O Empirismo Transcendental e a Cosmologia Física
Guiados pelo farol na noite escura1, buscamos permitir que a diferença possa ser expressa como primeira e não mais submetida à identidade dos conceitos na representação. Diferença não é diversidade. Diversidade é dada, mas diferença é aquilo pelo qual o dado é dado, aquilo pelo qual o dado é dado como diverso.
A representação inaugurada por Aristóteles está organizada em duas metades: uma (o logos) referente aos conceitos e outra (ontológica) referente aos entes ou coisas. Semelhança e analogia são os artifícios que permitem que a diversidade do mundo empírico seja identificada com os conceitos. Na representação, tudo o que existe convém no ser e difere no gênero e na diferença específica. A diferença aparece sempre como uma diferença externa e submetida à identidade do conceito (ex. animal racional). A representação nos gregos, como mostra Colli2, é puramente objetiva, não há a dimensão da subjetividade.
Para termos um primeiro contato com a diferença, antes que ela seja domada e submetida à representação, é necessário retomar a problemática de Platão antes de a representação ser organizada.
Uma vez organizada, a representação sustenta seus próprios enunciados, a verdade é sustentada pela consistência lógica dos conceitos na representação e é segundo esses critérios que Aristóteles critica Platão por nele não haver o termo médio. Para Platão, no entanto, o problema era outro, não era o de identificar a coisa e referi-la ao conceito no entendimento. Platão busca estabelecer a linhagem pura, como quem separa o ouro dos demais metais. Na época de Platão, quem sustenta o valor do enunciado é quem o enuncia. Logo a questão de Platão é identificar quem pode falar. É para isso que ele inventa o método da divisão: sempre partir de dois, selecionar o mais apto e deixá-lo à direita, buscar outro pretendente, julgar o novo par e deixar novamente o mais apto à direita e assim sucessivamente, até chegar ao verdadeiro pretendente.
Nesse procedimento, denominado dialética, Platão faz sempre intervir um mito, que servirá de fundamento para julgar os pretendentes. A verdade necessita então de um fundamento, para Platão sempre um mito, e de um enunciador qualificado. Segundo o diálogo Fedro, onde aparece o mito da transmigração das almas, aquele que sabe é quem melhor lembra as ideias contempladas pela alma antes de encarnar no corpo. Assim, o que sabe é aquele que retém o que viu e copia o modelo: as Ideias Eternas3 contempladas pela alma. O simulacro é uma cópia sem modelo. Note que a diferença produtiva aparece, mas é referida ao modelo e o simulacro, a cópia sem modelo é desqualificada. No mundo antigo, em especial para Platão, a alma é a fonte de todo o movimento, mas só a alma que lembra o modelo fará boas cópias. O sofista não copia nenhum modelo, assim só produz simulacros. Platão busca restaurar a ordem, maculada pelos sofistas, nos moldes do império egípcio antigo e a refere a um modelo eterno e transcendente. A desordem decorre do esquecimento do modelo. No diálogo O Timeu, Platão monta um modelo cosmológico, uma Totalidade fechada, sem fora para evitar a corrupção, que é utilizada como modelo pelo Demiurgo para construir o mundo.
Nossa questão é pensar a diferença.
Uma vez instaurada a representação, a diferença deixa de apresentar-se ao pensamento, aparece apenas como diferença externa, a diferença específica no interior do gênero. A verdade agora não depende mais de quem a enuncia, mas tem seu fundamento na consistência do discurso, independente daquele que o enuncia.
