
Deleuze, inspirado por Bergson, ensina que, em sua atividade permanentemente criadora, a vida implica elementos atuais e virtuais, embora não haja objeto puramente atual. “Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais […] são ditos virtuais à medida que sua emissão e absorção, sua criação e destruição acontecem num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável, e à medida que essa brevidade os mantém, consequentemente, sob um princípio de incerteza ou de indeterminação. Todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidades, cada um deles emitindo um outro e todos rodeando e reagindo sobre o atual” (1996, p. 49). Nessa troca permanente entre visual e atual, não há vazio.
Antes do big bang existe vida e a cosmologia se desdobra sobre essa vida antes da vida. É a ideia desconcertante de que a natureza não é apenas tudo o que existe, “mas não se limita a isso. É alguma coisa a mais” (NOVELLO, 2005b, p. 15). Nesse sentido, a vida é mais do que o universo e como tal não tem começo nem fim. O infinito não veio depois para preencher o nada, posto quesua existência se dá sem qualquer carência, falta ou negação. Novello traz a imagem do uróboro: uma cobra que morde a própria cauda: “O universo, que começa do nada e termina no nada, permite imaginar um ciclo que pode ser repetido talvez infinitamente” (idem, p. 91-92).
Deleuze (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 13) e também Novello (2005b, p. 1-8) se servem da teoria dos jogos para falar da criação do mundo. O xadrez e o Go, possuem diferenças em relação às peças, às suas relações e o espaço onde acontece o jogo. No primeiro, as peças possuem uma hierarquia, têm valores diferentes e obedecem a regras bem definidas – são realizados movimentos limitados e previamente conhecidos, obedecendo a regras invioláveis, sob pena de impossibilitar o próprio jogo. Além disso, as peças vão desaparecendo no desenrolar do jogo, mas nunca pode aparecer um novo personagem. Já no jogo de Go, todas as peças têm o mesmo valor, podendo qualquer uma se identificar a um peão. No desenrolar do jogo, cada peça pode adquirir uma posição de destaque e assumir importante posição estratégica, o que significa dizer que não possuem propriedades intrínsecas, mas apenas propriedades que se atualizam em uma situação.
O estado inicial do jogo de Xadrez supõe uma ordenação específica, em que as peças são dispostas sempre no mesmo lugar no tabuleiro, enquanto no jogo de Go os peões são colocados à medida que a partida avança, e ao invés de ocuparem uma casa, ocupam os vértices do cruzamento de duas linhas. Se os vértices adjacentes ao peão estão livres, ele pode seguir em qualquer direção. No Xadrez visa-se a ocupação máxima de um espaço fechado, enquanto no Go o fundamental é preservar a possibilidade de estabelecer caminhos livres; no Xadrez o movimento tem alvo e destino, parte de um ponto para chegar em outro, enquanto no Go o movimento é perpétuo e surpreendente, o que leva Deleuze a identificar o Xadrez com o espaço estriado e o Go com o espaço liso (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 14); no Xadrez tudo já está atualizado: a situação do início do jogo, o status de cada peça, os movimentos a serem realizados, os próprios personagens do jogo; no Go, nada está atualizado, o que faz com que a situação do início do jogo seja a de um tabuleiro vazio. Entretanto, aqui é preciso novamente destacar que esse vazio não é uma ausência completa, mas sim um puro virtual. Significa dizer que nada está atualizado e por isso de antemão não é possível conhecer suas peças, seus valores ou seus possíveis movimentos. Entretanto, tudo está lá, como virtualidades prestes a se atualizar. Ocorre que o processo de atualização é sempre incerto e surpreendente: qualquer disposição das peças pode ganhar a existência e isso sempre pode acontecer por diferentes possíveis caminhos.
