O fim da ortodoxia na ciência
Esse texto reproduz minha intervenção na Conferência O FIM DA ORTODOXIA que será realizada no Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas nos dias 24 e 25 de agosto deste ano de 2023.
O homem contemporâneo chegou a possuir
ressentimento contra tudo que é dado,
compreendendo até mesmo sua existência;
um ressentimento contra o fato de não ser
o criador do mundo nem de si mesmo
Hanna Arendt
A proposta dessa conferência surgiu de uma discussão no interior do grupo de cosmologia do Centro de Estudos Avançados de Cosmologia (CEAC) do Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas (CBPF) onde se examinava algumas consequências da dependência cósmica das leis físicas e seu impacto sobre a ideia tradicional de ciência. Ou seja, examinar se caminhos alternativos de compreensão de um dado processo ou fenômeno, ao ser considerado fora dos preceitos de uma dada teoria (tida como fundamental) devem ser rejeitados a priori. A partir dessa análise foi inevitável o aparecimento de questão semelhante em outros saberes.
INTRÓITO
Eu vou começar essa minha apresentação com as palavras da filósofa Catherine Larrère em sua apresentação “La nature, la science et le sacré” em uma conferência realizada em Paris, em 2014, na Sorbonne, sob o titulo “Y a-t-il du sacré dans la nature?”.
Segundo Catherine Larrère, ao citar Heráclito…” a Natureza ama se esconder”, o filósofo Pierre Hadot acrescenta um comentário onde reconhece dois grandes modelos para penetrar esses segredos que a Natureza esconde:
- Modo Prometeu;
- Modo Orfeu.
No primeiro trata-se de forçar a natureza a revelar seus segredos através da experimentação, da técnica. O segundo (Orfeu) considera que, como o homem é parte inteira da Natureza, esse ocultamento não é sentido como uma resistência que é preciso vencer, mas sim como um mistério no qual o homem pode, pouco a pouco, ter acesso, ser iniciado. Isso não significa abster-se da técnica, mas usá-la para conhecer e admirar o universo.
Devemos reconhecer que a posição do modo Orfeu é incompatível com uma sociedade capitalista[1], como a que hoje domina a ordem política mundial.
A tradição recente da ciência parece integralmente adotar a atitude no modo Prometeu: o establishment da ordem científica, assim se orienta.
Ou melhor, os cientistas, ao se integrarem ao establishment, optam pela solução do modo Prometeu .
Podemos dizer que a física se deixou absorver por essa posição; e que a Cosmologia procura se estruturar no modo Orfeu.
Em verdade, essas duas afirmações são limitadas, pois nem uma nem outra são inteiramente devotadas a uma só posição. Não é exagero, no entanto, afirmar que o establishment da física, assim como o da cosmologia, segue a manifestação do modo Prometeu.
Entretanto, irei apresentar comentários que sugerem considerar a ideia segundo a qual se deveria encontrar uma maioria de cientistas de visão do modo Orfeu entre os cosmólogos. Ou seja, tratar a ciência como contemplação e não tendo como objetivo principal a técnica e a construção de mecanismos de intervenção na natureza.
Vamos precisar nossa asserção: a ortodoxia na ciência se estrutura no modo Prometeu de investigar a Natureza. A contra-ortodoxia se organiza no modo Orfeu.
Entendemos essa nomenclatura (referentes a Prometeu e Orfeu) ao lermos suas façanhas na mitologia grega. Enquanto Prometeu arranca o fogo dos deuses, Orfeu se adapta à natureza do reino dos mortos e procura com o consentimento de todos, fazer reviver sua amada Eurídice.
No limiar de conseguir isso, ele viola a determinação da natureza que o impedia de voltar seu rosto para trás (possivelmente, uma restrição causal). Para certificar-se que Eurídice o seguia alguns passos atrás, ao chegar ao final da caverna que abrigava o reino dos mortos, na entrada para o reino dos vivos, intempestivamente ele volta seu olhar para ela. Essa violação de um preceito da natureza encerra brutalmente o acordo e Eurídice é imediatamente compelida a voltar definitivamente ao reino dos mortos.