Vamos agora fazer um deslocamento; nossa questão continua a mesma, mas agora a dimensão da subjetividade já está presente. Para compreender como isso ocorre recomendamos uma leitura da obra de Foucault. Em Descartes, como está descrito nas meditações, vamos encontrar um panorama distinto. “O problema do começo em filosofia foi sempre um problema difícil. A ciência pode erguer-se em pressupostos objetivos e a partir daí desenvolver-se em uma axiomática. O mesmo não ocorre com a filosofia. Descartes não quer definir o homem como um animal racional, porque tal definição supõe explicitamente conhecidos os conceitos de racional e de animal. Ele busca conjurar todos os pressupostos objetivos que sobrecarregam os procedimentos que operam por gênero e diferença.” O eu penso, no entanto, é apenas uma aparência de começo, remete todos os pressupostos ao eu empírico e supõe que cada um saiba o que significa pensar, eu e ser. É assim que surge o conhecido enunciado penso logo existo. Descartes, juntamente com Galileu, estão enunciando algo novo: uma separação, o mundo será formado por res extensa e res cogita; corpo e alma; matéria inerte e corpos vivos. Modo distinto ao dos gregos para quem a Physis era viva. Essa distinção está na base, no fundamento da ciência moderna e em especial naquela que foi tomada como modelo para as demais ciências: a física. Ressoa aqui o imperativo da gênese judaico-cristã: crescei, multiplicai-vos e dominai o mundo.
É bem conhecido o aspecto marcante do pensamento de Galileu em oposição à física de Aristóteles: as leis físicas, os conceitos utilizados, se referem a uma situação ideal exemplificada por aquela onde um corpo, livre da ação de forças, se mantém em movimento retilíneo uniforme. Desse modo se funda a ideia de limite que coloca como termo final de uma série de aproximações sucessivas o conceito ideal que no mundo empírico só pode ser aproximado. Esse modo de produzir conceitos se torna marcante em todo o desenvolvimento da mecânica e do modo de organizar o mundo que se desenvolve a partir desses fundamentos, adicionando a eles o princípio de causalidade e dando origem ao que ficou conhecido como mecanicismo. Aquilo que pode ser mecanicamente reproduzido e repetido é selecionado nos fenômenos para formar uma axiomática que permita formar uma imagem onde o mundo se torna previsível, ao menos em termos de probabilidades. O materialismo científico, originado a partir desses elementos, coloca como constituintes da matéria, elementos representados por conceitos abstratos inteiramente espacializados, livres de variáveis intensivas e sem interação com o resto do mundo. Essa modelagem ideal dos constituintes do real está na base da distinção entre o mundo físico e o real, onde nenhum elemento, a não ser artificialmente, pode ser separado da duração. O mínimo pensável do real é o agenciamento.
Kant, motivado pelo sucesso da ciência moderna, resolve aplicar à metafísica o método do pensamento científico e instaura assim o que foi denominado revolução copernicana: ao invés de a mente se moldar e determinar pelos objetos, os objetos é que têm de se conformar aos modos da mente. Está fundado assim o pensamento crítico. A questão de Kant é estabelecer os fundamentos necessários mínimos à consistência de toda a experiência possível. Os elementos básicos que temos de recolher aqui são: a necessidade de objetividade, de repetição e dos limites inerentes a toda experiência possível e ao saber que pode ser dela obtido. Não observar esses limites, estender os saberes obtidos na experiência para outros domínios, é uma das fontes de ilusão da consciência.
Kant retoma a dúvida cartesiana e coloca a seguinte crítica. Penso logo existo, Eu sou uma coisa que pensa. Aparece aqui o indeterminado Eu sou e a determinação: penso. Nada se diz, no entanto, acerca da forma de determinação, como o Eu sou é determinado pelo pensamento. De modo semelhante ao modo como o objeto é constituído por matéria e forma, sendo o espaço a forma de determinação da matéria, Kant mostra que a forma de determinação do indeterminado Eu sou pelo pensamento é o tempo. A sua análise crítica, e isso qualquer um de nós pode experimentar individualmente, mostra com clareza que a única determinação que temos é a percepção do pensamento. Temos a intuição do pensamento, mas não temos nunca a intuição da nossa espontaneidade nem do Eu sou, que se evidencia assim como passivo e receptivo.
