O legado de Hipócrates: breve ensaio sobre a ressonância de um ‘patrimônio’ da medicina
Para comemorar os 200 anos de existência da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 2008 foi realizada uma cerimônia de plantio da “Árvore de Hipócrates” (Platanus orientalis) em uma das entradas do Centro de Ciências da Saúde da universidade. Segundo a tradição, era sob a sombra desta árvore, localizada na ilha grega de Cós, que Hipócrates ensinava medicina a seus discípulos. Considerada a árvore mais antiga da Europa, dela extraiu-se a muda oferecida à UFRJ. Estavam presentes na solenidade o decano da instituição, o diretor da Faculdade de Medicina, o prefeito e o secretário de turismo da ilha de Cós, o cônsul da Grécia no Rio de Janeiro e um padre da Igreja Ortodoxa Grega que abençoou a muda com uma oração. Agradecendo a transmissão da muda, o diretor da Faculdade de Medicina comparou o processo de ensino e aprendizado da medicina ao desenvolvimento “sólido e progressivo” de uma árvore: “Suas raízes nos remetem aos mestres do passado e a todos aqueles que de alguma forma colaboraram para que hoje estivéssemos aqui. Já suas mudas devem permitir no futuro a perpetuação da excelência que hoje adquirimos. Espero que através do Platanus orientalis, alunos e professores possam se sentir parte de uma unidade secular, fiel à prática e ao ensino de uma Medicina humana e equilibrada. Como uma árvore, respaldada em seu tronco por uma elevada consciência moral e em sua copa pelo respeito ao indivíduo e à sociedade”. Satisfeito com o convite, o prefeito da ilha de Cós diz ter sido um grande prazer participar de tal solenidade especialmente por se tratar da transmissão “de um pedaço da nossa terra e história. Ainda mais satisfatório foi percebermos que, nos dias de hoje, existem pessoas que comungam e sentem a moral e a ética de Hipócrates. Do fundo do nosso coração, desejamos que, debaixo desta árvore, professores possam ensinar balizados em princípios do amor ao próximo e da ética profissional”.
Hipócrates, considerado o “pai da medicina ocidental”, nasceu em 460 a.C., na ilha de Cós, e cresceu no interior de uma família preocupada com a transmissão dos valores e ensinamentos do que mais tarde viriam a ser definidos como medicina. Seguindo a tradição grega de repassar os conhecimentos médicos à linhagem masculina[1], Hipócrates foi formado pelo pai, Heraclides, e o avô, Hipócrates I, ambos médicos “asclepíades”, isto é, seguidores e descendentes diretos de Asclépio (ou Esculápio), o deus da medicina e da cura na mitologia greco-romana. Com o tempo, Hipócrates formou uma série de jovens aprendizes, ensinando inclusive àqueles que não possuíam vínculos consanguíneos e de parentesco. Tratava-se, sobretudo, da transmissão (oral e escrita) de um saber técnico (uma techné), do ensino de uma arte que exigia uma formação teórica, prática e itinerante (Rebollo, 2006). Hipócrates e seus discípulos foram responsáveis por organizar aquilo que ficou conhecido como Corpus hippocraticum, um conjunto mais ou menos sistematizado de tratados que serviu de fonte de inspiração teórica e de modelo de atuação e conduta médica por vários séculos na história do Ocidente. Nele encontramos escritos sobre a arte médica, sobre a conduta ética e moral, sobre fisiologia, anatomia e patologia, sobre práticas cirúrgicas, terapêuticas, dietéticas e etc. O famoso “Juramento de Hipócrates” (anexo 1) pronunciado todos os anos por inúmeros estudantes de medicina faz parte desse compêndio de textos e é sobre ele que voltaremos a nossa atenção nesse instante.
O Juramento de Hipócrates
Em um levantamento realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública foi constatado que todos os cursos de medicina do Brasil que responderam ao questionário utilizavam algum tipo de juramento ao final da formação acadêmica e, ao contrário do que é visto em outros países, os textos utilizados são baseados, em sua grande maioria (91,7%), no Juramento de Hipócrates (Bitencourt et al, 2007). Nesses outros países, sobretudo nos Estados Unidos, Canadá e continente europeu, estão presentes versões “modernas”, “atualizadas” ou “simplificadas” do juramento, consideradas mais “adequadas” para a contemporaneidade na medida em que substituem “um juramento revestido de caráter religioso por compromissos que não somente os médicos, mas toda a sociedade humana reconheça como autênticos” (ibid, p. 35). A Declaração de Genebra, criada em 1948 e utilizada em alguns países durante as cerimônias de formatura dos novos médicos, tem a seguinte redação:
Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra.
