O nascimento da terapêutica na época helenista
A terapia como transformação
É a partir da noção de Epimeleia heautou, o cuidado de si, que Foucault em sua obra A hermenêutica do sujeito (2004) mostra as origens das práticas terapêuticas na Grécia antiga, revelando como alguns conceitos que sustentam a prática psicanalítica já encontram abrigo no modo como os gregos conduzem sua existência, dado que o cuidado de si constitui um princípio para os homens e uma ocupação que deve permear toda a sua vida.
Ocupar-se é dito pelo verbo therapeuein, que tem múltiplos sentidos, referindo-se tanto a cuidados médicos, quanto a serviço que se presta a um mestre ou mesmo serviço de um culto. De todo modo, cuidar de si, ocupar-se de si, se tornou, no período helenista, um princípio geral, implicando uma atitude frente ao mundo, um modo como o sujeito pratica suas ações e se relaciona com o outro, mas também, eis o ponto particularmente interessante aqui, uma certa forma de atenção que converte o olhar do exterior para si mesmo e a partir daí, um modo do sujeito se transformar. Ou seja, no que Foucault chama de a idade de ouro do cuidado de si aparece um princípio terapêutico que se dissipa como regra de vida geral que implica um olhar que o sujeito deve dirigir a si mesmo e que será capaz de transformá-lo enquanto sujeito, o que equivale a dizer que os gregos assumiam a terapia como prática necessária para a vida com efeitos reais que dele se desdobram.
Portanto, o processo terapêutico não se constitui aqui como um processo particular, isto é, uma prática de eleição por alguns homens e em alguns momentos de sua vida. Nesse momento histórico há um princípio terapêutico que vale para todos os homens que todo sujeito que aspira viver bem deve seguir.
O conceito de espiritualidade
A ideia do cuidado de si está inserida em uma tradição dita espiritual: é uma necessidade espiritual de um sujeito sobre si mesmo, transformando-se e esperando da verdade, sua iluminação e transformação. Ao conceituar espiritualidade, Foucault (2004, p. 19) mostra que de acordo com essa noção, a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito, ou seja, a verdade não é dada por um simples ato de conhecimento, porque o sujeito enquanto tal não possui capacidade de acesso à verdade, sendo preciso então que o sujeito se modifique, se transforme, se torne outro que não ele mesmo, para ter direito ao acesso à verdade. Ou seja, a verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito, não podendo haver verdade sem conversão ou transformação do sujeito, o que implica que este deve ser arrancado de seu status e da sua condição atual. Tal movimento é feito por eros (amor) ou pelo trabalho de si para consigo que é a ascese. Pelo eros ou pela ascese o sujeito pode ser transformado para se tornar um sujeito capaz de verdade, consequentemente, em razão da verdade, um sujeito completo e transfigurado.
Quando se chega na modernidade, a questão da verdade muda completamente, pois o que permitirá ter acesso à verdade é o conhecimento e somente ele, sem que o ser do sujeito deva ser modificado. Com Descartes basta abrir os olhos, raciocinar com sanidade, de modo correto, mantendo constantemente a linha da evidência, sem jamais afrouxá-la, para alguém ser capaz de obter a verdade – nenhum movimento espiritual é aqui requerido. Seu método é de bem conduzir a razão e encontrar a verdade da ciência (Descartes, 1979), o que significa dizer que é pelos atos do conhecimento que se pode reconhecer a verdade e ter acesso a ela – ainda que haja regras formais de métodos, condições objetivas, etc. Logo, não é o sujeito que deve transformar-se, pois basta que ele seja o que é para ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade que lhe é aberto por sua própria estrutura racional. Assim, podemos dizer que o conhecimento cartesiano não é propriamente de acesso à verdade como o era no mundo da espiritualidade, mas de um domínio de objetos. O processo de conhecimento implicará um domínio de objetos e por isso Foucault conclui que aqui a noção de conhecimento de objeto vem substituir a noção de acesso à verdade (2004, p. 236).
No mundo moderno sustenta-se a ideia de que o sujeito é capaz de verdade cuja condição é o conhecimento e desaparece a ideia espiritual do efeito de retorno da verdade que é capaz de transfigurá-lo. Inclusive, o conhecimento da verdade se abre para essa dimensão indefinida de um progresso cujo benefício se dará no curso da história em um acúmulo de benefício social, mas ela não será capaz de salvar o sujeito. O sujeito moderno é capaz de verdade, mas a verdade não pode salvá-lo.