O Eu cartesiano fica assim irremediavelmente fissurado, fendido, separado por uma cesura em duas metades pelo tempo. A parte indeterminada, Eu sou, é o resultado de uma síntese do pensamento. Para entender esta passagem basta ler um romance de Sherlock Holmes ou recorrer ao mito de Narciso. Quando Sherlock Holmes é apresentado à enigmática cena, os objetos nela contidos se transmutam pelo investimento que ele faz constituindo-os como signos de um objeto implicado, ausente, mas agora implicado nos objetos da cena.
É assim que se constitui o sujeito transcendental que segundo Kant sustenta a unidade e identidade da apercepção, o eu penso que acompanha todo o desenvolvimento do pensamento autoconsciente, necessário a toda experiência possível. Kant mostra ainda a necessidade dos a priori que são, segundo ele, as intuições do espaço, do tempo e as categorias. Ambos necessários para que uma intuição externa se torne elemento de toda e qualquer experiência possível. Aparece também, na dedução transcendental de Kant, o senso comum (o uso acordante das faculdades), o bom senso (a organização causal que orienta o tempo do passado para o futuro), necessários, segundo ele, para a constituição da síntese dos objetos e do sujeito. O uso acordante das faculdades implica a imagem do pensamento fundada no reconhecimento, Deleuze observa que esse é o modo de funcionamento do pensamento em sua mais baixa potência.
Aparece nesta montagem a questão da síntese e determinação dos objetos, ou indivíduos, constituídos como matéria e forma. Aparece também o sujeito transcendental e o sujeito empírico, elementos necessários a toda experiência possível. É fundamental que o conceito de possível e suas implicações sejam explicitados devido à importância que ele ocupa na formulação da representação e na constituição dos saberes a ela associados. O que queremos salientar neste momento é que segundo esses saberes, no possível, não há nenhuma indicação de como um possível passa à existência, se torna atual. A representação é uma produção da consciência e da razão mediante o uso acordante das faculdades.O real, para a consciência e seu modo de ordenação linear, é sempre retrospectivo e o resultado de uma ordenação em função de uma lógica que visa a inteligibilidade e eficácia da ação. Vontade e consciência, assim como percepção, são sempre subtrativas; elas limitam e selecionam, de modo a reduzir a complexidade do sistema que é excessiva para ser funcionalmente expressa. O corpo como todo sistema complexo é imediatamente atual e virtual possuindo pontos críticos onde bifurcações e potenciais elevam a dimensionalidade do sistema. O atual tem sempre uma face voltada para o virtual, incorporal, mas inteiramente real, que pressiona buscando atualizar-se. A constituição desse virtual ativo e intenso não apenas mantém as diferentes tendências, incluindo as mutuamente excludentes, mas também as mistura em interações não lineares que aumentam as variáveis do sistema bem como sua sensibilidade. O virtual pode, abstratamente, ser pensado como tudo aquilo que age e reage no corpo em um intervalo inferior a meio segundo (duração mínima para ser sentida) e que tem uma forma não linear de relação que não obedece à lei do terceiro excluído, onde objetos paradoxais coexistem em um modo de ordenação diferente mas inseparável da forma concreta ativa e expressiva do corpo. A razão, em sua busca por ordenar e dominar o mundo, visando sempre a eficácia, torna explicito e espacializado o que está implicado no estado intenso e crítico da duração. A razão duplica a percepção com a representação de possibilidades. O emaranhado virtual de passado-futuro intenso, realizado em potenciais interagindo não linearmente é desemaranhado em um futuro possível de relações extrínsecas, mutuamente exclusivas e linearizadas, estendendo-se em um espaço métrico abstrato constituindo a representação de um futuro possível. O pensamento agora torna-se reflexivo e espacializado, desprovido do que estava implicado de modo intenso nos potenciais. O emaranhado de potenciais é substituído por possibilidades de caminhos alternativos e separados. O real, contendo sempre estados críticos intensos, envolve variáveis intensivas e uma dinâmica não linear atual e virtual que será necessariamente diminuída pela representação possível da consciência. Nele estão presentes pontos críticos que devem aqui ser entendidos como uma autorregulação entre duas ordens diferentes; diferentes organizações sistêmicas com seus caminhos de ação e reação. Ou ainda que constituem o limiar entre um antigo presente entropicamente desordenado segundo uma organização sistêmica futura4. Esses novos estados ordenados constituídos por estruturas dissipativas são explicados pelo fato de que na vizinhança do ponto crítico a sensibilidade e dimensão do sistema aumentam. O sistema passa a ter em conta variáveis às quais ele estava insensível, permitindo assim a atualização de um novo domínio do virtual.