Interessante notar que mesmo após a criação desta e de outras declarações, códigos e regulamentos o Juramento de Hipócrates continua a ser o mais utilizado nas cerimônias de formatura das faculdades de medicina no Brasil, fato que gera certas controvérsias no interior da própria classe médica brasileira. Todavia, é fundamental ressaltar o esforço de “purificação” ou de “eliminação das ambiguidades” (Gonçalves, 2005) apresentado em tal declaração que procurou afastar de seu texto “modernizado” qualquer origem mágico-religiosa ou quaisquer sentidos cosmológicos e metafísicos atribuídos à versão “clássica”. Assim, o compromisso com os deuses do Olimpo sai de cena para dar lugar, por exemplo, aos princípios de liberdade religiosa e igualdade racial.
Certos médicos, como o já falecido Dr. Joffre Marcondes de Rezende, ex-professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás e antigo membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina, consideram o Juramento de Hipócrates um “patrimônio” que não deve ser “atualizado” nem “modernizado”. Em suas palavras “o Juramento de Hipócrates é uma obra de arte e sabedoria, só comparável às mais altas criações do espírito humano e, por isso mesmo, deve ser considerado patrimônio da humanidade e permanecer intocável, como um marco na história da medicina” (Rezende, 2009, n.p). Apoiado em uma pesquisa por amostragem realizada em 1984 com médicos brasileiros, onde 80% destes disseram ser contrários a alteração do Juramento, Joffre Rezende concorda com a maioria ao dizer que o Juramento de Hipócrates não deve ser modificado, mas sim “complementado por outros instrumentos hábeis, como Declarações, Regulamentos e Códigos de Deontologia Médica”.
Levar a sério a proposta de tratar o Juramento de Hipócrates como um “patrimônio” nos possibilita revelar as ambiguidades inerentes a esta categoria, tal como proposto por José Reginaldo Gonçalves (2005). “Liminarmente situado entre o passado e o presente, entre o cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivíduos, entre a história e a memória” (Gonçalves, 2005, p. 20), o Juramento também é, segundo o médico e professor norte-americano Edmund Pellegrino (2002 apud Bitencourt et al, 2007, p. 36), “uma lembrança da continuidade de uma profissão cujas raízes estão na Antiguidade e contribui para o reconhecimento de que os médicos estarão engajados com valores que os distanciam do comércio, indústria e contratos”. Fica evidente, nesse sentido, o poder de “ressonância” que o Juramento (e o próprio Hipócrates) possui na medida em que ele parece ser capaz de “evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu” (Greenblatt, 1991 apud Gonçalves, 2005, p. 19)[2]. Passados 25 séculos, o Juramento de Hipócrates segue sendo alvo de controvérsias. Vejamos o que o famoso médico Dráuzio Varella tem a dizer sobre o tema:
Está na hora de acabar com o ritual do juramento de Hipócrates nas cerimônias de formatura. Para que manter essa tradição? Os advogados, por acaso, juram que defenderão a Justiça? Engenheiros e arquitetos precisam jurar construir casas que não caiam? O juramento de Hipócrates está tão antiquado que soa ridículo ouvir jovens recém-formados repetirem-no feito papagaios. Que me desculpem os tradicionalistas, mas faz sentido jurar por Apolo, Asclépios, Higeia e Panaceia, não fazer sexo com escravos quando entramos na casa de nossos pacientes? Ou não usar o bisturi, mesmo em casos de cálculos nos rins? Ou prometer ensinar nossa profissão gratuitamente aos filhos de nossos professores, como Hipócrates preconizava? Por que não estender esse privilégio a todos os que estiverem dispostos a estudar? Existe visão mais corporativista? (…) Por outro lado, aos olhos da sociedade, a mera existência de um juramento solene dá a impressão de que somos sacerdotes e de que devemos dedicação total aos que nos procuram, sem manifestarmos preocupação com aspectos materiais como as condições de trabalho ou a remuneração pelos serviços prestados, para a felicidade de tantos empresários gananciosos. (Varella, 2011, n.p)
