O Eterno Começo
Em minhas palestras sobre cosmologia fazem-me insistentemente uma pergunta sobre a motivação pela qual uma grande maioria de físicos aceitou a identificação do momento de extrema condensação do universo, no valor mínimo do volume total do espaço, como se fora o começo de tudo. Ou seja, identificar o chamado BigBang ao início do universo.
Em verdade, essa é uma questão que sai dos domínios da física e que deve ser respondida por um sociólogo ou por um historiador da ciência.
De minha parte, posso apresentar as razões que levaram a mim e a vários cosmólogos a rejeitarem essa identificação simplista.
Vamos começar por fazer uma breve revisão da interpretação de observações astronômicas ao processo de expansão do volume do universo.
O território para entendermos racionalmente essa expansão é a interação gravitacional, pois é ela que controla todo processo de descrição da geometria do espaço-tempo.
A teoria que melhor descreve os processos gravitacionais ainda é a Relatividade Geral proposta por Albert Einstein há mais de um século. Segundo a solução descoberta pelo cientista russo Alexander Friedmann, essa teoria admite uma descrição da estrutura geométrica do espaço-tempo global como um processo dinâmico. Dito de modo simples, tudo se passa como se o volume tridimensional da totalidade espacial variasse com o tempo cósmico.
Essa solução de Friedmann passou a ser a explicação padrão do universo em suas grandes linhas, embora ela tenha uma característica extremamente desagradável: ela possui uma singularidade, isto é, em algum momento no passado, o volume total do universo teria sido reduzido a um ponto geométrico, seu volume seria literalmente zero.
Como consequência, todas as quantidades físicas relevantes (densidade de energia, temperatura, etc.) atingiriam nesse ponto o valor infinito.
Ora, sabe-se de longa data que os físicos detestam infinito. Isto é, quando uma teoria admite uma solução na qual alguma quantidade física atingiria o inobservável valor infinito significa que essa teoria deve ser modificada, pelo menos nas proximidades da região onde esse valor infinito poderia ocorrer.
Se essa singularidade existisse realmente em nosso universo, isso significaria que o programa de análise racional do universo, iniciado no século XVI por Brahe, Kepler, Galileu e outros não poderia persistir. O universo seria “irracional” em seus mometos mais importantes, em seus “primórdios” do qual tudo o que seguiu deveria estar dependente.
Essa situação não é exclusiva da força gravitacional, mas é geral. Lembro de uma situação semelhante na época de meu mestrado.
Em 1968, meu orientador de tese de mestrado, o professor José Leite Lopes, sugeriu como tema, eliminar as divergências – os infinitos – que aparecem ao longo da linha de universo do eletron, na teoria eletromagnética de Maxwell.
Eu lhe perguntei por que razão ele estava interessado em suprimir essa singularidade.
Ele respondeu mais ou menos o seguinte: se você tiver uma teoria que permite um processo que tenha um valor infinito, você está em dificuldades mais sérias do que se violar a segunda lei da termodinâmica, o que para um físico, é um escândalo formal.
Segue então a pergunta: como essa ideia de singularidade do modelo cosmológico de Friedmann se sustentou? Por que ela dominou a interpretação dos momentos iniciais da atual fase de expansão do espaço-tempo global?
Em um primeiro momento, aqueles que consideravam essa singularidade extremamente desagradável, argumentavam do seguinte modo. Essa solução de Friedmann, embora realmente descreva uma parte da história do universo, muito possivelmente não descreve toda sua história. Isso talvez esteja relacionado às simetrias exageradas que essa solução possui. Outras soluções, com menos simetria, poderiam possivelmente descrever melhor aquela região onde o modelo de Friedmann prevê uma singularidade.
Com efeito, como as equações da relatividade geral são bastante difíceis de serem resolvidas, os físicos procuram simplificar as propriedades que uma solução deveria ter. Por exemplo, o cenário de Friedman descreve um universo espacialmente homogêneo e isotrópico. Então, se dizia, possivelmente a origem dessa singularidade estaria relacionada a essas simetrias e um universo com menos simetrias, talvez mais realista, poderia contornar essa situação e exibir uma geometria sem singularidade, e igualmente adaptável às observações astronômicas.
Essa argumentação dividia os físicos. Foi então, ao longo dos anos 1960 que apareceram argumentos matemáticos sob formas de teoremas, que derrubaram por terra essa argumentação.
Com efeito, os teoremas pretendiam mostrar que em situações bastante gerais, independentes de existência de simetrias, a singularidade seria inevitável.
Esses chamados “teoremas da singularidade” foram propostos por Penrose, Hawking, Ellis e outros. Penrose os apresentou em conferências em 1964 em Les Houches (França) e na conferência Battelle (1967).
Embora esses teoremas sejam bastante sofisticados para serem expostos aqui, a essência deles pode ser resumida como segue.
A inevitabilidade da existência de uma singularidade nas equações da gravitação ocorre se forem válidas as seguintes condições:
- A geometria do espaço-tempo é descrita pelas equações da Relatividade Geral;
- A interação entre a matéria (sob qualquer forma) e a gravitação é feita através de um acoplamento mínimo;
- Ausência de pressões muito negativas ( os valores da energia + pressão deve ser igual ou maior que zero);
- Os caminhos dos fótons não podem desaparecer do espaço-tempo.
Esses teoremas, de difícil demonstração, envolvendo considerações globais, para além das convencionais e usuais estruturas matemáticas de equações diferenciais usadas pelos físicos, transformaram a existência possível do cenário cosmológico de Friedmann como inevitável para a grande maioria dos físicos.