A principal distinção da cosmologia para a física – e que permite caracterizar a visão cosmológica como sendo mais adaptável ao modelo Orfeu — está relacionada à mudança de atitude do cientista face a seu elemento de estudo. Isso se deve à compreensão de que na Cosmologia não é possível realizar experimentos, mas somente observações. Observar o comportamento do universo e o que ele nos revela. Uma tal limitação é consequência de que a única força a controlar a evolução do cosmos é a gravitação, sua característica de ser universal e da ausência de gravitação repulsiva.
A visão cosmológica não requer a aceitação da existência de uma harmonia escondida no universo, mas sim é o resultado de entender a estabilidade do universo graças à solidariedade cósmica. Desse modo, permite a formação de estruturas como planetas, estrelas e galáxias, gerando condições para o aparecimento de vida, pelo menos em um desses planetas.
Isso deveria levar os cosmólogos ao abandono do modelo Prometeu e a adesão ao modo Orfeu de contemplação.
Antes de continuarmos, é preciso entender o que é isso que estamos chamando de cosmologia.
INTRODUÇÃO
O sucesso da cosmologia nas últimas décadas permitiu o ressurgimento de questões no cenário padrão da ciência que haviam se tornado irrelevantes ou sem interesse. Dentre essas, a que nos interessa aqui, concerne a variação das leis físicas com o tempo cósmico.
Essa possibilidade só pôde ser considerada a partir da certeza de que entre a proposta de que vivemos em um universo estático (Einstein) ou em um universo dinâmico (Friedmann) – onde o volume total do espaço varia com o tempo global — é este último quem tem razão.
A dependência temporal implica de imediato numa questão crucial: como conciliar essa variação com o papel da ciência organizada a partir da ideia de que existem leis físicas eternas e imutáveis. Tradicionalmente, o establishment aceitava como uma verdade absoluta a existência dessas leis imutáveis como o fator determinante da descrição de que vivemos em um universo estável e compreensível.
Essa variação das leis físicas, não impede a aplicação dessas leis na Terra, isto é, não afeta a organização tecnológica, pois essa variação ocorre para tempos cosmológicos.
A cosmologia moderna se estabeleceu a partir da teoria da Relatividade Geral (TRG) de Albert Einstein que substituiu a interpretação newtoniana dos processos gravitacionais. Na TRG a gravitação é identificada com a geometria do espaço-tempo quadri- dimensional, cuja dinâmica é controlada pela distribuição de matéria e energia.
No primeiro cenário proposto por Einstein essa distribuição é caracterizada por um fluido perfeito, de densidade de energia E. Em seguida, o russo Alexander Friedmann considerou que a matéria no universo possuía interação entre suas partes descrita por uma pressão P e que há uma relação linear entre P e E.
Quando a energia e a pressão são estritamente positivas, o modelo de Friedmann possui uma singularidade, chamada vulgarmente como “bigbang”. De um modo ingênuo e incorreto, essa singularidade foi identificada como o “começo do universo”.
Na década de 1970 foram descobertos modelos de universo sem singularidade, possuindo “bouncing”. Isso significa que, anteriormente à fase atual de expansão, o universo teria tido uma fase de colapso gravitacional onde seu volume total diminuiria com o tempo.
A dependência temporal[2] da geometria permite entender a terceira revolução na física do século XX.
Para seguirmos nessa análise, creio ser importante reproduzir um texto que, em junho de 2022, publiquei na revista-e cosmosecontexto.
REVOLUÇÕES NA FISICA DO SÉCULO 20: RELATIVIDADE E QUANTUM
Na virada para o século 20 uma crise que se prolongava por mais de um século foi finalmente dissolvida, dando origem a uma profunda restruturação da física. Duas grandes revoluções começavam a aparecer no cenário da física, devido a dificuldades em explicar certos fenômenos, como a disputa sobre o valor da velocidade da luz. Diversas experiências apontavam para um valor extremo e constante, independente do estado de repouso ou movimento do observador. Por outro lado, acirrava-se uma discussão sobre o verdadeiro caráter da luz, se ela deveria ser entendida como onda ou partícula. A solução dessas questões conduziu ao surgimento de duas grandes teorias: a relatividade e a quântica.
Na formulação da relatividade especial, transforma-se a estrutura estática de um espaço absoluto tridimensional e um tempo absoluto em um espaço-tempo a quatro dimensões, igualmente absoluto.
