O decênio decisivo
Prefácio do livro “O decênio decisivo” de Luiz Marques que será publicado em breve.
A União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN) publica regularmente a Lista Vermelha das espécies ameaçadas de extinção. Como se verá no capítulo 1, em 2021, a IUCN considerava que mais de 38.500 entre as 138.300 espécies avaliadas (cerca de 28%) encontravam-se em diferentes graus de risco de extinção, com 8.722 espécies consideradas criticamente ameaçadas. Curiosamente, a IUCN não inclui a espécie humana nessa Lista. Se a incluísse, seríamos contados, malgrado nossa abundância populacional e nossa presença generalizada no planeta, entre as espécies mais vulneráveis. Se continuarmos pelo caminho em que estamos avançando, teremos muito em breve de nos contar entre as espécies criticamente ameaçadas. Em nosso caso específico, o fator abundância populacional pode aumentar ao invés de diminuir as chances de extinção, dependendo de como nos organizarmos socialmente. Como bem explicita Paulo Saldiva, da Universidade de São Paulo, referindo-se aos impactos da emergência climática e da poluição sobre a saúde humana, está mais do que na hora de “fundar a sociedade protetora do ser humano”.[1]
A existência de instituições como o Future of Humanity Institute (FHI), de Oxford, criado em 2005 e do Centre for the Study of Existential Risk (CSER), de Cambridge, criado em 2012, atesta a amplitude da percepção de que o destino dos humanos e, em todo o caso, do projeto humano está em risco crescente. O conceito de risco existencial (X-Risk), vale dizer, o risco de extinção da espécie humana ou de aniquilação de seu potencial, ganha maior recorrência no universo das análises científicas ao menos desde 2002, com um artigo de Nick Bostrom, do FHI, no qual o autor procura defini-lo de modo mais rigoroso:[2]
“Risco existencial – um risco em que um resultado adverso aniquilaria a vida inteligente originária da Terra ou reduziria permanentemente e drasticamente seu potencial. Um risco existencial é aquele em que a humanidade como um todo está em perigo. Os desastres existenciais têm consequências adversas importantes para o curso da civilização humana para sempre”.
Em seu esforço de delimitar quase cirurgicamente esse conceito, tanto Bostrom, quanto Toby Ord,[3] do mesmo Instituto, procuram estabelecer uma linha divisória clara entre riscos existenciais e não existenciais. Uma objeção que se pode avançar a essa abordagem é o fato de que essa linha divisória não existe ou, se existe, não é claramente perceptível. É óbvio que uma guerra nuclear total representa, mais que um risco existencial extremo, uma certeza de extinção de inúmeras espécies, além da nossa. Tal como mostra o Bulletin of Atomic Scientists e como se verá detidamente no capítulo 9 (seção 9.8 A 100 segundos da Meia Noite. O retorno do cenário guerra nuclear), esse risco é real e possivelmente maior hoje do que nos piores momentos da Guerra Fria, dada a ausência de uma governança global democrática capaz de superar o horizonte mental primitivo do nacionalismo. Todavia, não sempre, e nem mesmo na maioria das vezes, um risco existencial se refere a um acontecimento extremo ou excepcional. Um risco existencial pode emergir de um processo cumulativo, resultante da combinação e da sinergia entre diversas crises e é exatamente este o caso em nossos dias, como procurei argumentar em outros textos.[4] Catherine Richards, do CSER, incorre no mesmo equívoco de entender o risco de extinção como um evento ou apenas na eventualidade de um cenário excepcional. Juntamente com seus colegas, ela afirma em um importante artigo de 2021 que “há uma crescente preocupação de que a mudança do clima coloque um risco existencial à humanidade”.[5] Para os autores, entretanto, esse risco passa a ser considerável apenas em um cenário extremo (a worst-case scenario):[6]
“Há uma emergente evidência de aceleração de alças de retroalimentação positiva e de desaceleração de alças de retroalimentação negativa. Essas alças de retroalimentação positiva exacerbam a possibilidade de um aquecimento global desenfreado (runaway global warming), estimado em 8oC ou ainda maior até 2100. Tais aumentos de temperatura representam perigos reais, ao deslocar o estreito nicho climático no âmbito do qual os humanos viveram ao longo de milênios.”
Para Richards e colegas, um risco existencial se configura apenas no caso de um aquecimento desenfreado. A conjectura “runaway global warming”, temida por um número crescente de cientistas (mas rejeitada pelo IPCC)[7], seria capaz de levar a Terra a condições que prevalecem hoje em Vênus. Essa conjectura pode ser interessante do ponto de vista científico, mas é ociosa do ponto de vista do destino dos organismos pluricelulares porque a grande maioria das milhões de espécies hoje existentes cessariam de existir sob condições muito menos extremas. Yangyang Xu e Veerabhadran Ramanathan assim categorizaram os riscos implicados em três níveis de aquecimento global:[8]
“>1,5 °C como perigoso; >3 °C como catastrófico; e >5 °C como desconhecido, implicando um nível além de catastrófico, o que inclui ameaças existenciais. Com emissões não controladas, o aquecimento médio pode atingir o nível perigoso dentro de três décadas, com BPAI (Baixa Probabilidade (5%) e Alto Impacto) de que o aquecimento se torne catastrófico até 2050”.