No entanto, curiosamente, Dráuzio Varella encerra o seu manifesto tecendo elogios à medicina conforme entendida e praticada por Hipócrates:
O exercício da medicina envolve a arte de ouvir as pessoas, de observá-las, de examiná-las, interpretar as palavras e de discutir com elas as opções mais adequadas. […] Nessa área, sim, temos muito a aprender com os velhos mestres. Hipócrates acreditava que a arte da medicina está em observar. Dizia que a fama de um médico depende mais de sua capacidade de fazer prognósticos do que de fazer diagnósticos. Queria ensinar que ao paciente interessa mais saber o que lhe acontecerá nos dias seguintes do que o nome de sua doença. […] Curar é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano. (Varella, 2011, n.p)
O médico clínico-geral Alexandre Feldman, autor de vários livros e difusor no Brasil da ideia de uma “Medicina do Estilo de Vida”, designando uma vertente médica que prioriza as mudanças de hábitos e estilos de vida para a prevenção de doenças e recuperação da saúde, também apresentou uma interessante reflexão sobre o Juramento de Hipócrates. Percorrendo os principais pontos do Juramento, Feldman inicia a análise introduzindo o leitor no universo de deuses e deusas que povoavam a Grécia antiga, esclarecendo sobre os papeis desempenhados por Apolo, Esculápio (ou Asclépio), Higeia e Panaceia e a relação destes com o exercício da medicina, com a busca pela cura e equilíbrio, com a necessidade de prevenção e higiene. Assim, ele interroga:
Será que isso [jurar perante os deuses] não possui um forte significado simbólico até os dias de hoje, conectando-nos com as ‘forças’ (até hoje não completamente explicadas) que governam nosso bem mais sagrado – a nossa saúde? Será que isso não representa um compromisso solene com toda herança de nossa civilização e conhecimento? (Feldman, 2009, n.p)
Prosseguindo a análise, Feldman chama a atenção para um termo, em grego, presente no Juramento. Trata-se da diaita que, ao contrário do significado moderno para a palavra dieta, não diz respeito somente aos hábitos alimentares, mas sim às “orientações de estilo de vida”, ou seja, aos fatores ambientais e comportamentais que incluem, entre outras coisas, “exercícios físicos, hábitos de trabalho, saúde mental, comportamento sexual, padrões de sono, higiene corporal etc.”.
Na minha opinião [acrescenta Feldman], infelizmente, a maioria dos médicos está cada vez mais especializada em doenças, e menos em saúde! Mais que isso, as doenças estão sendo encaradas como um estado de “falta de droga”: Enxaqueca é “falta de remédio (droga) para enxaqueca”. Pressão alta é “falta de remédio para pressão”, e assim por diante. Infelizmente, o que eu vejo é um mundo cada vez mais doente, tomando cada vez mais drogas. Prova disso é que muitas doenças que antes ocorriam quase que exclusivamente em indivíduos mais velhos, estão ocorrendo em pessoas cada vez mais jovens. É claro que as drogas, a meu ver, podem, em certos casos, possuir grandes benefícios (apesar de não curar o paciente). Mas a aplicabilidade de cada um desses casos deve, na minha opinião, ser analisada à luz do atualíssimo Juramento de Hipócrates. (Feldman, 2009, n.p)
Encerrando o texto, Feldman convida o leitor para uma reflexão sobre seus próprios hábitos e estilos de vida e lança as seguintes afirmações: nenhum remédio ou médico é capaz de curar uma doença, mas apenas aliviar seus sintomas; a cura da doença existe, mas se encontra dentro de nós mesmos e não fora; nosso organismo não pode ser dividido em infinitos compartimentos, pois as doenças são resultado de um desequilíbrio de todo o organismo. Conforme veremos a seguir, a aproximação desta abordagem e deste olhar sobre a saúde humana com a teoria médica formulada por Hipócrates parecem ser evidentes. Antes disso, contudo, gostaria de levantar, brevemente, algumas questões a partir das duas reflexões acima apresentadas.