O passo mais crucial dessa teoria foi o abandono da tradicional geometria euclidiana e a aceitação de uma geometria mais geral, uma particular geometria riemanniana, plana, isto é, de curvatura nula, que recebeu o nome de geometria de Minkowski.
Nessa nova estrutura, a métrica não impõe que a distância entre dois pontos do espaço-tempo seja sempre positiva definida, como acontece na geometria de Euclides. Ou seja, uma distância entre dois pontos do espaço-tempo pode ser nula mesmo que esses pontos não coincidam. Essa foi a principal alteração na estrutura da geometria produzida pela junção do tempo às três coordenadas espaciais que passou a representar os fenômenos, localizados como pontos quadridimensionais, configurando o espaço-tempo.
A partir desse momento, as questões da física passaram a ser estabelecidas sobre esse pano de fundo da geometria de Minkowski, desde que não se considere efeitos gravitacionais.
Quanto à gravitação, ela foi posteriormente associada a alterações na geometria, retirando o caráter absoluto da métrica de Minkowski, no que ficou conhecida como teoria da Relatividade Geral.
Por outro lado, durante um longo tempo a caracterização da luz como onda ou partícula dividiu a comunidade científica até que ficou claro que o comportamento da luz depende do valor de sua energia. Quando o comprimento de onda da luz (o inverso de sua frequência) é extremamente pequeno, sua energia extremamente elevada, sua aparência como corpúsculo predomina. Quando ele for grande, seu caráter ondulatório aparece claramente.
O físico francês Louis de Broglie fez então uma analogia inusitada que resultou ter enormes consequências na evolução da teoria quântica.
Sem medo de lançar uma ideia que seus colegas consideravam fantasiosa, de Broglie propôs que, assim como a luz pode ser descrita por uma dualidade de configuração (onda-corpúsculo) essa dualidade deveria se estender igualmente para toda a matéria.
Ou seja, aquilo que percebemos como uma partícula a nível microscópico, poderia ser atribuída característica de uma onda. Essa esdrúxula ideia resultou ser extremamente frutífera.
Tão logo apareceram, tanto a teoria da relatividade quanto a quântica, foram alvo de críticas violentas por alguns célebres cientistas que sustentavam o establishment ocupando posições de destaque na comunidade científica.
Em verdade, uma tal resistência é até mesmo esperada, quando se trata de uma mudança radical na compreensão dos fenômenos. Mais ainda quando se é obrigado a usar uma linguagem completamente nova, até mesmo para os físicos, como foi o caso da teoria quântica.
Talvez devêssemos lembrar que em alguns artigos de divulgação, comentários segundo os quais, depois do estabelecimento e aceitação completa daquelas duas revoluções pelo establishment, nada de fundamental teria acontecido na física.
No entanto, temos hoje motivos suficientes para acreditar que estamos no centro da eclosão de uma terceira revolução na física[3].
A NOVA REVOLUÇÃO: A VARIAÇÃO DAS LEIS FISICAS NO COSMOS
Isso dito, qual seria então essa terceira revolução, de onde ela surgiria? Do microcosmos? Das propriedades elementares da matéria ou das estruturas globais do espaço-tempo cósmico?
Em verdade, de ambas, ao reconhecermos a interação profunda entre as propriedades locais e globais que tem origem na solidariedade do cosmos.
A dependência cósmica das leis físicas terrestre é consequência direta da ação da gravitação. Ela aparece quando essas leis são extrapoladas para o universo profundo onde a gravitação assume valores extremamente elevados.
É precisamente a interação da matéria com um campo gravitacional intenso—através da curvatura do espaço-tempo– que provoca essa alteração no comportamento dinâmico das leis.
Do ponto de vista observacional, tudo se passa como se houvesse uma dependência com o tempo cósmico das leis físicas. Isso nos leva a reconhecer que no universo profundo devemos transformar as leis físicas em leis cósmicas.
É essa situação que institucionaliza o que chamamos de terceira revolução na física e que deve ser acrescentada àquelas duas outras revoluções do século 20, as teorias da relatividade e dos quanta.
Assim como nos casos das duas revoluções anteriores, essa também tem provocado uma forte reação contrária, com físicos conservadores negando evidências dessa caracterização, agarrando-se a interpretações antigas que constituem verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento da análise do universo.