O discurso científico moderno se afasta definitivamente da ideia de espiritualidade, da transformação do ser do sujeito por ele mesmo. Ou seja, o pensamento e o domínio científico ao estabelecer um outro modo de acesso à verdade, diminuiu o lugar da pratica terapêutica. Não à toa, (e isso não a diminui em nada, ao contrário), a psicanálise não pode ser dita propriamente uma ciência. A psicanálise, na medida em que não é propriamente uma ciência, que não é herdeira dos princípios do cientificismo, está ligada à exigência do cuidado de si, isto é, da espiritualidade que implica a transformação do ser do sujeito por ele próprio. Em Lacan, ensina Foucault, esse tema retorna: há um preço a se pagar para dizer o verdadeiro e há um efeito sobre o sujeito o fato de que ele pode dizer e diz a verdade sobre si próprio (2004, p. 40). Ou seja, na psicanálise ressurge a mais velha inquietação do cuidado de si que constitui a forma mais geral da espiritualidade.
A questão terapêutica, seja ela a do cuidado de si helenista, seja a da prática analítica é: qual elaboração que devo fazer de mim mesmo, qual modificação de ser devo efetuar para poder ter acesso à verdade (ou à verdade do meu desejo)? Neste sentido, a psicanálise tem como pressuposto a ideia de que a verdade do sujeito, a verdade do desejo não está posta ao indivíduo da consciência, ao eu, mas ao contrário, lhe é desconhecido. O eu tem que ser despojado do seu lugar de privilégio para que a análise aconteça e para que se possa ter acesso à verdade do sujeito (Lacan, 1985a) e, por conseguinte sua transformação.
O objeto do cuidado de si
Que objeto é este do qual é preciso se ocupar? O que é este eu? Que forma deve ter este cuidado? O que é este elemento idêntico, sujeito e objeto do cuidado ao mesmo tempo? A alma, a psique. O único elemento que difere do corpo e que se serve da linguagem; a alma enquanto sujeito de ação, de comportamento, de relações, de atitudes. Portanto, o cuidado de si não é um cuidado nem do corpo nem dos bens, nem das aptidões nem das capacidades, mas um cuidado da alma.
Foucault (2004, p. 105) ensina que o termo epimeleia possui quatro famílias de expressão: 1) diz respeito a voltar o olhar sobre si, examinar a si mesmo, estar atento a si mesmo, a vigiar-se; 2) Voltar-se a si no sentido de converter-se, descer ao mais profundo de si e instalar-se em si como um lugar de refúgio; 3) curar-se ou fazer valer seu direito, liberando-se, desobrigando-se, renovando-se e respeitando-se; 4) estabelecer uma relação permanente consigo, podendo ser feliz na presença de si.
Nos dois primeiros séculos de nossa era experimenta-se o auge do cuidado de si que se transforma em uma prática autônoma, tornando-se um princípio coextensivo à vida, à arte de viver, como uma obrigação permanente que deve durar a vida toda. Aparece a ideia no Epicurismo, por exemplo, de que filosofar é ter cuidados com a própria alma, e isso deve ser praticado em todos os momentos da vida, quando se é jovem ou velho. Inicia assim Epicuro sua Carta a Meneceu: “Nenhum jovem deve demorar a filosofar e nenhum velho deve parar de filosofar, pois nunca é cedo demais nem tarde demais para a saúde da alma” (1987, p. 311) . Isso significa que a correção da alma é sempre possível e e em qualquer idade o homem pode iniciar ou realizar sua prática terapêutica. No estoicismo também aparece a ideia de que ocupar-se consigo é ocupação de toda vida e os homens devem encorajar-se sozinhos ou coletivamente na prática de si, o que coloca os filósofos no papel de médico da alma. No diálogo Da tranquilidade da alma, Aneu Sereno reconhece a debilidade da sua alma e pede a Sêneca que nomeie essa doença a fim de se curar dos movimentos inquietos e tumultuosos da alma (2014).
Uma terapêutica da alma
Filon de Alexandria, em seu De Vita Contemplativa, (apud Foucault, 2004, p. 112) fala de um grupo de terapeutas que havia se retirado para as redondezas de Alexandria, que viviam em pequenos jardins onde dispunham de um lugar para morar, com espaço comunitário, que tinha como objetivo ter cuidado com a alma. O verbo therapeuein significa cuidar-se, ser seu próprio servidor e prestar um culto a si mesmo. Uma terapêutica voltada ao espírito, ao passo que a iatriké é a prática dirigida ao corpo (Foucault, 2004, p. 121). E é por isso que Epíteto ensinará em sua escola que o homem deve se tornar médico da sua própria alma (2006, p. 85), sendo pois o estudo da filosofia estoica um meio de curar a alma das doenças provocadas por prazeres, enganos, desejos, falta de cuidado, temores, cobiças, estultices, injustiças e toda ordem de intranquilidade que advém das paixões. Diz Epíteto que “uma escola filosófica é um consultório médico” e não se chega lá com boa saúde, mas ao contrário, com alguma dificuldade e lá se encontra com o médico da alma. (1962, III, XXIII, p. 1018).