Alguns ruídos presentes no Juramento de Hipócrates parecem incomodar Dráuzio Varella. Qualificando o texto como “antiquado” Dráuzio tenta “limpar” ou “purificar” a sua profissão (palavra que, por sinal, ele emprega com bastante frequência) de qualquer ranço religioso ou cosmológico. Disso deriva a preocupação em rejeitar, de maneira veemente, qualquer aproximação (e mesmo confusão) com o ideal de sacerdócio que muitas vezes caracteriza a atividade médica. Por outro lado, e nisso o argumento de Dráuzio coincide com o de Alexandre Feldman, a forma como Hipócrates entendia a doença e lidava com seus pacientes é valorizada. Assim, “aliviar o sofrimento humano”, e não necessariamente encontrar a cura ou o diagnóstico, é a tarefa primordial do médico. Enfatizando esse aspecto perceberemos, diria Feldman, a “atualidade” do texto hipocrático. Pois, mais do que um conjunto de doenças isoladas, o dado a ser observado e valorizado é o próprio ser humano pensado enquanto totalidade. Totalidade esta que, no entanto, ainda não foi “completamente explicada” e que, talvez por isso mesmo, dependa de certas “forças divinas” para sua maior compreensão. Aqui as ambiguidades ganham expressão, religiosidade e medicina parecem se misturar e o Juramento de Hipócrates torna-se o mediador desse encontro.
A capacidade de evocar o passado e, desse modo, estabelecer uma “continuidade entre passado, presente e futuro” (Gonçalves, 2005, p. 31) é algo que caracteriza o conceito de patrimônio e lhe assegura uma “função mediadora”. Nesse sentido, o Juramento representa a “herança de uma civilização”, as “raízes” e a “antiguidade” de uma profissão. Do mesmo modo, para retomar a situação narrada no início deste ensaio, a Árvore de Hipócrates também faz essa mediação material, pois nos remete, como afirma o diretor da Faculdade de Medicina, “aos mestres do passado e a todos aqueles que de alguma forma colaboraram para que hoje estivéssemos aqui”. Suas raízes fincadas em um passado mitológico e suas mudas “herdadas” e trazidas de uma terra (espacial e temporalmente) distante conectam passado, presente e futuro e garantem, dessa forma, “a perpetuação da excelência que hoje adquirimos” e a transmissão dos princípios éticos e morais de Hipócrates. É curioso como, na situação descrita, uma certa atmosfera religiosa parece envolver os convidados presentes naquele contexto, seja por meio das orações realizadas pelo padre da Igreja Ortodoxa Grega, seja pelo tom moralista e mesmo evangélico presente na fala do prefeito da ilha de Cós, ou ainda, através da invocação de uma ordem ou sentido cosmológico que aquela árvore é capaz de presentificar. Sendo assim, a ambiguidade parece ser, de fato, uma caraterística marcante do legado hipocrático, e nisso reside seu poder de ressonância.
A medicina dos humores
Ao investigar os guias médicos e livros de medicina do século XVIII e XIX e os compêndios de história da medicina, a arqueóloga Tânia Andrade Lima constatou “um forte resíduo, ou mais propriamente uma sobrevivência, em pleno século XIX, da teoria humoral de Hipócrates, a antiga medicina dos humores” (Lima, 1996, p. 46). Nos registros arqueológicos da cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, a pesquisadora encontrou uma série de objetos de uso cotidiano que funcionavam como estimulantes para a excreção ou evacuação de fluidos corporais por diferentes orifícios e cavidades. Tais práticas cotidianas, típicas do século XIX, são indícios, segundo a autora, da forte presença da teoria humoral na mentalidade da população de uma época.
Conforme aponta a filósofa e historiadora da ciência Regina Rebollo (2006), na base da medicina hipocrática está a ideia de physis. A physis do corpo é compreendida e realizada pela physis universal. Esta última fornece a forma do corpo (eidos), suas virtudes e propriedades (dynameis). A physis é o princípio que organiza o corpo, projetando sobre ele as qualidades da harmonia, da ordem e da beleza necessárias à sua composição morfológica e funcional. Qualquer desequilíbrio das propriedades que compõem a physis do corpo deve ser prontamente controlado pelo médico. Na verdade, sua função primordial é auxiliar a physis a reencontrar o seu equilíbrio natural. É difícil estabelecer, nessa filosofia natural, qualquer distinção ou separação entre corpo e cosmos na medida em que ambos são formados pelas mesmas substâncias primordiais: ar, fogo, terra e água. Tais substâncias, combinadas, produzem quatro qualidades: quente, frio, seco e úmido, que, organizadas em pares, geram os quatro humores (chymós): sangue (haima), bile amarela (xanthé cholé), bile negra (mélaina cholé) e fleugma/pituíta (plégma). Assim, a teoria dos quatro humores adequou-se perfeitamente à concepção filosófica sobre a estrutura do cosmos. Estabeleceu-se, dessa forma, uma correspondência exata entre os quatro humores, os quatro elementos, as quatro qualidades e, também, as quatro estações.