Isso não é uma novidade. Os cientistas, assim como ocorre em outras profissões, agarram-se compulsivamente às certezas anteriores, bem estabelecidas e dificultam quanto lhes for possível, a aceitação de novas interpretações sobre os fenômenos.
No entanto, essa terceira revolução tem uma natureza diferente das anteriores e uma dificuldade nova aparece, pois contrariamente às duas revoluções anteriores – cujas críticas veementes puderam ser respondidas com os resultados de experiências preparadas em laboratório terrestre — no caso da terceira revolução, como ela depende da dinâmica do universo, a situação é mais complexa.
Com efeito, devido ao caráter universal da gravitação e o fato de que ela é sempre atrativa, ela não permite realizar experiências preparadas, como nos demais processos físicos. A análise do universo gravitacional só pode ser feita através de observações não controladas.
Uma outra diferença importante separa essa terceira revolução das duas anteriores. Aquelas, foram produzidas graças a uns poucos físicos; no caso dessa terceira, um número bem maior de cientistas têm contribuído para sua complexa caracterização, na análise sob múltiplas formas, da variação das leis no universo.
COSMOLOGIA: DOBIGBANG AO UNIVERSO ETERNO[4]
Uma teoria da gravitação funda uma nova cosmologia. Logo depois que Einstein transformou a gravitação newtoniana em uma alteração da geometria do espaço-tempo, ele foi levado a aplicar sua nova visão da interação gravitacional que domina o cenário cósmico, na construção de uma cosmologia, um modelo de universo.
Como não havia nenhuma observação de caráter global a guiá-lo nessa tarefa, teve que optar por alguma ideia apriorística sobre como deveria ser a configuração típica do universo.
Há quem acredite que o estado de repouso, o imobilismo, é mais aceitável do que o movimento, que possui inúmeras possibilidades. O estado de quietude é único. O estado em movimento é múltiplo. O argumento que serve de apoio a essa crença considera que ao atingir esse estado especial – o imobilismo – ter-se-ia completado uma ação, um processo, que o teria levado à condição estática. O estado inerte seria então o modo mais natural de realizar o fim de um périplo.
Essa imagem de quietude, Einstein a empregou para servir de guia em sua exploração de uma cosmologia. No entanto, logo em seguida foi compreendido que esse cenário proposto por ele não pode representar nosso universo. A quietude não é estável. Tudo está em constante mutação. Isso ocorre nos fenômenos terrestres, nas relações humanas, na sociedade, e de modo semelhante, no cosmos. Mesmo o vazio (quântico) é instável.
Por isso a afirmação de que o universo estava condenado a existir. O vazio não permanece como tal[5].
Seria então inesperado e singular que, indo em direção oposta a esse contínuo movimento, as leis físicas terrestres não o acompanhassem, e conservar-se-iam estaticamente as mesmas em todo espaço-tempo global.
Ou seja, somos levados a perguntar o que acontece em um universo dinâmico com as leis físicas terrestres, como elas poderiam ser alteradas nesse turbilhão cósmico, nesse dinamismo universal.
A extensão da validade de uma lei da física para além de seu território observável sempre foi considerada como um procedimento natural. Essa regra de gerar uma extensão de uma determinada lei, embora tenha sido entendida nos primeiros tempos como um protocolo permissivo, tornou-se mais do que um simples procedimento simplificador, adquirindo um caráter absoluto, proibindo a análise de propostas alternativas, mesmo naqueles domínios onde não se tem dados observacionais confiáveis. Uma reação a essa atitude estática, essa ortodoxia, levou em um primeiro momento, alguns poucos cientistas a fazerem propostas de transformação das leis físicas no universo e, posteriormente, a uma nova linha de investigação.
Por uma questão de simplificação, separamos a análise dessas sugestões alternativas em três fases históricas, a saber:
- Fase 1: dependência temporal das constantes físicas (anos 1930);
- Fase 2: mudança de algumas teorias específicas (anos 1950);
- Fase 3: dependência cósmica geral das leis da física (século 21).
OS PRECURSORES
Na primeira fase as propostas foram bastante ingênuas, baseadas em argumentos simplistas, sem uma estrutura formal sólida que lhes daria sustentação. Como exemplo, podemos citar a hipótese de Dirac dos anos 1930, que sugere a dependência da constante de Newton com o tempo cósmico. Do mesmo período apareceu a hipótese, igualmente simplista, de Sambursky, de variação da constante de Planck, a característica fundamental do mundo quântico.