Se é verdade que todos os indivíduos, em geral, são capazes de exercer essa prática e não há desqualificação a priori por nascimento ou status, na prática poucos são aqueles que conseguem se ocupar consigo. A falta de coragem, a falta de força, a falta de resistência é o destino da maioria das pessoas que as incapacita para essa prática. Ou seja, embora o princípio do cuidado de si seja formulado como um princípio incondicionado, como regra aplicável e praticável por todos, somente poucos têm, de fato, acesso a ela. “É a relação consigo, a modalidade e o tipo de relação consigo, a maneira como ele mesmo será efetivamente elaborado como objeto dos seus cuidados : é aí que se fará a partilha entre alguns poucos e mais numerosos” (Foucault, 2004, p. 147). O cuidado de si é uma relação que cada sujeito deve estabelecer consigo próprio, tendo a coragem de fazer esse enfrentamento, sabendo que deve abrir mão de um modo de ser preso a crenças e superstições que o atemorizam e nesse trabalho de si para consigo mesmo conquistar a tranquilidade da alma.
A cura da estultícia
A agitação de pensamento, o estado patológico, mórbido em que nos encontramos muitas vezes se chama, diz Sêneca na sua Carta LII a Lucílio, estultícia. É alguma coisa a qual nada se fixa e que em nada se apraz e ninguém está suficientemente em boa saúde ou tem força suficiente para sair sozinho desse estado, para se elevar acima dela, precisando que “alguém lhe estenda a mão”, que o puxe para fora. O estulto é aquele que não começou o percurso da prática de si, sendo pois seu outro polo. O estulto está à mercê de todos os ventos, aberto ao mundo exterior, aquele que deixa entrar em seu espírito todas as representações que o mundo exterior pode lhe oferecer e que aceita essas representações sem examiná-las, sem saber analisar o que representam. Logo, é alguém cuja vontade não é livre, pois é alguém que ao mesmo tempo quer algo e o lastima (Foucault, 2004, p. 163). Assim, sair da estultícia é fazer com, que se possa querer o eu, querer a si mesmo, tender para si como o único objeto que se pode querer livremente (idem, p. 164) e isso precisa ser feito mediante a ajuda do outro. Este outro não é um educador no sentido mais tradicional do termo, alguém que ensina verdades, princípios, mas alguém que o conduzirá para fora, “que lhe estende a mão”, que vai fazer o sujeito sair de onde está, do seu estado, do seu modo de vida, que implicará uma operação no modo de ser do próprio sujeito. Esse será o papel do filósofo – o guia dos homens no que concerne às coisas que convém à sua natureza (idem, p. 166).
Este filósofo leva o sujeito a compreender a necessidade de renunciar a muitas práticas e ideias que considerava como verdadeiras, o que implica um movimento do espírito e, consequentemente, a transformação de sua atitude frente à vida, pois é uma dura necessidade, como diz Epíteto, perceber e recusar o erro (II, XXVI, p. 958).
O verbo grego sózein (salvar) significa livrar-se de um perigo que ameaça, como salvar-se de um naufrágio ou uma doença; guardar ou proteger, manter em torno de algo uma proteção que lhe permite a conservação do jeito que está; conservar ou proteger o pudor, a honra ou até a lembrança; salvar para escapar de uma acusação que sobre ele recai; manter tal qual se estava no estado anterior; assegurar o bem-estar, o bom estado de alguma coisa, alguém ou uma coletividade (Foucault, 2004, p. 223-224).
Aquele que se salva é aquele que está em estado de alerta, de resistência, de domínio e soberania sobre si, o que lhe tornará possível repelir todos os ataques contrários a essa soberania. “Salvar a si mesmo” é escapar a uma dominação, a uma escravidão, a uma coerção pela qual sua independência está ameaçada, e, por conseguinte, sua liberdade também (Foucault, 2004, p. 226). Significa também aceder a bens que não possuía no ponto de partida, favorecer-se com uma espécie de benefício que se faz a si mesmo, do qual se é o próprio operador. Logo, salvar-se remete à própria vida, é uma atividade que se desdobra ao longo da vida e cujo único operador é o próprio sujeito. Os atos de salvação encontram recompensa na ataraxia e na autarquia, tornando-se inacessível às perturbações exteriores e ao encontrar em si mesmo uma satisfação que nada mais necessita senão dele próprio. Nessa salvação helenística ou romana o eu é o agente, o objeto, o instrumento e a finalidade. Salvar-se é ter acesso a si (a salvação do outro só advém a título de um benefício suplementar) (idem, p. 227).