Uma solução como a água do mar pode ainda encarnar outras estruturas. Isso ocorre devido a potenciais virtualmente presentes, mas que precisam de singularidades portadoras de informação, não no sentido de bytes como a de Shannon e sim no sentido de informação biológica5como a que deflagra, por exemplo, um processo de cristalização. Associada ao processo de cristalização aparece outro tipo de existência: uma existência individuada, perfeitamente determinada, real, porém, não atual. Existe em potência e necessita uma singularidade portadora de informação para se atualizar. Três modos distintos de existência: a estrutura cristalina virtual, a singularidade que deflagra o processo de cristalização e comunica a informação contida na estrutura virtual e o cristal gerado pelo processo. A informação deve ser entendida como uma comunicação, criada pela singularidade, entre duas ordens de realidades distintas, o atual e o virtual. Adotar a noção de recepção de informação como expressão essencial da operação de individuação implica que a individuação se efetua em certo nível dimensional (topológico e cronológico). Abaixo desse nível a realidade é pré-física e pré-vital, já que é pré-individual. “Acima desse nível há individuação física quando o sistema á capaz de receber informação de uma só vez; a seguir, essa singularidade inicial é desenvolvida e amplificada de modo não autolimitado. Quando o sistema é capaz de receber sucessivamente várias entradas de informação, capaz de compatibilizar várias singularidades ao invés de iterar por efeito cumulativo e por amplificação transdutiva6 a singularidade única e inicial, nesse caso a individuação é do tipo vital, autolimitada e organizada.”Esses elementos estão todos ausentes da representação que a consciência e o pensamento fundado no reconhecimento fazem do mundo.
Deleuze vai retomar o pensamento crítico de Kant e colocar nesse modo de representar e problematizar o real críticas que promoverão outra concepção do mundo. O ponto nevrálgico, onde o pensamento crítico e o pensamento especulativo se tornam indiscerníveis, é a questão da cesura ou fissura do Eu. O que Deleuze aponta com muita precisão é que o sujeito empírico, associado à percepção, bem como o sujeito transcendental, deixam de ter o tempo como um mediador, ambos estão no tempo, têm sua gênese no tempo. Não nos cabe neste texto dar desenvolvimento à novidade que Kant traz ao conceito de ideia. Segundo ele não há na Ideia qualquer identificação ou confusão, mas uma unidade problemática interna do indeterminado, do determinável e da determinação, “a Ideia retoma os três aspectos do Cogito: o Eu sou, como existência indeterminada; o tempo, como a forma sob a qual esta existência é determinável; o eu penso, como determinação”. Para Kant, no entanto, dois desses momentos têm características extrínsecas, a Ideia em si mesma é indeterminada, ela só é determinável em relação aos objetos da experiência e só contém o ideal de determinação em relação aos conceitos do entendimento. Para Kant esses três momentos são encarnados em Ideias distintas: o indeterminado (Eu), o determinável (Mundo), o ideal de determinação (Deus ou as Leis da Natureza). Kant constitui a dimensão transcendental tendo por base o empírico e desse modo restringe o transcendental que é de outra natureza. Há aqui uma semelhança com Platão e talvez seja uma motivação comum que os aproxima. Platão para a divisão antes de atingir a diferença interna e coloca em seu lugar um mito. Kant, ao constituir o transcendental referido ao empírico, toma a diferença por suas determinações externas, espacializadas, enquanto a diferença interna genética é de outra natureza, e fica assim excluída novamente.