Na compreensão clássica do universo estabelece-se uma série de regras válidas universalmente, o que implica a compreensão de um mundo razoavelmente estático, previsível e determinista. O apego a essas leis faz com que muitos cientistas queiram impor proibições à natureza, exigindo desta um comportamento familiar ao homem rejeitando as ideias que colocam em questão essas leis. Mas Novello não teme nem a riqueza do universo nem a riqueza conceitual. Diz ele: “As regras com as quais jogamos não são únicas nem dadas no começo do jogo, isto é, no começo deste Universo! Só temos acesso a umas poucas regras gerais, válidas para qualquer jogo. Outras, especiais, ficam escondidas e só as conhecemos à medida que o jogo se desenvolve” (2005b, p. 21). As regras mudam porque o universo é dinâmico e desobrigado de seguir qualquer plano, regra ou determinação, muito menos obrigado a seguir o que é melhor para o intelecto humano suportar. O universo não tem um programa único, coerente ou adaptado a toda circunstância que a ciência até então conseguiu descobrir e revelar.
Ao definir leis eternas e universais para o funcionamento da natureza, os homens da ciência estabelecem, como diz Novello, um jogo de proibições (2005b, cap. X). Esse jogo já começa com as proibições das regras do próprio intelecto ou princípios de ordenação do intelecto, como Aristóteles enunciou: Identidade, Não Contradição e Terceiro excluído (Metafísica, IV, 2; IV, livro 3; IV, livro 7). Com isso, toda complexidade, contradição, paradoxo, é banido em favor de uma lógica bivalente onde ou bem tudo é verdadeiro ou bem tudo é falso. Mas a natureza nada tem a ver com os jogos humanos: ela segue em seu processo dinâmico alheia às ilusões que os homem criam para si mesmos e que chamam de verdades científicas (e não de ilusões).
Desde o Iluminismo uma visão antropomórfica do mundo permeia a descrição da realidade: os homens, de modo muito semelhante, apreendem o mundo e projetam a si mesmo no mundo. A época das luzes trouxe o desmoronamento da fé em Deus e construiu a grande fé na razão. Em consequência, todo o pensamento clássico nada mais foi do que uma auto-adulação do sujeito, ou seja, uma construção teórica que provoca no sujeito um bem estar e um contentamento, já que seus parâmetros são completamente ajustados às suas capacidades e ao que ele vivencia em seu pequeno mundo. Como diz Nietzsche, a ciência elabora as suas verdades não por conquistas do conhecimento, mas por conveniências morais do homem, por conveniências do seu bem-estar. (1984, § 70). Como diz Bergson, o homem se habitua ao trabalho do intelecto que faz a vida em sua diversidade infinitamente criativa ser reduzida à poeira, para que seja facilitada a sua ação sobre as coisas (1978, p. 67). Em outras palavras, o intelecto se coloca sobre a vida, reduzindo-a uma descontinuidade de momentos, pois somente assim pode impor sua ação sobre o mundo. Como consequência, ao se deparar com uma ideia, um principio ou uma regra que se afaste da sua cômoda construção intelectual, o vaidoso cientista nada faz senão tratá-la como indesejável.
Se a cosmologia moderna é uma refundação da física é porque ela exige um abandono da visão newtoniana, visão esta perfeitamente bem adaptada ao homem médio. O fato é que o homem comum se sente confortável frente à física newtoniana uma vez que esta trabalha com movimento pequenos, baixas temperaturas, baixas pressões, isto é, trata-se de um campo do saber que enxerga o universo de modo compatível com o olhar do homem. Mas, a partir do momento que o homem considera que seu olhar não dá conta do universo, que a compreensão do cosmos impõe uma incompatibilidade com os seus hábitos mentais, vivencia-se um grande “mal estar“. Por isso a cosmologia parte da dificuldade que é própria do homem: o homem observa e controla somente um processo finito e limitado, tanto no espaço quanto no tempo. Essa é a própria essência do homem limitado (2005a, p. 55). É preciso ultrapassar os limites da condição humana para se propor pensar a cosmologia, assim como para compreender a filosofia deleuziana.
Ter a força e a coragem para pensar fora do modelo da auto-adulação leva o pensador a “liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 222). Embora todos tenham receio de destruir os valores que sustentam a sua forma de viver, as estruturas dominantes que garantem sua ilusão de segurança, o verdadeiro mergulho no pensamento exige o risco. Como diz Deleuze, “É que, no momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os as morais, e pensar torna-se, como diz ‘ato arriscado’, uma violência que se sobre si mesmo” (1992, 128).