A odisseia terapêutica
Os homens, diferentemente dos animais, não possuem as características, e por conseguinte, as vantagens que os dispensariam de ocupar-se consigo mesmos. Para preencher a diferença que o opõe aos animais, o homem deve tomar-se como objeto de cuidado interrogando-se sobre o que convém ou não fazer, o que depende ou não de si. Tendo, na natureza um lugar desvantajoso, lhe é imperativo cuidar de si para remediar as deficiências advindas da equação desvantajosa que lhe é própria, entre necessidade e meios de satisfação dessa necessidade. Ou seja, o homem, dada a sua precária natureza, deixa, como ensina a psicanálise, transparecer a falta fundamental, cujo sentido subjetivo é o de uma perda que não pode ser suprida por nenhum cuidado, como diz Lacan, uma perda ou separação que nenhum cuidado materno pode compensar (1978, p. 19). Assim, a condição de insuficiência psicomotora do bebê é o estatuto do próprio funcionamento psíquico, isto é, o desamparo é a condição própria da psique humana e, portanto, daí advém a necessidade do cuidado de si e da prática terapêutica que, como diz Epíteto, “não é tarefa de uma hora ou um dia” (1962, I, 11, 40, p. 837). Há uma impossibilidade do aparelho psíquico em apreender, delimitar e satisfazer, de uma vez por todas, os seus desejos, sem falar da impotência do homem frente à natureza e à morte.
O caminho da conversão[1] helenística, bem como da prática analítica, pressupõe uma mutação do eu, uma transfiguração súbita e radical de si; uma fuga, um modo de escapar de si. Aliás, é assim que Sêneca inicia a Carta 6: “Sinto, meu caro Lucílio, que não só estou me corrigindo; além disso, me estou transfigurando”. Ou seja, o caminho do cuidado de si não é propriamente um caminho de correção, como também não é simplesmente uma prática pedagógica, mas uma transfiguração, uma conversão, um rompimento do sujeito com aquilo que o cerca, libertando-o de crenças e tolices que o aprisionam em uma existência diminuída. Nesse movimento de se ocupar consigo, existe a necessidade de expulsar os julgamentos errôneos que possamos ter na mente, libertar-se de elementos que precisam ser mudados, porque, do contrário, seríamos obrigados a nos censurar, nos combater e nos arrepender (Foucault, 2004, p. 264) e aqui a questão não é o arrependimento, assim como no trabalho analítico este não deve ser a questão do analisando. Há que se ter o eu ou o desejo ante os olhos, ir em direção ao eu como quem vai em direção a uma meta e o movimento pela qual nos dirigimos para o eu é ao mesmo tempo um movimento pelo qual a ele volvemos, prestando atenção a todas as imagens e representações que podem entrar no espírito (idem, p. 263), representações essas que, muitas vezes, escravizam o sujeito em suas dores e em seus sofrimentos psíquicos.
Como já foi dito, o cuidado de si assume a forma de um principio geral e incondicionado, não apenas válido para um momento determinado da existência, mas sim uma regra coextensiva à vida. Esse movimento do sujeito em relação a si mesmo não significa apenas prestar atenção a si mesmo, ficar vigilante sobre si, mas precisamente de um deslocamento do sujeito em relação a si mesmo. O sujeito deve ir em direção a alguma coisa que é ele próprio e essa trajetória em direção a si sempre terá algo de odisseico. A própria trajetória é perigosa, pois nos expomos a riscos que podem comprometer nosso itinerário e até mesmo nos extraviar. Está aqui a primeira fórmula do que se chamará psicologia ou análise da psykhe. Uma arte em que se formula a verdade do sujeito (Foucault, 2004, p. 305-307).