Deleuze chama a atenção que o empírico é de outra natureza que o transcendental, ao vincular um pelo outro, a diferença é novamente apenas uma diferença exterior: o Eu sou é determinado pelo mundo e a consistência do mundo precisa de um transcendente, Deus (ou as Leis da Natureza) como o limite e a garantia de todo o saber possível.
Deleuze introduz então suas bem-conhecidas torções: recoloca o sujeito e o objeto na multiplicidade do fluxo do tempo, assim o tempo deixa de ser interior à subjetividade e se torna a multiplicidade qualitativa denominada Duração. No lugar do sujeito transcendental, necessário para dar consistência a toda experiência possível segundo Kant, agora dissolvido, Deleuze coloca o Eterno Retorno cuja consistência, partindo desse momento supremo e esquizofrênico em que o pensamento atinge sua máxima potência, permite pensar a diferença e o pensamento genético. É a diferença agora que reúne e articula imediatamente o que ela distingue. Identidade, sujeito e objeto agora são ditos secundariamente da diferença mediante o uso de conceitos tais como semelhança e analogia. É assim que nasce o empirismo transcendental. A questão não é mais a de estabelecer as condições necessárias para toda experiência possível, mas sim estabelecer a razão suficiente para a gênese da experiência real. O princípio de causalidade do empirismo tradicional é abandonado em favor do princípio de razão suficiente. Um estado ou evento atual não tem como causa um estado ou evento anterior. Ambos os eventos são resultado da atualização de uma estrutura num processo dialético que envolve a estrutura transcendental e a sua atualização.7
A dificuldade, que às vezes ocorre, para entender esse deslocamento decorre de que parece evidente que a posição do barco no rio, em um dado momento, segue aquela do momento anterior. Esse é um exemplo de pensar de acordo com o complacente modelo do reconhecimento. Imersa diretamente na duração, a percepção torna-se paradoxal, não podemos mais decidir em que direção o devir se move. A sequência causal não é dada na intuição. “Alice cresce quer dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora.” Temos aqui o embrião do que funda o uso discordante das faculdades onde a representação e o reconhecimento são ultrapassados.
O sujeito só se constitui e pode ser encontrado como um elemento na multiplicidade do fluxo da experiência, sendo imerso nesse fluxo como um evento entre outros. Não há unidade dada do sujeito, o Eu pode apenas representar a espontaneidade de meu pensamento. Eu apenas experimento os efeitos de meu pensamento e não a espontaneidade do pensamento8.
Aparece aqui a distinção rigorosa entre saber, associado à representação, e aprendizado, relativo à experiência real e singular.