Baixa probabilidade (5%) em “até 2050”, por certo, mas não tão baixa até 2070. Em 1958, as concentrações atmosféricas de CO2 já estavam em 315 partes por milhão (ppm). Em 2013, elas atingiram pela primeira vez 400 ppm, as mais altas dos últimos 3 milhões de anos. Em 2020, elas já estavam em torno de 417 ppm, ou seja, cerca de 50% mais altas do que em finais do século XVIII. Entre 2022 e 2023, as concentrações atmosféricas de CO2 terão superado 420 partes por milhão (ppm). Elas estavam avançando nos anos 1960 à taxa média de cerca de 1 ppm por ano. Elas estão avançando agora a uma taxa média de 2,5 a 3 ppm por ano, com um aumento de 2,84 ppm entre janeiro de 2020 e janeiro de 2022 (veja-se capítulo 4, Figura 4.11). Isso significa que elas devem dobrar em relação ao período pré-industrial (280 ppm) antes de 2070. Muito provavelmente bem antes ainda de 2070, porque a taxa de aceleração desse aumento deve continuar, ela própria, aumentando. Os modelos climáticos mostram que as respostas do clima à duplicação das concentrações atmosféricas de CO2 (de 280 ppm para 560 ppm) podem levar a um aquecimento médio global mais provável entre 3oC a 4oC, claramente catastrófico, portanto, sem que tais modelos possam excluir a possibilidade de que esse aquecimento supere 4,5oC acima do período pré-industrial até 2100.[9] Ou mesmo mais, segundo outros modelos. Como bem lembra Jeff Tollefson, em sua análise das divergências entre tais modelos, “mesmo que o uso do carvão não aumente de forma catastrófica, 5°C de aquecimento pode ocorrer por outros meios, incluindo o derretimento do permafrost”,[10] pois este lançará quantidades crescentes de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Como discutido no capitulo 7, Tim Lenton e colegas mostraram, além disso, que mudanças abruptas e irreversíveis no sistema climático, com desdobramentos potencialmente fatais para a humanidade, podem ocorrer mesmo em níveis muito mais baixos de aquecimento.[11] Essa condição foi tematizada em 2018 por Will Steffen e colegas[12] e em 2020 por Chi Xu e colegas em um trabalho intitulado “O futuro do nicho climático humano”, igualmente abordado no capítulo 7 (seção 7.8 Conclusão: a diminuição do nicho climático humano).[13]
Os dados apresentados à COP26 pelo IPCC relativos à exposição e à vulnerabilidade a ondas de calor extremo, segundo três níveis de aquecimento médio global acima do período pré-industrial, são igualmente alarmantes: 1,5oC exporá 3,96 bilhões de pessoas (1,19 bilhão mais vulneráveis); 2oC exporá 5,99 bilhões (1,58 bilhão mais vulneráveis) e 3oC exporá 7,91 bilhões (1,71 bilhão mais vulneráveis). É possível, em suma, que essa exposição crescente ao calor extremo, assim como cada uma das grandes crises socioambientais que nos defrontam, quando examinadas isoladamente, não ofereça um risco existencial à humanidade. Mas a sinergia entre elas tem certamente potencial para tanto. Não é possível em tais circunstâncias traçar uma linha divisória clara entre um planeta local e momentaneamente inabitável e um planeta largamente inabitável pela espécie humana e por tantas outras. Pois para que uma região se torne inabitável basta que atinja sazonalmente picos de calor insuportáveis. O importante é entender que estamos galgando uma curva de risco sem marcos divisórios claros e que essa curva, que nos leva de um planeta mais hostil a um planeta inabitável e, portanto, à nossa extinção ou ao fim de nossas possibilidades de desenvolvimento, não apenas já está se desenhando, mas está se acelerando muito rapidamente.