Nesse processo é preciso dissipar ilusões interiores, reconhecer as tentações que se forma no interior da alma e do coração e frustar as seduções de que podemos ser vítimas. É um retorno a si não para encontrar um verdade que contemplara e o ser que ele é; retorna-se a si para, de certo modo, renunciar a si, para se construir outro, dado que outras formas de vida são possíveis e outras formas de ser também são possíveis. E, sobretudo, a prática do cuidado de si deve trazer uma nova forma de vida em que o sujeito se liberta, em que deixa de ser, como diz Sêneca, escravo de si mesmo. Diz ele: “livre é o que não é escravo de si mesmo, o que rechaçou essa servidão constante, que não admite resistência e pesa sobre nós dia e noite. Aquele que é escravo de si mesmo sofre o jugo mais pesado de todos” (1952, p. 576). Logo, a escravidão a si é aquilo contra o que terapeuticamente devemos lutar, sendo ela a mais pesada de todas as servidões, que pesa sobre nós sem cessar e sem descanso.
A transformação operada pelo cuidado de si não se dará em outro mundo, em outra vida, em oura realidade, mas nessa mesma vida, a partir de um movimento que o sujeito opera sobre si mesmo e efetua, neste mundo mesmo em que vivemos, a conquista da liberdade, aprendendo a desprezar o que seria de caráter aprisionante e limitador para uma existência, incluindo a crença que a riqueza, a fama, as honras e mesmo a saúde seriam em si bens a se buscar e cultivar. Ou seja, é preciso filtrar as representações que chegam a nós, medir seu valor, se questionando o quanto delas necessito e o quanto elas contribuem para minha virtude, isto é, para o bem estar que busco constituir como regra de vida, aprendendo, por vezes, a desprezar as coisas ou mesmo as reduzindo ao nada que efetivamente são. Assim, essa prática espiritual implicará um deslocamento de si, posto que não é permanecendo onde está que o sujeito pode saber do modo que convém.
O papel do outro
Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é indispensável. São três tipos de exemplos dados por Foucault (2004, p. 158): a mestria de exemplo, dos heróis, dos anciãos; a mestria de competência, a simples transmissão de conhecimento, princípios, aptidões, aos mais jovens e a mestria socrática, do embaraço e da descoberta, exercida através do diálogo, que se exerce sobre um jogo de ignorância e memória. Como fazer com que o jovem saia de sua ignorância? A ignorância, por si própria, não é capaz de sair dela mesma, logo é necessário o outro.
Quando se trata de transformar os maus hábitos, de corrigir-se, será necessário um mestre, pois o sujeito não pode ser operador de sua própria transformação, uma vez que a ignorância não é operadora do saber. Ocorre que o problema não é a ignorância que será sanada com um saber que o mestre lhe oferece. Em verdade, o sujeito é menos ignorante do que mal formado, deformado, vicioso, preso a maus hábitos e por isso o sujeito não tem que seguir um saber substituto de sua ignorância, mas sim deve se encaminhar para um status de sujeito que ele jamais conheceu em momento algum de sua existência . “Há que substituir o não-sujeito pelo status de sujeito, definido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que constituir-se como sujeito e é nisto que o outro deve intervir” (Foucault, 2004, p. 160).
Há que substituir o que se é pelo sujeito definido pela plenitude da relação de si para consigo. Ou seja, na prática do cuidado de si o indivíduo se constitui como sujeito e é nisto que o outro deve intervir. Aqui o mestre não é o mestre da memória, não é aquele que sabendo o que o outro sabe, lhe transmite. O mestre é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito.
Na psicanálise, inclusive, não cabe ao analista agir por sugestão, persuadindo o paciente das coisas que crê o analista, mas sendo o desejo aquilo mediante o qual o sujeito se situa, cabe ao analista ao interpretar o desejo, “restaurar aquilo a que o sujeito não pode ter acesso por si só, a saber, o afeto que designa seu ser e que se situa no nível do desejo que lhe é própria” (Lacan, 2016, p. 159). Ou seja, analista não deve ser o tagarela, aquele que não sabe conter suas intervenções, porque não é papel do analista dirigir o paciente, mas ao contrário, a partir de sua intervenção mínima, de modo a não ferir a regra da associação livre, deixar a palavra dizer o que não é óbvio, o que não é visível, o que está ocultado do sujeito em razão de seus “maus hábitos” psíquicos.
O método analítico e regra fundamental da análise é a talking cure e é por meio desse método de uma fala livre, de uma palavra que vai buscar ser liberta que se poderá operar mudanças mentais na pessoa que busca a transformação. Diz Freud: “agora começamos também a compreender a “mágica” das palavras. As palavras são o mais importante meio pelo qual um homem busca influenciar outro; as palavras são um bom método de produzir mudanças mentais na pessoa a quem são dirigidas. … a mágica das palavras pode eliminar os sintomas de doenças, e especialmente daqueles que se fundam em estados mentais” (1905b, p. 306).