Essas torções e mutações, sofridas pelos conceitos de Kant na montagem de Deleuze, implicam ainda outros desdobramentos. O tempo deixa de estar subjugado ao movimento como medida do movimento, recebendo assim um caráter cardinal9. Concebido como transcendental, o tempo tem por base a noção de estrutura: passado, presente e futuro deixam de ser cardinais e se tornam ordinais. Nessa concepção ordinal, o passado é o que nunca foi presente, o presente é o que é sempre apenas presente e o futuro é o que nunca chega. Deixemos Deleuze esclarecer:
“Tendo abjurado seu conteúdo empírico, tendo revertido seu próprio fundamento, o tempo não se define apenas por uma ordem formal vazia, mas ainda por um conjunto e uma série. Em primeiro lugar, a ideia de um conjunto do tempo corresponde ao seguinte: que a cesura, seja ela qual for, deve ser determinada na imagem de uma ação, de um acontecimento único e formidável, adequado ao tempo inteiro. Esta própria imagem existe sob uma forma dilacerada, em duas porções desiguais; todavia, ela reúne assim o conjunto do tempo. Ela deve ser tida como símbolo em função das partes desiguais que subsome e reúne, mas que reúne como desiguais. Tal símbolo, adequado ao conjunto do tempo, se exprime de muitas maneiras: tirar o tempo dos eixos, precipitar-se no vulcão, matar Deus ou o pai. Esta imagem simbólica constitui o conjunto do tempo, na medida em que ela reúne a cesura, o antes e o depois. Mas ela torna possível uma série do tempo na medida em que opera sua distribuição no desigual. Há sempre um tempo, com efeito, em que a ação, em sua imagem, é posta como “grande demais para mim”. Eis o que define a priori o passado ou o antes: pouco importa que o próprio acontecimento tenha se realizado ou não, que a ação já tenha sido praticada ou não; não é segundo este critério empírico que o passado, o presente e o futuro se distribuem. O segundo tempo, que remete à própria cesura, é, pois, o presente da metamorfose, o devir-igual à ação, o desdobramento do eu, a projeção de um eu ideal na imagem da ação. Quanto ao terceiro tempo, que descobre o futuro ─ ele significa que o acontecimento e a ação têm uma coerência secreta que exclui a do eu, voltando-se contra o eu que se lhe tornou igual, projetando-o em mil pedaços, como se o gerador do novo mundo fosse arrebatado e dissipado pelo fragmento daquilo que ele faz nascer no múltiplo: aquilo a que o eu é igualado é o desigual em si. É assim que o Eu rachado segundo a ordem do tempo e o Eu dividido segundo a série do tempo se correspondem e encontram uma saída comum: no homem sem nome, sem família, sem qualidades, sem eu, nem Eu, o “plebeu” detentor de um segredo, já super-homem com seus membros esparsos gravitando em torno da imagem sublime.”10
Vamos retomar Kant. Ele coloca as bases para compreender a ilusão própria, involuntária e inevitável de toda representação. Resumidamente elas consistem em levar os saberes produzidos em uma experiência para além dos limites próprios e determinados nessa e por essa experiência. Há outra questão que queremos retomar e que ressoa com esta, mas que estava além dos saberes na época de Kant. É a questão do que acompanha a intuição do espaço e do tempo. Essas intuições necessárias a toda experiência possível, colocam a priori no sujeito transcendental basicamente todo o desenvolvimento da geometria euclidiana, que nessa época acompanhava a noção de espaço.
Algum tempo depois de Kant, um matemático alemão, um dos gigantes da matemática, mostrou que o conceito de multiplicidade contínua antecede o conceito de espaço11. Esse só pode ser formado tendo como fundamento e referente a multiplicidade contínua. Desse modo a geometria euclidiana deixa de ser a única geometria compatível com um dado contínuo extenso. Na verdade, Riemann demonstrou que infinidades de geometrias são possíveis. Riemann salienta ainda que essa indeterminação, que recai sobre a geometria adequada, deve ser resolvida atendendo às determinações do sistema físico geneticamente produzido com a multiplicidade onde ele se espacializa e determina a geometria. Deleuze irá montar depois uma gênese simultânea e inseparável para o espaço e os objetos neles contidos. Desse modo Riemann retira o a priori e a universalidade da geometria e os recoloca junto com o sujeito na multiplicidade do fluxo contínuo do tempo. No pensamento genético do empirismo transcendental, o indivíduo não será mais constituído como matéria e forma. A gênese do indivíduo pressupõe, sempre, um estado metaestável, rico em potenciais e variáveis intensivas, onde se desenvolve um processo de individuação12. Não há mais indivíduo vivo formado. O processo de individuação só acaba com a morte do indivíduo e então se inicia outro, o processo de decomposição pelos vermes ou pelo fogo. O mundo físico também será constituído por estados metaestáveis, pré-individuais e indivíduos que são a atualização de estruturas virtuais.
