O homem invisível
Em o Homem invisível, Wells descreve uma das histórias mais atraentes de toda a literatura de ficção científica, envolvendo as peripécias da invisibilidade, os seus fantásticos efeitos e seus inesperados malefícios.
Ele não está interessado em descrever o modo pelo qual a invisibilidade pode ser realizada, mas sim seus efeitos nos homens. Wells argumenta que o seu personagem principal utiliza seus conhecimentos científicos para realizar a alteração no mecanismo de propagação da luz no corpo humano que permitia a invisibilidade.
No entanto, essa fantasiosa possibilidade que permitiu a um corpo material de se tornar invisível não é proibida pela física. Nesse texto, comentarei como tal fenômeno pode ser viável, segundo a teoria da propagação da luz através de processos não-lineares. Essa propriedade foi apresentada no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas em outubro do ano de 2000, na primeira conferência internacional, envolvendo cenários capazes de permitir a construção em laboratório terrestre de um ‘buraco negro’ efetivo, isto é, de um objeto de origem não-gravitacional semelhante a um ‘buraco negro’.
Primeiro ato: Maxwell e a propagação da luz
Os fenômenos luminosos são configurações descritas pelo campo eletromagnético. O físico J. C. Maxwell formulou, há mais de um século, um conjunto de equações que descrevem os processos eletromagnéticos, possibilitando, assim, determinar as leis de propagação da luz.
A propriedade mais notável dessa formulação consiste na linearidade dessas equações. Isso simplifica enormemente sua descrição, pois permite, dado dois casos particulares de soluções exatas dessas leis, obter novas soluções simplesmente pela adição daquelas duas.
Essa linearidade e a observação da constância da velocidade de propagação dessas ondas teve várias consequências importantes e seu momento culminante ocorreu na síntese dos trabalhos efetuados por H. Poincaré, H. Lorentz, A. Einstein entre outros na teoria da relatividade especial.
O mais inesperado e importante resultado dessa investigação resultou na modificação da geometria euclidiana do espaço newtoniano a 3 dimensões para uma geometria não-euclideana a 4 dimensões onde a quarta dimensão adicional é o tempo.
Segue dessa nova descrição espaço-temporal que os caminhos da luz são geodésicas – curvas de distância mínima entre dois pontos – na nova geometria chamada de Minkowski, em homenagem a um dos principais cientistas cujas ideias possibilitaram o aparecimento da relatividade especial.
Assim, passou-se da descrição de um tempo absoluto e um espaço absoluto da física clássica (newtoniana) para um espaço-tempo absoluto da física relativista (einsteiniana).
Em ambas configurações a estrutura de geometria associada é plana, isto é, sem curvatura.
Curvando o espaço-tempo
Em 1915, Einstein deu um enorme passo para além dessa configuração absoluta e congelada da métrica do espaço-tempo sugerindo que um campo gravitacional pode ser representado pela alteração que matéria e energia sob qualquer forma provocam na geometria do mundo.
Ou seja, sob o efeito gravitacional a geometria do espaço-tempo se transforma e adquire uma curvatura (deixa de ser plana) controlada pela matéria que gerou o campo.
Segue dessa teoria que a trajetória dos corpos materiais de qualquer natureza são essas curvas privilegiadas, as geodésicas, na geometria encurvada.
A propagação da luz, segundo as equações de Maxwell, seguem igualmente geodésicas nesse espaço curvo.
Buraco negro gravitacional
O campo gravitacional gerado por um corpo compacto, digamos uma estrela, é descrito pela métrica especial descoberta pelo astrônomo Karl Schwarzschild em 1916. No entanto foi somente nos anos 1960 que uma análise rigorosa de suas características pode ser compreendida. A mais surpreendente delas é a existência de uma superfície, chamada horizonte, que possui a estranha propriedade de ser atravessada somente em uma direção, de fora (da estrela) para seu interior, ou seja, nenhuma forma de energia e/ou matéria pode sair de seu interior, nem mesmo a luz (embora efeitos quânticos possam violar essa restrição). Devido a essa especificidade foi-lhe atribuída o nome de buraco negro. É bem verdade que nem todo corpo compacto de raio R gera um buraco negro: para ser um buraco negro entre sua massa M e seu raio deve existir a relação de desigualdade representada por R < 2 G M
onde G é a constante de Newton da gravitação e c é a velocidade da luz.
Segundo ato: a não linearidade
Embora a teoria linear de Maxwell consiga explicar a quase totalidade dos fenômenos eletromagnéticos em circunstâncias convencionais, de nosso cotidiano, existem situações em que processos não-lineares controlam sua dinâmica. Esses, aparecem, seja devido a questões que provém do mundo quântico, seja devido a processos gravitacionais provocando a interação do campo eletromagnético com a curvatura da geometria do espaço-tempo.