O analista enquanto Mestre é apenas um sujeito suposto saber e não efetivamente um sujeito que detém o saber. “O analista sabe que o sujeito sabe (inconscientemente) sem saber (conscientemente) que sabe (Jorge, 2022, p. 55). E, portanto, tudo o que o analista disser deve estar associado à própria fala do analisando e deve remeter à sua história.
A esse respeito, Freud faz uma distinção entre pintura e escultura, que remete a Leonardo Da Vinci, dizendo que a primeira opera por acréscimo, enquanto a segunda por subtração. Já a prática analítica “não procura acrescentar nem introduzir nada de novo, mas a retirar algo, a fazer aflorar alguma coisa” (1905a, 271). Tal como a espiritualidade, esse novo que aflora, que vem exclusivamente do analisando e não do analista que deve se diminuir nessa experiência, é o material de análise que está trabalhado no intuito de produzir no sujeito uma mudança de lugar de onde se encontra.
A importância da escuta
“A escuta será o primeiro momento deste procedimento pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e recolhida como se deve, irá de algum modo entranhar-se no sujeito, incrustar-se nele… e constituir assim a matriz do ethos” (Foucault, 2004, p. 402). A audição, continua a nos ensinar Foucault, o ouvir, possui uma dupla característica, posto que é, ao mesmo tempo, o mais pathetikós (o mais passivo) e o mais logikós de todos os sentidos. “Na audição a alma encontra-se passiva diante do mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advém e que podem surpreendê-la” (idem, p. 403). É porque pode-se recusar a olhar o mundo, pode-se não aceitar a degustação de um produto, pode-se recusar o toque, mas não se pode recusar a ouvir, não se pode fechar os ouvidos por completo. Isso implica que há uma passividade do sujeito em relação ao ouvir mais do que em relação a qualquer outro sentido que admitem alguma resistência por parte do sujeito. Além disso, o ouvir é evidentemente mais capaz de que qualquer outro sentido de enfeitiçar a alma, recebendo e sendo sensível à lisonja das palavras, aos efeitos da retórica, como os sofistas foram mestres em ensinar. Diz Górgias em seu elogio de Helena: “O discurso é um senhor soberano, que com um corpo diminuto e quase imperceptível leva a cabo ações divinas… por intermédio das palavras, o espírito deixa-se afetar por um sentimento especial… a força da palavra… fascina-o, convence-o e transforma-o por encantamento” (1993, p. 44).
Lembremos também de Ulisses (Homero, 2011) que venceu todos os sentidos, dominou a si inteiramente, recusou todos os prazeres, mas ao encontrar as sereias, nem sua coragem em seu domínio o impedia de ser vítima delas e teve que tapar as orelhas com cera e atar-se ao mastro do navio porque reconhece as característica da escuta acima mencionadas, isto é, o seu traço pathetikos. Nessa passividade, é imperativo que algum discurso, algum significante, acabe penetrando o espírito de quem ouve e isso sempre há de produzir alguma modificação na alma. Há sempre um empreendimento terapêutico, que beneficia até os desatentos. Como diz Sêneca, “Aquele que anda sob o sol, embora não ande não com esse propósito, deve ser queimado pelo sol. Aquele que frequenta a loja de perfumistas e permanece mesmo por pouco tempo, levará com ele o cheiro do lugar. E aquele que segue um filósofo é obrigado a obter algum benefício disso, o que o ajudará mesmo que seja negligente”.
Daí a necessidade de uma certa arte ou técnica, uma certa maneira conveniente de escutar. Para que as verdades cheguem à alma do ouvinte é preciso que sejam pronunciadas e duas coisas são necessárias: a lexis (a maneira de dizer), utilizando uma certa variedade e fineza nos termos, pois não se pode transmitir as coisas sem escolher os termos que as designam, sem certas opções estilísticas semânticas que impedem que a própria ideia seja transmitida. O risco é o ouvinte permanecer nos elementos da lexis o do vocabulário, não dirigindo a atenção para onde é preciso, porque a audição está sempre submetida a contra-sensos e a faltas de atenção (Foucault, 2004, p. 407).
Quando se acaba de ouvir uma lição, é preciso cercar o que se ouviu com uma coroa de silêncio e não reconverter de imediato aquilo que se ouviu em discurso. É preciso retê-lo, conservá-lo e evitar reconvertê-lo de imediato em palavras, pois no tagarela o ouvido não se comunica diretamente com a alma e sim com a língua, de modo que assim que uma coisa acaba de ser dita, ela passa imediatamente para a língua e então se perde, não produzindo nenhum efeito sobre a alma – o tagarela é sempre um recipiente vazio (idem, p. 411).