No começo do século XX, o universo passou a ser pensado como um Todo Aberto. O todo é sempre definido pela relação, ela não é uma propriedade dos objetos, é sempre exterior a seus termos. “Através do movimento no espaço, os objetos mudam suas respectivas posições. Mas, através das relações, o todo se transforma ou muda de qualidade. A duração é o todo das relações.” As relações têm uma realidade física e constituem os termos que entram nessas relações13. O todo é um contínuo, não tem partes, exceto num sentido muito especial, pois ele não se divide sem mudar de natureza a cada etapa da divisão14. Sempre nos é dada uma continuidade movente, onde tudo muda e permanece ao mesmo tempo; é artificialmente que esses dois termos, permanência e mudança, são dissociados para representar a permanência por corpos e a mudança por movimentos em um espaço homogêneo. O Todo Aberto substituiu a questão da Eternidade pela questão do Novo: como se produz a gênese do Novo.
Dois enormes retrocessos nesse brilhante desenvolvimento a favor da vida e do pensamento serão produzidos por Einstein. O primeiro é a restauração de uma geometria universal e única para o mundo físico. A geometrização da interação gravitacional, baseada na universalidade dessa interação, a mais fraca das interações ditas fundamentais que ocorrem no mundo físico, restaura a geometria como uma determinação a priori, universal, mesmo para os sistemas físicos onde a interação gravitacional é desprezível frente às outras interações determinantes da dinâmica física do sistema considerado. O outro retrocesso foi o de retomar o mito platônico de uma Totalidade, atualizada por Einstein como uma esfera tridimensional utilizada para conter e modelar o universo. Assim o universo volta a ser fechado como toda Totalidade. Este talvez seja o mito mais perverso que insiste no mundo contemporâneo amassando e limitando a vida para fazê-la obedecer aos ditames da razão universal a serviço dos interesses do estado.
A cosmologia física, fundada por Einstein, está em completo desacordo com o pensamento crítico de Kant e com os pressupostos que toda a experiência possível deve obedecer para evitar a produção de ilusões. A cosmologia física está fundamentada em princípios a priori transcendentes a toda experiência possível e, desse modo, ela não atende aos critérios científicos básicos. A cosmologia física está assentada em princípios transcendentes como, por exemplo, a invariância das leis da física no tempo e no espaço e a introdução de um espaço homogêneo e isotrópico obtido mediante um processo artificial de médias estatísticas. Além disso, interpretações de dados empíricos, só aplicáveis mediante a introdução de sofisticadas médias estatísticas, intervêm. O modelo que resulta para descrever o universo, após todos esses artifícios e simplificações, é expresso por uma equação diferencial com uma só variável independente. A equação diferencial assim obtida é a mesma que descreve a dinâmica de uma partícula clássica pontual, que se move em uma reta submetida à ação de um potencial variável. Ademais, na cosmologia física não há um único experimento possível, apenas observações de um passado remoto, observações e interpretações. Por esses motivos, a cosmologia física está muito mais próxima da literatura policial e da psicanálise do que da ciência física.
Por que então o enorme interesse que o Estado, ao longo de toda a sua história, sempre demonstrou pela cosmologia, em especial no mundo contemporâneo capitalista e globalizante?
Não vejo nenhuma diminuição em aproximar a cosmologia à literatura; talvez nessa aproximação se encontre a sua verdadeira vocação transcendental de colocar os problemas urgentes necessários para pensar a vida.
Frente ao que foi aqui exposto o modelo cosmológico, adotado pela cosmologia física, parece tornar-se escandaloso e simplista. Nesse contexto torna-se difícil entender a razão de seu sucesso. Para resolver esse enigma devemos seguir o conselho de Nietzsche: procurar sempre a motivação do pensador. Quando alertados para qual foi a motivação implícita de Einstein, o sucesso e o interesse em retomar esse modelo para o universo, adotado por Platão para restaurar o modelo do Império Egípcio Antigo na Grécia, tornam-se compreensíveis e justificados.
A motivação do fundador da cosmologia física.