De qualquer modo, qualquer que seja sua origem, essa não-linearidade dos processos eletromagnéticos produz um resultado notável: a propagação da luz não segue mais a prescrição de Maxwell, mas sim tudo se passa como se a onda luminosa é mergulhada em uma nova geometria controlada pelo campo eletromagnético.
A origem dessa proposta de alterar a geometria por onde a luz se propaga, independentemente de seu caráter não-linear, ainda no interior da teoria de Maxwell, foi sugerida pelo físico W. Gordon em 1923.
Ou seja, independentemente de seu caráter não-linear W. Gordon mostrou que, ao estudar a propagação da luz em meios dielétricos em movimento, a luz se propaga através de caminhos que são geodésicas em uma métrica efetiva que depende das propriedades do meio e do seu movimento.
Terceiro ato: as geometrias efetivas.
O grande sucesso da análise de fenômenos eletromagnéticos se deveu ao fato de que essa interação pode ser controlada em experiências de laboratório. Isso é consequência da existência de partículas que possuem carga positiva e partículas que possuem carga negativa. Assim, é possível com habilidade produzir em laboratório campos eletromagnéticos com características as mais diversas possíveis.
Nada semelhante com a gravitação.
É impossível, no laboratório, produzir experiências capazes de controlar o fenômeno gravitacional. Isso se deve à universalidade da gravitação associada à propriedade de que não existe gravitação repulsiva. Ou seja, em termos newtonianos, não existe no universo corpos que tenham massa negativa.
Como então obter informações sobre as características de um dado campo gravitacional? Somente se a natureza nos oferecer. Seria possível estudar as propriedades de um dado campo gravitacional de outra forma, mais controlável?
Sabemos que processos gravitacionais podem ser entendidos como alterações na geometria do espaço-tempo. A questão então passou a ser: é possível imitar formas de geometrias típicas de processos gravitacionais observados, como o campo de uma estrela e a dinâmica do universo?
Imitando a gravitação: Buraco negro artificial
A ideia de imitar fenômenos gravitacionais através de processos de outra natureza começou a se desenvolver na última década do século 20. É bem verdade que Gordon utilizou alterações na métrica do espaço-tempo para descrever a propagação da luz em meios dielétricos em movimento. No entanto essa ideia ficou congelada e não teve consequências imediatas nem foi usada regularmente.
O uso de alterações na estrutura geométrica do espaço-tempo só teve um grande impulso quando processos de natureza não-linear começaram a dominar a análise da propagação da luz na última década do século 20.
Em verdade, a alteração da métrica como um método sistemático para descrever processos de natureza não-gravitacional só ganharam relevância e notoriedade quando se descobriu como seria possível realizar experiências de laboratório para testar fenômenos gravitacionais. Dentre esses o mais midiático foi a construção do chamado buraco negro artificial. Ou seja, a noção de buraco negro, não é mais entendida como pertinente exclusivamente a campos gravitacionais.
Em outubro de 2000, aconteceu no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, a primeira conferência internacional envolvendo cenários capazes de permitir a construção em laboratório terrestre de um ‘buraco negro’ efetivo, isto é, de um objeto de origem não-gravitacional semelhante a um ‘buraco negro’.
Conforme foi explicitado nessa conferência, vários fenômenos de origens diversas são capazes de imitar tal cenário gravitacional, entre os quais, graças à sua simplicidade, se destacam os processos eletromagnéticos.
A propriedade fundamental para caracterizar um buraco negro é sua invisibilidade. Ou seja, a luz em seu interior não pode escapar, ela permanece aprisionada. Uma tal propriedade de natureza gravitacional pode ser imitada em laboratório usando não um campo gravitacional, mas sim outras formas de interação como, por exemplo, processos eletromagnéticos.
Ao demonstrar a possibilidade de produzir situações controláveis, utilizando somente a interação eletromagnética, para imitar um buraco negro gravitacional, a noção de invisibilidade tornou-se uma questão tecnológica. A aventura do personagem de H. G. Wells e suas extraordinárias peripécias passaram a não ser, enfim, tão fantasiosas assim.
Bibliografia
NOVELLO, M. ; DE LORENCI, V. A ; SALIM, J. M. ; KLIPPERT, R., Geometrical aspects of light propagation in nonlinear eletrodynamics, Physical Review D, v. 61, 045001, 2000.
NOVELLO, M; VISSER, M; VOLOVIK, G. (Ed.). Artificial black holes. New Jersey, London, Singapore, Hong Kong: World Scientific, 2002.
LINS, Thiago. As desvantagens de ser invisível. In: WELLS, Herbert George. O homem invisível: edição comentada; tradução Alexandre Barbosa de Souza, Rodrigo Lacerda. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
Referência da imagem
Ilustração de capa por Enrique Arilla. Artificial black holes. NOVELLO, M; VISSER, M; VOLOVIK, G. (Ed.). New Jersey, London, Singapore, Hong Kong: World Scientific, 2002.