Gödel, por exemplo, provocou uma quebra na sólida tradição da ciência, alterando o conceito de direção dos processos temporais, produzindo um modo de pensar o movimento que a ciência, até então, relegara ao terreno da imaginação e da literatura (2005a, p. 75). É um tratamento do movimento bastante distinto do convencional, violando explicitamente as ideias mais primitivas da ciência com relação às características do tempo (2005a, p. 78-79). Gödel produziu uma análise tão profunda sobre a questão do tempo na relatividade[4] que ainda hoje, muitas décadas após o seu trabalho sobre o universo em rotação, não se conseguiu compreender o alcance de suas ideias. Ele despertou comentários contraditórios e suscitou questões que os físicos não conseguiram resolver.
A filosofia de Deleuze é um mergulho no que é imperceptível ao homem comum. Ela oferece a possibilidade de pensar aquilo que a partir das próprias faculdades do sujeito, não pode ser pensado. Logo, é um convite para abandonar a banalidade da vida cotidiana, a miserável reprodução do cotidiano, os apelos psico-orgânicos.A dificuldade de compreensão da filosofia deleuziana se dá em razão do receio que o homem tem de quebrar os valores que sustentam sua forma de viver, seu reconhecimento, suas crenças, ilusões e superstições. É assim que as ideias de estabilidade, previsão, certeza, regularidade, lei, se tornam tão caras a homem médio. A filosofia deleuziana não se encaminha em direção a esse alento, mas mostra, ao contrário, que submersos nessas verdades, o homem vive no apequenamento, prisioneiro de sua própria miséria.
A forma da sensibilidade humana procura fazer do mundo uma representação de si: ela deseja que o mundo a espelhe. Assim, projeta seus hábitos e sentimentos sobre as coisas, de modo a buscar o reconhecimento. Quando não atinge esse objetivo, o homem fica apavorado, aterrorizado. O homem está sempre querendo se blindar do caos, se proteger do infinito e suas vertigens, mas não há como fugir dele, pois de fato, o infinito a tudo circunda, e toda a tentativa de ignorá-lo sempre será uma ilusão e um artifício que em nada contribuem para uma vida alegre e afirmativa.
Em seu livro O universo inacabado: a nova face da ciência, Novello confessa um desejo: “Em verdade, eu estaria satisfeito e a missão cumprida se pudesse me identificar com um personagem de um romance que narra as peripécias de um viajante que foi acolhido nessa casa e a quem se pediu para contar um história sobre o infinito” (2018, p. 134). Missão cumprida, Mario.
Referências
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Flavia Bruno é Graduada, Mestre e Doutora em Filosofia pela UFRJ, Professora Adjunto da FSB/RJ e da UCAM/Centro, Membro do corpo editorial da Revista Cosmos e Contexto.
Esse artigo faz parte do livro O Encantamento do Cosmos (em homenagem aos 80 anos de Mario Novello), Editora Livraria da Fisica, 2022.
[1] Novello é pioneiro nos estudos do modelo cosmológico não singular, isto é, que apresenta o cenário de um universo eterno e dinâmico.
[2] Em 1964 Arno Penzias e Robert Wilson detectaram, a partir de suas experiências feitas em laboratório, uma radiação eletromagnética como resquício de uma fase extremamente quente do universo, o que os levou a concluir que a temperatura do universo teria sido maior no passado. Em realidade, em 1941 esta radiação já havia sido detectada por A. MacKellar, mas tal fato foi ignorado pela comunidade científica por duas décadas. A esse respeito ver Novello, Mário. Cronologia comentada da cosmologia in Do big bang ao universo eterno (Apêndice II).
[3] O modelo do Steady State supõe que o universo seja eterno, mas sem variação dinâmica.
[4] Curiosamente, essa análise é feita a partir de um convite para participar de uma obra coletiva intitulada: Albert Einstein, filósofo e cientista. Ele empreendeu então uma análise do tempo em homenagem ao seu grande amigo e o resultado foi formidável e desconcertante. Do big bang…, p. 57.