Após ouvir, não se deve se colocar imediatamente a discutir. Deve-se recolher, guardar o silêncio para melhor gravar o que se ouviu e fazer um rápido exame de si mesmo após a lição que se ouviu, lançar um rápido olhar sobre si mesmo para ver como se está, para examinar o que se ouviu e aprendeu para ver até que ponto foi possível aperfeiçoar-se (idem, p. 421).
Na análise, o paciente antes de ir escutar o outro, vai escutar a si mesmo, muitas vezes levando o paciente à surpresa de suas próprias sínteses e, por conseguinte, com o caráter imprevisível da verdade do desejo. É escutando a si mesmo que o sujeito se desinveste de si e, por essa razão, cuida de si. A escuta é, aliás, a única arma que o analista dispõe, e tal escuta não deve privilegiar nada nem se fixar em nenhum elemento em particular e, sobretudo, tendo muita prudência para não antecipar verdades que o sujeito ainda não esteja em condições de assimilar.
O analista como parrhesiasta
Para transmitir o discurso verdadeiro é preciso ter a parrhesía, isto é, a qualidade para transmitir a franqueza, a liberdade da palavra, o discurso verdadeiro, de modo a se dizer o que se tem a dizer, da maneira como acredita ser preciso. A parrhesía é a forma própria do discurso filosófico, uma vez que este não pode admitir o fingimento, a artificialidade ou seja um discurso que tenha por objetivo a persuasão sedutora. Nesse sentido, a parrhesía será confrontada com duas qualidades discursivas a serem evitadas: a lisonja e a retórica. A primeira é claramente inimiga da fala franca, posto que tem por objetivo a adulação do ouvinte; já a retórica, cujo objetivo maior é a vitória no debate, admite que se diga o que não se pensa e o que não se crê. Ao ter como intenção primeira vencer o debate, abre-se mão da verdade em nome da verossimilhança e da persuasão.
Sêneca em sua obra Da ira (2014) diz que “devemos, pois, manter a bajulação bem longe da juventude: os jovens devem ouvir a verdade” (II, XXI, 8). A lisonja pode se constituir como uma maneira do inferior ganhar o poder, os favores e a benevolência dos superiores, por meio do o logos. A fala lisonjeira, aduladora, pode, inclusive levar o inferior a obter poder maior que o superior, por conta de uma fala enganadora que faz o interlocutor se crer com maiores qualidades do que efetivamente tem. O lisonjeiro dirige ao outro um discurso mentiroso com o qual o superior se verá com mais qualidades do que realmente tem, o que faz com que se impeça ao sujeito se conhecer tal como verdadeiramente é e, portanto, que se ocupe e cuide de si como convém. Em resumo, a lisonja não é um caminho terapêutico ou efetivo para o cuidado de si, uma vez que torna impotente e cego aquele a quem se dirige (Foucault, 2004, p. 454-455).
Como define Platão no Fedro, o lisonjeiro é horrível monstro e traz grandes prejuízos, embora seja atrativo e encantador (2001, 240, p. 72). Ocorre que muitos homens são movidos pelo amor de si mesmo ou pelo desgosto de si, se preocupando com coisas que não valem a pena. São atraídos pelo deleite, pelos prazeres com os quais se busca agradar a si mesmo e jamais tem consigo uma relação plena, adequada e suficiente que faz com que não se sintam dependentes de nada, nem dos infortúnios ameaçadores, nem dos prazeres que podem encontrar (Foucault, 2004, p. 456-457). Ora, será exatamente diante desta dificuldade ou, se quiser, desta fraqueza que os perigos da lisonja se fazem mais presentes e aí reside a armadilha de um discurso mentiroso, sedutor e, por conseguinte, prejudicial àquele que ouve.
A parrhesía, será pois, a anti-lisonja (idem, p. 458), a fala que pretende estabelecer com o outro uma relação de autonomia e independência. Assim, com a parrhesía não se quer manter aquele com quem se fala na dependência, mas fazer com que em dado momento aquele a quem se endereça a fala se encontre em uma situação que não dependa mais do discurso do outro, porque este foi verdadeiro. Inclusive, quem ouve a fala franca, interiorizando-a, pode se dispensar da relação com o outro, promovendo assim sua autonomia.
A parrhesia é a transmissão nua da própria verdade, que assegura o trânsito do discurso verdadeiro de quem já o possui para quem deve recebê-lo, para quem deve dele impregnar-se, para utilizá-lo e subjetivá-lo. Mas o que principalmente define a parrhesia é que ela não é definida tanto pelo conteúdo, mas sim as regras de prudência, de habilidade, as condições que fazem com se deva dizer a verdade em tal momento, sob tal forma, em tais condições, a tal indivíduo na medida em que ele for capaz de recebe-la da melhor forma no momento em que estiver. Nesse sentido, o que define suas regras é o kairós, o momento oportuno para dizer a verdade (idem, p. 463-464).
