O florescer da cosmologia na União Soviética
Durante a sexta Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação (que recebeu mais tarde, a sigla em inglês, BSCG) em 1989, um conhecido físico norte-americano confidenciou-me que muitos cientistas americanos tinham aprendido russo para poder ler e se inspirar nos artigos que os cosmólogos soviéticos, extremamente imaginativos e competentes, estavam produzindo sobre a estrutura e evolução do universo.
Descobri então que a riqueza de novas ideias sobre o cosmos não se encontrava no ocidente arrogante e tecnicamente competente, mas lá longe, nos centros de pesquisa da União Soviética, na imaginação extraordinariamente rica que ali se estava desenvolvendo.
Eu comentei com ele que isso era perfeitamente normal no mundo acadêmico e que a interação entre os diferentes grupos de pesquisa era salutar e convencional.
Mas, replicou ele, publicar artigos baseados nas ideias dos russos sem citar os trabalhos originais?
Isso me deixou perplexo pois eu ouvira várias vezes meus colegas russos reclamarem do que eles diziam ser tentativas mais ou menos intensa de ocultação das origens de algumas das principais ideias então desenvolvidas nos EUA.
Isso se devia em parte ao fato de que naquela época os artigos dos cientistas russos eram publicados em revistas, como a JETP, somente em russo, sem tradução acessível para o inglês. Acrescente-se a isso a dificuldade dos cientistas da URSS de participarem no exterior de conferências internacionais em países fora da chamada cortina de ferro, por razões exclusivamente políticas. Isso os impedia de defender presencialmente suas ideias e consequentemente dificultava a identificação da origem e procedência dessas ideias.
Algumas cenas de um filme americano, Cortina Rasgada de 1966 dirigida por Alfred Hitchcock, mostra um físico-espião americano tentando se apoderar de alguns resultados da teoria dos neutrinos que cientistas russos e alemães da DDR comunista estavam realizando.
A importância desses neutrinos, que não foi explicitada no filme, estava relacionada à possibilidade de obter informações sobre possíveis testes nucleares com explosões subterrâneas que impediam seu alcance visual. A detecção de neutrinos e sua intensidade permitiam caracterizar com boa precisão o local e a força explosiva da eventual bomba atômica testada.
Enquanto a liberdade política era restrita sob o regime comunista na URSS, as ideias desenvolvidas por seus físicos, em particular os que se dedicavam à Cosmologia, eram exuberantes e pareciam não ter limite, beirando às vezes uma maravilhosa e atraente orquestração de processos que se associavam a uma interpretação quase utópica da realidade.
Por outro lado, contra toda expectativa, no ocidente, nos EUA e na Europa, a aparente imensa liberdade política criava um isolamento da razão, gerado a partir de um tecnicismo eficiente e auto referente, fechado em si, limitando o que deveria ser entendido como a verdade científica, determinada pelo establishment. Estranhamente seus físicos se revelavam conservadores, construindo um muro no interior da academia, rejeitando novas formas de descrição da realidade, inibindo ostensivamente a imaginação na construção de representação de retalhos da natureza e, principalmente, enfatizando a técnica em detrimento da produção de uma visão de mundo.
Um desses físicos russos, Evgeni Lifshitz, aceitou meu convite para participar em 1979 da II BSCG na Universidade Federal da Paraíba em João Pessoa. Ele havia adquirido uma enorme fama por ter redigido em parceria com o grande físico Lev Landau uma famosa coleção completa da física do século 20. Era quase o final do período de domínio de Leonid Brezhnev na União Soviética.
No Brasil o general Figueiredo era o presidente da ordem então instaurada pelo golpe militar de 1964. Despontava então indícios de que se iniciava a distensão para uma suave passagem à democracia, o que viria a ser conhecida como a abertura lenta, gradual e irrestrita. Creio que foi a conjunção desses dois fatos que tornaram a vinda de Evgeni Lifshitz possível. Durante o período em que ele ficou no Brasil desenvolvemos uma intensa amizade que se preservou até sua morte. Dessas longas conversas pude perceber como, segundo ele, foi possível o surgimento de propostas em cosmologia tão importantes e tão ricas de imaginação, em um regime tão fechado.
A acreditar em Lifshitz, isso se deveu a diversos fatores, dentre os quais citou: liberdade na escolha do tema de pesquisa e no seu desenvolvimento; separação total do conceito de competência com intensidade e número de publicações; acompanhamento continuado desde a escola elementar de alunos enormemente motivados por professores entusiasmados com seu trabalho e tendo salários dignos; independência completa da atividade científica do establishment associado a organizações de natureza política, exceto a prestigiosa Academia de Ciências da URSS.
Quanto de verdade havia nessa explicação? Difícil precisar. No entanto, uma coisa é sem dúvida: naquele Instituto, naquele período comunista, em Moscou, cosmólogos russos desenvolveram uma visão do universo esplendorosa, entusiasmada e entusiasmante com a exuberância do cosmos.
Entender o universo como um processo de autocriação, sem matéria nem energia, puro processo geométrico, soa como música maravilhosa e apaixonante que enleva o espirito, levando a pensar que somente nos momentos grandiosos que Johann Sebastian Bach, com o encantamento precioso de sua alma etérea a refletir o esplendor do cosmos, pode igualar.
Reconhecer que isso surgiu em meio a um cenário de ideologia rígida pretensamente comunista, que oficialmente fazia da solidariedade uma força mágica a impulsionar o imaginário da sociedade, mas cuja prática estava longe de realizar esse ideal, certamente nos surpreende.
Por outro lado, restava-nos então – e é o que lamentavelmente restou — o sistema capitalista ocidental, com sua perversa restrição da dignidade do indivíduo, eliminando na prática, qualquer resquício de grandiosidade e transcendência, incentivando uma bajulação degradante a um Deus ausente que sequer executa a contento sua função maior, a de expulsar os vendilhões do templo.