Mais tarde, na década de 50, a sugestão de Dirac adquiriu respeitável embasamento teórico, ao se transformar em uma modificação da relatividade geral para o que foi chamado de teoria escalar-tensorial da gravitação.
Depois desse início singular, durante mais de meio século sem que essa análise tivesse atraído a comunidade científica, começaram a aparecer diferentes modos de estender e transformar aquelas duas propostas iniciais em um verdadeiro território de investigação intensa. As fases 2 e 3 começaram a se desenvolver.
A razão por trás dessas análises e sugestões se deveu a que, ao invés da aceitação ingênua da universalidade das leis físicas terrestre, começou-se a perguntar se seria possível não haver efeito da evolução das propriedades métricas do espaço-tempo sobre as leis da física em um universo dinâmico, com uma geometria variável, cuja curvatura depende do tempo cósmico.
Uma resposta simples, negando qualquer modificação, dominou o pensamento dos físicos em grande parte do século 20, desde os primeiros momentos de construção da relatividade geral, apoiando-se na aceitação da transformação do princípio da equivalência em um construtor de leis.
Segundo esse princípio, localmente, é sempre possível anular o efeito da gravitação sobre qualquer forma de matéria e/ou energia, por uma simples transformação de representação do campo gravitacional.
Do ponto de vista técnico, isso é equivalente a aceitar que a curvatura da geometria do espaço-tempo não participa da interação com a matéria. Como essa curvatura, na vizinhança terrestre e sobre a Terra é muito fraca, nenhum efeito capaz de violar essa hipótese foi efetivamente observado.
No entanto, quando se trata de campos gravitacionais fortes, onde a curvatura da métrica é bastante elevada, essa regra pode ser violada. É exatamente através de processos dessa forma – isto é, onde a interação gravitacional com a matéria envolve a curvatura – que efeitos de variação das leis físicas aparecem.
A reação à utilização do princípio de equivalência como gerador das leis de interação matéria-gravitação, levou diretamente à terceira fase, que faz do acoplamento não mínimo (resultado da influência da curvatura do espaço-tempo sobre a dinâmica dos corpos materiais e energias sob qualquer forma) com a gravitação, o verdadeiro gerador das leis cósmicas, produzindo modificações espaço-temporal das leis da física.
Vamos agora fazer um sobrevôo sobre questões que estão momentaneamente fora do que o establishment aceita como explicação de certos fenômenos, como por exemplo, a origem da massa e a não-linearidade da dinâmica no microcosmo.
PRINCIPIO DE MACH GENERALIZADO
Uma das ideias fundamentais para o desenvolvimento da teoria da relatividade geral consistiu na proposta de Ernst Mach segundo a qual a inércia de um corpo qualquer é dada pela inércia de todos os corpos no universo. Ou seja, haveria uma intimidade profunda entre uma característica local e propriedades da totalidade do universo. Essa expressão um pouco vaga, adquiriu uma configuração geométrica rigorosa quando Einstein fez a hipótese de identificação da interação gravitacional com a estrutura métrica do espaço-tempo.
Um outro modo de exibir essa interdependência da microfísica com as propriedades globais do universo foi formulado recentemente, com sucesso. Trata-se de uma extensão da proposta de Mach que levou à ideia de que equações fundamentais das partículas elementares, como o eletron e o neutrino, poderiam exibir configurações não lineares, devido a propriedades globais do universo.
O CASO DA DINÂMICA DE HEISENBERG
A dinâmica das partículas elementares do tipo férmion (como o eletron e o neutrino) é descrita de modo bastante correto pela equação proposta por Paul Dirac há mais de meio século. Essa equação descreve, por exemplo, o movimento do eletron na ausência de um campo gravitacional. Trata-se, claro está, de uma aproximação onde consideramos que o campo gravitacional é muito fraco e pode ser desprezado, ao longo da trajetória do eletron. E o que acontece quando a gravitação interfere?