Elementos | Qualidades | Humores | Idades | Estações | Temperamentos |
Ar | Quente e úmido | Sangue | Infância | Primavera | Sanguíneo |
Fogo | Quente e seco | Bile amarela | Juventude | Verão | Bilioso/Colérico |
Terra | Fria e seca | Bile negra | Maturidade | Outono | Melancólico |
Água | Fria e úmida | Fleugma/Pituíta | Velhice | Inverno | Fleumático |
Tabela 1 – Os humores e a nosologia associada Fonte: Rebollo, 2006
Portanto, o corpo humano, suas partes sólidas e líquidas, será formado pela mistura (krásis) dos humores e a doença será entendida como o estado de desequilíbrio (discrasia) dessa composição natural, resultante do excesso ou isolamento de um dos humores ou de uma mistura inadequada presente no corpo humano, pensado sempre nos termos de uma totalidade. Desse modo, o organismo procura eliminar naturalmente, ou com o auxílio médico, o humor abundante, restabelecendo o estado de harmonia interior (eucrasia)[3]. “Os excessos de sangue, catarro, bile, matérias fecais, urina, suor, tornavam-se visíveis durante as crises de desequilíbrio, e não raro a doença desaparecia após a descarga de um desses fluidos, através de diarreias, vômitos, sudoreses, hemorragias etc.” (Lima, 1996, p. 48). Dito de outra forma, a doença é a materialização de um humor em excesso no organismo, ou seja, pensando nos termos de Vernant (1990), a doença – mas não só ela visto que os próprios órgãos humanos são pensados como materializações de uma harmoniosa mistura humoral – é a manifestação visível de um estado de desequilíbrio interior. Com objetivo de eliminar os excessos surgiram, então, os principais métodos terapêuticos: sangria, purgativos, eméticos e clisteres. Para descobrir qual humor está “sobrando”, o médico precisará observar os sintomas e avaliar a quantidade e a intensidade de cada um dos humores, através de suas propriedades (dynamis), bem como considerar as características específicas de cada paciente[4], ou seja, o sexo, a idade, o temperamento e a raça.
O desequilíbrio dos humores pode ser provocado por fatores internos e externos. Os primeiros estão relacionados a disposições específicas da espécie humana, o que inclui as doenças ligadas à etnia, sexo e idade, à disposição dos órgãos, as doenças hereditárias e congênitas etc. Não obstante, para tais doenças existe uma explicação de natureza cosmológica: “a doença surge quando a physis do homem é derrotada pela força do todo ou quando a dynamis do homem é mais fraca que a dynamis do todo. Aqui, a doença é um tipo de violência que se opõe ao estado natural do corpo” (Rebollo, 2006, p. 60). Os fatores externos podem ter origem na má alimentação, no excesso ou falta de repouso, nas diferenças de temperatura, climas e estações, nos miasmas das doenças epidêmicas trazidas pelo ar, nos vermes, parasitas e venenos e, também, nas causas psíquicas.
Rebollo (2006, p. 61) chama a atenção para um princípio central da medicina hipocrática: “a physis do corpo é o logos do médico”. Vale dizer, o tratamento médico depende do conhecimento profundo e atento da physis para atingir a sua eficácia. Assim, a observação torna-se fundamental. “Com os olhos, o ouvido, o nariz, a língua, a boca, o tato e as vias do pneuma (o hálito), o médico chega ao conhecimento da doença” (Hipócrates, 1849, p. 496 apud Rebollo, 2006, p. 61). A partir da experiência sensorial, do uso pedagógico dos sentidos, o médico analisa e intervém manualmente[5].
Dentre os tratamentos médicos possíveis, a dieta (diaita) é sem dúvida um dos assuntos mais abordados no conjunto de textos atribuídos a Hipócrates. Retomando a discussão apresentada anteriormente sobre a “medicina do estilo de vida”, a diaita compreende a totalidade dos hábitos do corpo e da alma.