A acreditar no cientista russo Vitaly Melnikov, esses teoremas nada mais são do que um “tigre de papel”. Isto é, a singularidade parece ter sido demonstrada como inevitável, mas isso nada mais é do que uma cortina de fumaça.
Onde reside o ponto fraco dos teoremas? Principalmente nos itens 2 e 3 e, em especial, na hipótese de que a interação da matéria com a gravitação não envolve nenhuma função da curvatura do espaço-tempo. Essa característica é válida na superfície da Terra e em suas vizinhanças porque o campo gravitacional nessa região é fraco. No entanto em domínios onde a intensidade gravitacional é muito forte, por exemplo, na região extremamente condensada do universo, não se pode negligenciar a ação da gravitação através de sua curvatura. Ou seja, as condições de aplicabilidade dos teoremas não seriam então cumpridas.
Foi exatamente dessa forma, examinando os efeitos da curvatura do espaço-tempo sobre o processo de interação com a matéria que modelos cosmológicos sem singularidade, exibindo o fenômeno de bouncing, que em 1979 apareceram as primeiras soluções analíticas das equações da Relatividade Geral descrevendo universo sem singularidade, eterno.
Os brasileiros do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Rio de Janeiro (Novello e Salim) usaram acoplamento direto com a curvatura entre os fótons e a gravitação; os russos do Institute of Gravitation and Cosmology de Moscou (Melnikov e Orlov) usaram outra forma de interação direta entre um campo escalar de longo alcance e a curvatura. Os detalhes dessas propostas foram apresentados em várias ocasiões e nas referências citadas abaixo.
Nesses cenários com bouncing o universo teria uma fase de colapso seguida de uma fase de expansão. No momento de transição o volume do universo teria um valor muito pequeno, mas diferente de zero, significando a ausência de singularidade.
Dez anos depois (1989) os principais sustentadores e divulgadores do BigBang (Hawking e Penrose) propuseram modelos cosmológicos sem singularidade, o que finalmente despertou a curiosidade da comunidade científica brasileira para esses tipos de universo. Entretanto, os meios de comunicação (exceto algumas revistas americanas como Quanta magazine) continuam a identificar o ponto máximo de condensação do universo ao seu “começo”.
Por que essa necessidade de imaginar um começo irracional do universo? Questão de difícil resposta.
Duas estudantes de física de universidade paulista (Mariana Milani e Camila Hardt) que durante um ano examinaram comigo diversas questões de cosmologia, se interessaram por investigar essa razão, dedicando-se à tarefa de entender os argumentos dos físicos e, complementarmente, a motivação das pessoas que organizam os meios de divulgação.
Eu também me perguntava com frequência, por que os cientistas aceitam propagar ideias sobre o começo do mundo via BigBang, quando essa é uma matéria já bastante ultrapassada pelos cosmólogos.
Eu entendi um pouco a posição da comunidade científica quando em uma de minhas visitas à Universidade de Lyon (França) para dar conferências sobre o cenário do Universo Eterno tive um diálogo esclarecedor com meu colaborador francês, o físico Edgar Elbaz. Explico o que aconteceu.
Uma noite fui convidado a dar uma palestra sobre o estado atual da cosmologia no anfiteatro da prefeitura para o público em geral, a grande maioria de profissionais de outras áreas, principalmente filósofos, pois esse evento tinha sido organizado por um professor de filosofia. Nessa noite, eu e Elbaz, fomos a pé da Universidade para o auditório. No caminho para o local da conferência aconteceu o seguinte diálogo.
Escuta, Novello, eu conheço bem a tua crítica ao modelo convencional BigBang. Mas veja bem, eles não vão entender o que você pensa sobre isso. O BigBang já está em todas as páginas dos jornais, nas reportagens da televisão, em todos os meios de divulgação. Se você começa por dizer que o BigBang não foi o começo do universo e que o universo teve um começo há muito mais tempo do que o cenário convencional, eles vão perguntar o que aconteceu então para o universo existir?
Ótimo, eu disse, essa é uma boa pergunta. Podemos responder a isso.
Sim, mas se depois você comentar tua proposta de que o universo não podia não existir devido à instabilidade do vazio quântico, eles vão perguntar o que é isso.
Ótimo, eu disse, eu posso explicar de modo simples essa ideia.
Dessa conversa, entendi que a comunidade científica preferia passar ao público de não-especialistas, uma imagem simplista aceitando que essas pessoas não entenderiam uma explicação mais realista, mas mais complexa. Creio que essa é uma atitude bastante temerária. Isso porque, depois de instalada na cabeça das pessoas essa identificação do BigBang com o “começo de tudo”, fica extremamente difícil que se aceite uma outra explicação, mesmo que mais racional e contando com o aval dos cientistas especialistas.
A principal argumentação daquela minha palestra pode ser resumida da seguinte forma.
A instabilidade do vácuo quântico, um vazio cheio de opostos que se cancelam, está na origem da explicação do Universo Eterno. Nesse cenário, o estado final é semelhante ao estado inicial, ou seja, uma enorme quantidade de matéria e antimatéria que se cancelam produzindo um vazio no mundo quântico. Isso tem uma notável consequência: a possibilidade de existir ciclos no universo. Ou seja, a instabilidade do vazio leva a afirmar que o universo estava condenado a existir, o universo não podia não existir.
Referências
Mario Novello: Do BigBang ao Universo Eterno, Ed. Jorge Zahar, 2010.
Mario Novello e Santiago Bergliaffa: Bouncing Cosmologies in Physics Reports, vol 463 (2008).