A resposta é um pouco técnica demais, mas irei resumi-la de modo simples. Começamos por perceber que ela depende do modo pelo qual se dá a interação fermion-gravitação. Para um dado processo, onde intervém a geometria (que representa a gravitação) através da curvatura do espaço-tempo, o resultado é a modificação da linearidade da dinâmica do fermion. Ele passaria a não mais obedecer a equação de Dirac, mas sim uma equação proposta por Heisenberg para descrever processo dinâmico de interação entre partículas, caracterizadas pelo que os físicos chamam, spin semi-inteiro.
Ou seja, a dinâmica proposta por Heisenberg em um artigo de 1957, elaborada a partir de princípios fundamentais, nada mais seria do que o resultado da interação do fermion-de-Dirac com o resto-do-universo, uma proposta fora do sistema aceito pela ortodoxia.
A NOVA COMPREENSÃO DA ORDEM CÓSMICA QUE EMERGE DA DEPENDÊNCIA TEMPORAL DAS LEIS FISICAS
No Manifesto Cósmico ficamos conhecendo a proposta do matemático e filósofo francês Albert Lautmann da solidariedade cósmica. Esse conceito permitiu entender a coerência das leis físicas em um universo dinâmico, organizando a compatibilidade formal entre o local e o global.
As leis físicas foram estruturadas e consolidadas por experiências realizadas na Terra e suas vizinhanças, onde o campo gravitacional é bastante fraco. Nessa região, é possível reconhecer que os efeitos gravitacionais envolvendo explicitamente a curvatura do espaço-tempo podem ser desprezados e que, portanto, os efeitos da gravitação sobre os corpos podem ser localmente eliminados por uma simples escolha de representação.
A constância das leis físicas terrestre se deve ao procedimento adotado pelos físicos de organizá-las a partir de situações nas quais a curvatura do espaço-tempo não desempenha papel importante na dinâmica da matéria.
Quando, ao contrário, a influência da curvatura é suficientemente grande, capaz de alterar o movimento dos corpos, então a dependência temporal dessas leis aparece claramente.
Devemos então, para evitar expressões dúbias, modificar o que chamamos lei física pela expressão lei cósmica. Note que não se trata somente de uma alteração de representação, mas sim, para afirmar que a lei física não pode ser extrapolada sem ser alterada. Damos o nome de lei cósmica a essa alteração.
Embora os físicos não tenham se debruçado sobre essa análise referente à possível variação das leis físicas, a não ser nas últimas décadas, os matemáticos já haviam revelado essa possibilidade formalmente, há mais de meio século. Com efeito, podemos citar o comentário feito pelo matemático francês Élie Cartan, no inicio de 1930, segundo o qual a dificuldade que Einstein encontrava em seu programa de unificação dos campos de interação na natureza, está intimamente relacionada à ausência, em sua análise, das questões referentes à estrutura global do espaço-tempo.
É Cartan quem afirma: …”la recherche des lois locales de la Physique ne peut être dissocié du problème cosmogonique. On ne peut du reste pas dire que l´un précède l´autre ; ils sont inextricablement mêlés l´un, à l´autre. »
Ou seja, os matemáticos imaginaram, de modo intuitivo e correto, que a questão de unificação passa pela caracterização das propriedades globais do universo, ou seja, sua topologia. Um passo nessa direção começou precisamente quando os físicos procuraram se libertar das amarras do principio de equivalência e iniciaram uma sistemática investigação dos efeitos da curvatura do espaço-tempo sobre a dinâmica dos corpos. E, de modo mais amplo, das relações entre as propriedades globais do universo e suas propriedades locais, ou seja, ir além da descrição usual dos fenômenos que prioriza o uso de equações diferenciais, que envolvem unicamente qualidades locais e se expressam por contiguidade. A descoberta de que no universo profundo existem processos novos, provocados pela influência da curvatura do espaço-tempo sobre a matéria, foi o início explicito da terceira revolução na física.
Dessa análise de elaboração da terceira revolução na física, aprendemos que as leis cósmicas exigem uma investigação das propriedades da curvatura do espaço-tempo naquelas regiões onde ela é extremamente intensa. Como no cenário convencional da cosmologia, a curvatura depende somente do tempo cósmico, segue a dependência com o tempo cósmico das leis físicas (terrestres) extrapoladas ao universo e que chamamos leis cósmicas. Somos levados assim a afirmar a historicidade da dinâmica do universo.