Discurso pronunciado por Einstein nas Nações Unidas15.
“Um governo mundial tem de ser criado, que seja capaz de resolver os conflitos entre as nações por meio de decisões judiciárias. Este governo deve basear-se numa constituição sem ambiguidades, que seja aprovada pelos governos e pelas nações e que lhe confira, com exclusividade, dispor das armas ofensivas. … A segurança é indivisível. Só pode ser conseguida quando as necessárias garantias da lei e seu cumprimento forem efetivas em toda a parte, de tal modo que a segurança militar não seja mais um problema de um único Estado.”
Nem todos os cientistas pensam assim.
Motivação dos cientistas que trabalham com sistemas complexos16.
“A manutenção da organização na natureza não é ─ e não pode ser ─ realizada por uma gestão centralizada, a ordem só podendo ser mantida por uma auto-organização. Os sistemas auto-organizadores permitem a adaptação às circunstancias ambientais; por exemplo, eles reagem a modificações do ambiente graças a uma resposta termodinâmica que os torna extremamente flexíveis e robustos em relação às perturbações externas. Queremos sublinhar a superioridade dos sistemas auto-organizadores em relação à tecnologia humana habitual, que evita cuidadosamente a complexidade e gere de maneira centralizada a grande maioria dos processos técnicos. Por exemplo, na química sintética, as diferentes etapas reacionais são em geral cuidadosamente separadas umas das outras e as contribuições ligadas à difusão dos reativos são evitadas por braçagem. A superioridade dos sistemas auto-organizadores é ilustrada pelos sistemas biológicos, em que produtos complexos são formados com uma precisão, uma eficiência, uma velocidade sem iguais.”
Agradeço a Eduardo Bittencourt e a Mario Novello, meu pai teórico, pelas horas alegres onde discutimos estas questões e pelo estímulo recebido.
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Notas:
1 Modo carinhoso como Claudio Ulpiano se referia a Gilles Deleuze.
2 Colli G. Filosofía de la Expresión. Ediciones Siruella S. A., 1996.
3 Fique atento às mutações que as Ideias irão sofrer com Kant e Deleuze.
4 Veja o exemplo da instabilidade de Bernard, p. ex.,em; Entre o Tempo e a Eternidade, I. Prigogine, I. Stenger. Editora Gradiva 1990..
5 Ver “Information and its role in Nature. Juan G. Roederer”
6 Entendemos por transdução uma operação física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se propaga progressivamente no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre a estruturação de um domínio onde cada região estruturada serve de princípio de constituição da região seguinte, à semelhança de uma frente de onda.
7 Lautman A., Essai sur lês notions de structure et d´existence em mathématiques. Hermann, 1939.
8 Levi R. Bryant, Difference and Givenness. Northwestern University Press.
9 Isto nos remete à Décima Sexta Série da Lógica dos Sentidos: Da Gênese Estática Ontológica.
10 Deleuze G., Diferença e Repetição. Edições Graal Ltda.1988. Um desenvolvimento das ideias de Deleuze sobre o tempo pode ser encontrado no belo livro de Pelbart P., O Tempo Não Reconciliado. Perspectiva.
11 On the Hypotheses which lie at the Bases of geometry. Traduzido por William Kingdon Clifford. http://www.cs.jhu.edu/~misha/ReadingSeminar/Papers/Riemann54.pdf
12 Simondon G., L’individu et sa genèse physico-biologique, P.U.F., 1964.
13 Um exemplo é o processo de cristalização a partir do estado metaestável de uma solução de enxofre. Em condições apropriadas de temperatura e pressão.
14 Henri Bergson, Evolução Criadora.
15 Out of my Later Years, The Citadel Press. A. Einstein 1956. Existe uma tradução da Editora Brasiliense, 1983
16 Biebracher, Nicolis, Schuter. Self-Organization in the Physico-Chemical and Life Sciences, Relatório EUR 16546, European Commission, 1995.