A dieta e o regime de vida eram indicados para ajudar a physis do corpo a recuperar o seu próprio equilíbrio natural e consistia em uma mudança de orientação em relação à alimentação (comidas, bebidas, o ar ou pneuma), na prescrição de exercícios físicos (ginástica, passeios, descansos e banhos), na consideração da atividade profissional e do grupo social ao qual pertencia o paciente, na peculiaridade da região (situação geográfica e clima) e nos nómoi da cidade em que o paciente vivia (vida social e política). Tais elementos eram considerados de acordo com a idade, o sexo, os hábitos e a compleição (cf. Entralgo, 1982, p. 320 apud Rebollo, 2006, p. 61).
Principal comentador e transmissor do legado hipocrático ao longo dos séculos no Ocidente, Galeno “revitalizou” a teoria dos humores de Hipócrates, dando ênfase à questão dos “temperamentos” e fornecendo as bases teóricas e conceituais da medicina ocidental pelo menos até o final do século XVIII (Rebollo, 2006). Assim, segundo o médico-filósofo, as “faculdades da alma” derivariam das disposições humorais fato que permitiria enquadrar os seres humanos em quatro tipos diferentes de temperamento: sanguíneo, fleumático, colérico (de cholé, bile) e melancólico (de melános, negro + cholé, bile). O comportamento e a personalidade dos seres humanos serão, desse modo, compreendidos através do equilíbrio e da harmonia dos humores e os tratamentos médicos terão como finalidade a manutenção deste equilíbrio humoral e, consequentemente, o controle dos temperamentos.
Palavras finais
É verdadeiramente impressionante o alcance e a ressonância das ideias médicas de Hipócrates. Seus princípios permaneceram vivos e atravessaram os séculos estando presentes nos guias e manuais médicos até o final da Idade Moderna e, mais do que isso, alimentando o imaginário de uma “medicina popular” certamente presente até o final do século XIX e, também, no século XX[6]. Como afirma Lima (1996, p. 51-52):
A impregnação do humorismo hipocrático tanto no pensamento científico quanto popular de meados do século passado é claramente visível desde as frequentes referências a Hipócrates nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, até os anúncios em periódicos, como o dos confeitos purgativos e laxantes De Bouderon, na edição de 1859 do Almanaque Laemmert, no qual se pregava sua eficácia “contra a pituíta, a bílis e os catarros”. Mesmo ao final do século, em crônica notável sobre o modismo dos remédios publicada no periódico A semana, Machado de Assis deixa entrever o quanto ele ainda persistia nas mentalidades, embora não soubesse mais a quem atribuir a clássica assertiva da epígrafe [“Já alguém disse, com grande sagacidade, que não há doenças, mas doentes.”], decerto contida no Corpus hippocraticum.
Joffre Rezende (2009) ressalta um dado, no mínimo curioso, proporcionado pelos avanços tecnológicos nas áreas da pesquisa médica e biológica. A descoberta das estruturas intracelulares, especialmente do DNA, considerado a “substância primordial” de toda forma de vida – pois nele está inserido o código genético que define os caracteres hereditários e assegura a continuidade da espécie –, gerou o que ele chama de uma surpresa: “o ressurgimento do número quatro nas quatro bases que integram o DNA: adenina, timina, guanina e citosina”. Todos os seres vivos são o resultado das diferentes “misturas” dessas quatro bases que, por sua vez, são formadas por quatro elementos químicos: carbono, oxigênio, hidrogênio e nitrogênio. Essa “agradável surpresa” mostrou, de acordo com o presidente da Fundação Internacional Hipocrática de Cós, que o modelo quaternário da escola hipocrática não está tão distante das recentes descobertas da biologia molecular. Assim, mais uma vez, passado, presente e futuro se conectam e são mediados por Hipócrates e suas ideias.
Referências
BITENCOURT, Almir et al. Reflexões sobre os Juramentos Utilizados nas Faculdades Médicas do Brasil. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro, v. 31, n.1, p. 31-37, 2007.
FELDMAN, Alexandre. Juramento de Hipócrates: revelações surpreendentes. 2009. Disponível em: <http://www.medicinadoestilodevida.com.br/hipocrates/>. Acesso em: 20 abr. 2019.
GONÇALVES, José Reginaldo. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos, v. 11, n. 23, p. 15-36, 2005.
LIMA, Tânia Andrade. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 2, n. 3, p. 44-96, 1996.
REBOLLO, Regina Andrés. “O legado hipocrático e sua fortuna no período greco-romano: de Cós a Galeno”. Scientiæ Studia, v. 4, n. 1, p. 45-82, 2006.