O reconhecimento de que as leis cósmicas são históricas e a necessidade de esclarecer a interpretação e o significado da variação da lei física, torna necessário reformular a atividade cientifica na construção de uma representação do cosmos.
Assim, limitando a dependência atual da orientação da ciência de seus aspectos práticos, focando em uma descrição completa da evolução da matéria e energia em todo espaço-tempo, estamos reconstruindo o encantamento do universo.
O próximo passo seria investigar a profundidade da alteração na concepção da ciência que decorre dessas modificações das leis físicas, bem como o status que devemos atribuir às leis cósmicas.
COMENTÁRIO FINAL
A ordem que os físicos atribuem ao universo pode ser entendida de duas formas:
- As leis físicas são “a priori”, embutidas no universo desde o momento de sua criação: posição ortodoxa;
- Elas são consequências da sucessão de organizações anteriores, de universos que antecederam esse nosso: uma proposta fora da ortodoxia.
Ao reconhecermos a variação das leis físicas no universo somos levados inevitavelmente a aceitarmos a solução 2 acima.
Devemos lembrar aqui que a dependência das leis físicas com o tempo cósmico deve ser entendida como parte intrínseca da solidariedade do universo. Essa solidariedade pode ser entendida como coerência, capaz de permitir a existência desse universo por um tempo longo. Trata-se de uma evolução cósmica não dirigida, aleatória, que pode ocorrer em diversas configurações (de curta duração) de universos menos estáveis, até que uma situação suficientemente estável (para o desenvolvimento de estruturas inomogêneas) aconteça.
A ortodoxia na ciência requer a estabilidade das leis físicas. Quando essa condição é violada, como vimos neste texto, propostas relegadas a plano secundário passam a ser revistas e examinadas com mais atenção. Ao começar a ter sucesso na refutação ao pensamento dominante, criticando suas aparências e seus fundamentos, a posição não ortodoxa dá sinais evidentes de querer se transfigurar, com paixão, em uma nova ortodoxia.
Se não quisermos adotar, como saída desse impasse, dessa dualidade, alguma hipótese que esteja fora de nosso controle racional, somos obrigados a empreender uma critica permanente no jogo de representação do universo.
A história da evolução das ideias na ciência – e possivelmente também fora dela – leva a imaginar que essa crítica duradoura, continuada, esse verdadeiro trabalho de Sisifo é interminável.
Uma observação adicional.
No microcosmos descobrimos átomos. Aumentando a energia dos instrumentos de observação, encontramos alguns elementos comuns a todos átomos: proton, nêutron e eletron. Indo mais além, com máquinas mais energéticas, dividimos o proton em elementos mais íntimos, os quarks. Em um primeiro momento, a teoria proibiu esses quarks de aparecerem livres para nossas investigações. Mas independentemente dessa certeza, continuamos a aumentar a energia de nossos esmagadores de partículas, procurando configurações mais intimas.
No macrocosmos, avançamos para além de nossa via láctea. Descobrimos a existência de centenas de milhões de galáxias. Nos detivemos no suposto big bang de energia fantasticamente elevada. Mas a teoria não se deixou limitar, nem por teoremas de eminentes sábios ingleses, e os teóricos formularam modelos com bouncing, possuindo uma fase de colapso gravitacional, anterior a essa de expansão atual do universo.
Que podemos esperar onde essas sucessivas penetrações na natureza nos conduza?
Esperaríamos um momento final dessa série de estruturas, se aceitássemos que essa sucessão de configurações é somente “da natureza” e não contém nenhuma contaminação de nossa representação dela. Chegaríamos assim à “verdadeira essência última” da matéria e do universo.
No entanto, devemos ter em mente que a natureza não conhece equação diferencial, mas sabe muito bem o que ela representa.
Ao considerar a posição de que não estamos “descobrindo leis da natureza”, mas sim estamos representando seu comportamento pela criação de “leis da natureza”, então não podemos esperar que essa invasão da intimidade da matéria e do espaço cósmico tenha fim.
Ou seja, nos deparamos uma vez mais com aquela infindável sequência de ortodoxia e contra-ortodoxia, que vimos comentando.