Dadas essas constatações e projeções, a motivação para escrever este livro nasce de duas apostas otimistas. A primeira é que os anos decisivos para evitar esses cenários futuros extremos ainda estão diante de nós. São os anos do decênio em curso. Em outras palavras, ainda não seria tarde demais para evitar o pior. A segunda aposta, não menos otimista, é que seremos capazes de agir individual e politicamente ao longo deste decênio com a radicalidade requerida para reverter o que ainda pode ser revertido, mitigar o que ainda pode ser mitigado e, com isso, aumentar significativamente nossas chances de adaptação aos impactos vindouros do aquecimento global, do empobrecimento da biodiversidade e da intoxicação dos organismos pela poluição químico-industrial. Essas duas apostas baseiam-se numa condição sine qua non: a de que seremos capazes de construir um projeto social pós-capitalista, centrado na exigência do encontro da diminuição das desigualdades sociais com a diminuição das pressões antrópicas sobre o sistema Terra. Um programa político baseado nessa exigência não é apenas factível, mas é também o único possível se quisermos sobreviver como sociedades e, no limite, como espécie. Este é o sentido do subtítulo deste livro: propostas para uma política de sobrevivência. Este livro se pretende, portanto, como um chamado à radicalidade da ação política socioambiental e sua ambição maior é suscitar ou enfatizar o senso de urgência exigido pela situação atual.
[1] Citado por Roberta Jansen, “Mudanças climáticas vão aumentar risco de problemas de saúde”. O Estado de São Paulo, 12/IV/2022.
[2] Cf. Nick Bostrom, “Existential Risks. Analyzing Human Extinction Scenarios and Related Hazards”. Journal of Evolution and Technology, 9, 1, 2002: “Existential risk – One where an adverse outcome would either annihilate Earth-originating intelligent life or permanently and drastically curtail its potential. An existential risk is one where humankind as a whole is imperiled. Existential disasters have major adverse consequences for the course of human civilization for all time to come”; Idem, “Existential Risk Prevention as Global Priority”. Global Policy, 4, 1, Fevereiro de 2013, pp. 15-31.
[3] Cf. Toby Ord, Precipice. Existential Risk and the Future of Humanity, Nova York, 2020.
[4] Cf. L. Marques, “O colapso socioambiental não é um evento, é o processo em curso”. Revista Rosa, 1, 1, 2019; Idem, “Pandemics, Existential and non-Existential Risks to Humanity”. Revista Ambiente e sociedade, 23, 2020.
<https://revistarosa.com/1/o-colapso-socioambiental-nao-e-um-evento>.
<https://www.scielo.br/j/asoc/a/M6BMn4gtwyTZHnkWTDJDt8C/?lang=en&format=pdf>.
[5] Cf. Catherine E. Richards, Richard C. Lupton & Julian M. Allwood, “Re-framing the threat of global warming: an empirical causal loop diagram of climate change, food insecurity and societal collapse.” CSER, 19/II/2021: “There is increasing concern that climate change poses an existential risk to humanity”.
<https://www.cser.ac.uk/resources/reframing-threat-global-warming/>.
[6] Cf. Richards, Lupton & Allwood, cit. (2021): “There is emerging evidence of amplifying feedbacks accelerating and dampening feedbacks decelerating. These feedbacks exacerbate the possibility of runaway global warming, estimated at 8 °C or greater by 2100. Such temperature increases translate to a range of real dangers, shifting the narrow climate niche within which humans have resided for millennia.”
[7] Cf. IPCC 31ª Sessão, Bali 26-29 Outubro de 2009, p. 90: “a ‘runaway greenhouse effect’—analogous to Venus— appears to have virtually no chance of being induced by anthropogenic activities”.
[8] Cf. Yangyang Xu & Veerabhadran Ramanathan, “Well below 2 °C: Mitigation strategies for avoiding dangerous to catastrophic climate changes”. PNAS, 14/IX/2017: “>1.5 °C as dangerous; >3 °C as catastrophic; and >5 °C as unknown, implying beyond catastrophic, including existential threats. With unchecked emissions, the central warming can reach the dangerous level within three decades, with the LPHI [low probability (5%) of high impact] warming becoming catastrophic by 2050”.
[9] Cf. S. C. Sherwood et al., “An Assessment of Earth’s Climate Sensitivity Using Multiple Lines of Evidence”. Reviews of Geophysics, 22/VII/2020: “We remain unable to rule out that the sensitivity could be above 4.5°C per doubling of carbon dioxide levels, although this is not likely”.
<https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1029/2019RG000678>.
[10] Cf. Jeff Tollefson, “How hot will Earth get by 2100?” Nature, 22/IV/2020, pp. 444-446: “even if coal use doesn’t rise in a catastrophic way, 5°C of warming could occur by other means, including thawing permafrost”. <https://www.nature.com/articles/d41586-020-01125-x>.
[11] Cf. Timothy Lenton et al., “Climate tipping points — too risky to bet against”. Nature, 575, 28/XI/2019, pp. 592-595.
[12] Cf. Will Steffen et al., “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene”. Proceedings of the National Academy of Sciences, 9/VIII/2018
[13] Cf. Chi Xu et al., “Future of the human climate niche”. 117, 21, PNAS, 26/V/2020, pp. 11350-11355.