REZENDE, Joffre Marcondes de. À sombra do plátano: crônicas de História da Medicina. São Paulo: Unifesp, 2009.
VARELLA, Dráuzio. O juramento de Hipócrates. 2011. Disponível em: <http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/o-juramento-de-hipocrates/> Acesso em: 20 abr. 2019.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
VERNANT, Jean-Pierre & DETIENNE, Marcel. Métis, as astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus, 2008.
ANEXO 1 – Juramento de Hipócrates (tradução de Alexandre Feldman)
Eu juro por Apolo, o médico, e por Esculápio, Higeia, Panaceia, tendo todos os deuses e deusas como minhas testemunhas que, de acordo com minha habilidade e julgamento, manterei este Juramento e este contrato:
Eu vou nutrir a mesma afeição que tenho para com meus pais àquele indivíduo que me ensinou esta arte, ser dele um parceiro na vida e preencher suas necessidades quando requisitado; considerar os filhos dele como iguais aos meus próprios irmãos, e ensinar-lhes esta arte caso desejem aprendê-la, sem pagamento ou contrato; e que através das regras, aulas e todos os demais métodos de instrução pré-estabelecidos, transmitirei um conhecimento da arte para meus próprios filhos e para os filhos de meus professores, e para os estudantes presos a este contrato e que proferiram este Juramento à lei da medicina, mas não a outros. Também prescreverei regimes de estilo de vida que beneficiem meus pacientes, de acordo com minha melhor capacidade e julgamento, e eu não vou lhes causar mal ou causar-lhes maus tratos. Eu não darei droga letal para ninguém, caso isso me seja solicitado, nem aconselharei tal procedimento; e similarmente, não darei a uma mulher um pessário que lhe provoque um aborto. Na pureza e de acordo com a lei divina, cumprirei minha vida e minha arte. Eu não utilizarei a faca, nem mesmo naqueles que sofrem de cálculos, mas deixarei essa tarefa para aqueles que foram treinados nesta arte. Em qualquer casa que eu vá, entrarei pelo benefício do doente, evitando qualquer ato voluntário de impropriedade ou corrupção, incluindo a sedução de mulheres ou homens, sejam eles livres ou escravos. Qualquer coisa que eu veja ou escute nas vidas de meus pacientes, seja em conexão com minha prática profissional ou não, e que não convenham ser comentadas do lado de fora, eu manterei secretas, considerando todas essas coisas como privativas. Contanto que eu mantenha este Juramento fielmente e sem corrupção, que me possa ser permitido partilhar plenamente da vida e da prática de minha arte, ganhando o respeito de todos os homens por todos os tempos. No entanto, caso eu transgrida e viole este Juramento, possa o contrário ser meu destino.
[1] Galeno relata que as crianças que pertenciam a uma linhagem médica aprendiam a ler, escrever e dissecar ao mesmo tempo (cf. Rebolo, 2006).
[2] Ao contrário, a Declaração de Genebra elaborada pela Associação Médica Mundial não teve, ao menos no Brasil, qualquer “ressonância” entre médicos e faculdades de medicina, talvez justamente por querer “eliminar as ambiguidades” presentes no Juramento de Hipócrates.
[3] O médico Joffre Rezende (2009) sugere que as expressões “bom humor”, “mau humor”, “bem humorado”, “mal humorado” são “reminiscências” dos conceitos de eucrasia (equilíbrio) e discrasia (desequilíbrio). Uma pessoa equilibrada seria, portanto, aquela que estivesse sempre bem humorada.
[4] Por exemplo, os homens são mais secos e quentes e as mulheres são mais frias e úmidas (cf. Rebollo, 2006).
[5] Para Vernant e Detienne (2008), o médico, assim como o sofista, é a verdadeira expressão da mente grega na medida em que privilegia, em sua experiência prática, a intuição, a esperteza, a atenção do olhar e detém a capacidade de elaborar previsões e a habilidade artesanal para lidar com situações imprecisas.
[6] Lima (1996, p. 52) menciona alguns trabalhos realizados recentemente que constataram a presença de diversas práticas médicas populares fundamentadas na lógica hipocrática. Como exemplo, foi observado nos bancos de sangue de hospitais públicos do Rio de Janeiro a presença de doadores espontâneos que alegavam a necessidade urgente de retirada do sangue considerado excessivo, “grosso”, o que demonstra a tentativa de restabelecer o equilíbrio orgânico perturbado pelo excesso desse “humor”.