SUBSÍDIOS TÉCNICOS
Os leitores interessados em aprofundar os argumentos aqui apresentados podem acessar as seguintes referências:
- M. Novello: Manifesto Cósmico im www.cosmosecontexto.org.br
- Catherine Larrère et al em « Y a-t-il du sacré dans la nature ? (Ed. de La Sorbonne, Paris, 2014.
- P. A. M. Dirac in Nature 139, 323 (1937) ;
- Sambursky:Static universe and nebular red shift in Physical Review vol 52 (1937) 335 ;
- Vitaly N. Melnikov, Variation of constants as a test of gravity, cosmology and unified models arXiv 0910.3484v1 gr-qc (2009) ;
- Vitaly Melnikov .. Gravity as a key problem of the Millenium, arXiv:gr-qc/0007067 (2000);
- Novello and P. Rotelli in J. of Physics A, vol 5, pg.1488 (1972)The cosmological dependence of weak interaction.
- Hanna Arendt in The burden of our time (Londres, Ed Secker e Warburg, 1951 citado por Paul Clavier
- Paul Clavier, Les avatars de la preuve cosmologique, Ed ELLiot, Paris (2023)
- Ver https://cosmosecontexto.org.br/atualidade-de-giordano-bruno/
- W. Heisenberg: Quantum theory of Fields and elementary particles in Re. Mod. Phys, 29 (1957)
- Jean-Pierre Faton d´Anton : L´horreur du vide (CNRS,1978).
- Segundo o astrofísico T. X. Thuan, sua rejeição de uma ciência tecno-cientifica orientada para a utilidade, se deve a que, enquanto cientista, ele pretende afirmar uma aliança reencontrada entre o homem e o universo. E, continua, …” é porque me encanto diante da beleza do mundo e que sinto seu mistério, que eu me tornei um cientista”.
[1] Seguindo Émilie Hache, entendemos aqui por capitalismo um conjunto de práticas e de decisões ligadas ao sistema de produção que não respeita nada, que não tem limite na deformação da natureza, que não se importa com as consequências de seus atos, gerando catástrofes ambientais que ocorrem e que certamente irão acontecer em futuro próximo.
[2] Estamos falando de tempo cósmico, único, para todos os observadores. Essa hipótese, feita pelos primeiros cosmólogos, constitui uma escolha de representação, permitida graças às ideias do matemático alemão Carl Gauss. Segundo ele, sempre é possível (pelo menos em um domínio local) fazer uma escolha de sistema de coordenadas que representa a separação do espaço tri-dimensional e de um tempo global. No entanto, a extensão para todo o universo desse sistema nada mais é do que uma hipótese de trabalho.
[3] É verdade que apareceram, aqui e ali, conjecturas segundo as quais uma eventual terceira revolução deveria ser considerada, como consequência do enorme desenvolvimento tecnológico ocorrido no século 20, graças ao aperfeiçoamento do poder de cálculo e da sofisticação dos computadores. Uma análise, mesmo que superficial, desse progresso tecnológico, torna evidente que essas novas técnicas, limitam-se a facilitar os modos de produção cientifica, não produzem as ideias que, essas sim, são capazes de causar modificações fundamentais de nosso conhecimento sobre o universo.
Se as leis físicas fossem absolutas e eternas, a noção de começo (singular) do mundo pareceria natural, como descrita no modelo cosmológico de Friedmann. No entanto, a dependência cósmica das leis físicas transforma radicalmente essa questão. É a partir dessa constatação que examinamos, nesse diálogo entre diferentes modos de olhar o mundo, a questão do tema dessa conferência.
A questão de saber se o mundo é contingente é uma questão metafisica que a Cosmologia pretendeu assumir. A partir da instabilidade do vazio concluiu-se que o universo estava condenado a existir. Ou seja, não é contingente. O vazio quântico (que estaria na origem da formação do mundo) não é o nada metafisico e, certamente não poderia ser, pois não se trata de uma proposição, mas de um processo físico. Só podemos entender essa situação (origem do mundo pela instabilidade do vazio quântico) se aceitarmos que estamos considerando o fenômeno da criação como um processo físico.
[6] A sacralização da Natureza (cf Catherine Larrère) levou à aceitação de que as leis da natureza são descobertas – e não construídas por nós. Essa interpretação torna difícil admitir que, ao termos acesso a uma lei, ela não seja declarada universal, eterna e intocável.