A parrhesia não age sobre o outro para lhe exigir algo, como na retórica. Não é para dirigir ou inclinar o outro a fazer alguma coisa, não possui caráter psicagógico, isto é, não visa conduzir a alma do auditório para o lugar que convém ao orador, mas fundamentalmente para fazer com que o ouvinte possa, por si mesmo, constituir uma relação de soberania consigo mesmo e com isso encontrar o caminho da verdade de sua natureza. No processo analítico, de modo semelhante, não cabe ao analista ser o lisonjeiro, aquele que adula o paciente, elogia seus atos e pensamentos e que afaga seu ego. Longe de ser um lisonjeiro, o analista deve buscar, tanto quanto possível a fala franca revelada no próprio discurso do analisando, mesmo que correndo o risco de ferir ou irritar aquele que ouve, tal como caracteriza os parrhesiastas. Como diz Lacan: “não podemos pensar na experiência analítica como um jogo, um engodo, uma manigância ilusória, uma sugestão. Ele coloca em causa a palavra plena” (1979, p. 129).
“O dizer a verdade do parresiasta … aponta para indivíduos e situações a fim de dizer o que estes são na realidade, dizer aos indivíduos a verdade deles mesmos que se esconde a seus próprios olhos, revelar sua situação atual, seu caráter, seus defeitos, o valor da sua conduta e as consequências eventuais da decisão que eles viessem a tomar. O parresiasta não revela a seu interlocutor o que é. Ele desvela ou o ajuda a reconhecer o que ele, interlocutor, é” (Foucault, 2011, p. 18-19).
Conclusão
O cuidado de si, no mundo helenístico se torna uma prática fundamental na existência que visa a modificação do sujeito. A psicanálise é também uma prática fundamental na existência que visa a modificação do sujeito, ou seja, por suas próprias vias ela faz reverberar a ética do cuidado de si para que se abra ao sujeito a possibilidade de expansão do seu ser, ser que pode estar aprisionado em doenças da alma, enrijecendo suas ideias e crenças. O trabalho terapêutico visa, ao menos, tornar flexível esses padrões enrijecidos, sobretudo trazendo uma face da verdade que não é familiar ao sujeito à primeira vista, mas que será fundamental para sua transformação como sujeito, realizado a ética que o helenismo professa. Despertar o outro, o outro que também sou eu, não por uma demonstração ou por meios da epistemologia moderna, mas pelo processo de fala e escuta, capital para a modificação de nossa psiqué.
Referências Bibliográficas
Jorge, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Volume 3: A prática analítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.4
Descartes, René. Discurso do Método. In: ______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Epicuro. Carta a Meneceu. In: Laêrtios, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 1987.
Epiteto. A arte de viver. Rio de. Janeiro: Sextante, 2006.
Épictècto. Entretiens. In: Les Stoiciens. Paris: Galimmard, 1962.
Foucault, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Freud, Sigmund. Sobre a Psicoterapia (1905) in ______. Edição Standard das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
Freud, Sigmund. Tratamento psíquico ou anímico (1905) in ______. Edição Standard das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
Górgias. O elogio de Helena. In: ______. Testemunhos e fragmentos. Lisboa: Colibri, 1993.
Homero. A odisseia. São Paulo: 34, 2011.
Lacan. Jacques. Seminário 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
______. A família. Lisboa: Assírio e Alvim, 1978.
______. Seminário 6. O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
Platão. Fedro. São Pailo: Martin Claret, 2001.
Sêneca. Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma. São Paulo: Penguin-Cia das Letras, 2014.
______. Carta VI. In: “https://www.estoico.com.br/984/lii-escolhendo-nossos-professores/“. Acesso em: 22 fev. 2025.
______. Carta LII. In: “https://www.estoico.com.br/984/lii-escolhendo-nossos-professores/“. Acesso em: 22 fev. 2025.
______. Cuestiones naturales in ______. Tratados filosóficos. Buenos Aires: El Ateneo, 1952.
______. Cartas de um estoico. Um guia para a vida feliz. Volume III. São Paulo: Montecristo, 2017.
[1] Foucault ensina que tanto em Epíteto quanto em Marco Aurélio encontra-se a expressão epistréphein pròs heautón, que quer dizer voltar-se a si, converter-se a si. 2004, p. 255.