O Cosmos, a natureza, o mundo: segundo os sistemas, segundo a vida
Vivemos um tempo estranho, desafiador, excitante, em que não vemos mais o cosmos quando, relaxados ou apaixonados, olhamos o céu. Em que a Natureza já não é o outro da cultura, a origem do animal em nós, nosso irmão. E o mundo se identifica com o Globo, e o Globo com o achatamento de todas as diferenças vivas em benefício das eficácias produtivas. Um ‘mundo de resultados’, do qual são excluídos bilhões de pessoas que não podem seguir o mandamento do consumo, e, privadas de um tempo de esperança, talvez não tenham mais futuro. Tempo de um mundo que exclui. Portas fechadas, faróis apagados para os barcos das navegações noturnas dos migrantes do desespero. Uma Natureza que agora é nosso meio, no meio da qual vivemos como quem morre: podemos destruí-la, ela pode nos destruir. A noção de meio-ambiente expressa esse jeito novo da Natureza. No antropoceno, nossas relações são extremamente tensas. Há morte nelas. E um cosmos que não é mais o espetáculo das estrelas. O céu mudou. Tem matéria escura. Tem buracos negros. Explosões catastróficas. Leis físicas que se anulam. O cosmos, a natureza, o mundo perderam a paz. Muitos – os assustados – não os entendem mais, fecham os olhos, vão tratar dos seus assuntos. Outros – os místicos – também fecham os olhos (mystos fala de olhos fechados para ver melhor) e prometem um mundo pacificado, uma natureza fraterna, um cosmos absorvido por Deus. Mas há os que se encantam com esse momento extraordinário, em que estamos dispensados de repetir esquemas, liberados para a imaginação, a criação e a beleza. Alguns cientistas. Alguns filósofos. Alguns poetas. Os que sabem da História e têm amor ao tempo. E sabem que não foi sempre assim.
Os antigos filósofos, os pré-socráticos (século VI a. E.C.) foram chamados de físicos porque se perguntavam sobre o elemento regente da physis. Physis ainda não tinha sido traduzido por natura. Aristóteles ainda não tinha composto sua Física, ciência que tem a physis como objeto. A physis não era objeto: era força. Força cósmica. E cosmos não era o conjunto de tudo que está posto no espaço-universo. Era o equilíbrio, a ordem, a harmonia. Lei, justiça, beleza. Uma vez que tudo que há se multiplica e expande, é demasiado, cosmos expressa a contapartida do caos. Ordena, equilibra e produz harmonia. Não é o universo: é um princípio. Dança com o caos. Não há um sem o outro. A physis é então – foi então – a força cósmica (a que pertence o caos, na tensão dos contrários que não se resolvem, não precisam se resolver) que põe tudo presente, mantém tudo que há no seu aparecer, em que o mundo se mostra. Tudo – os homens e mulheres, os bichos, as pedras, os rios, as estrelas, os sonhos, os deuses – tudo está e se mantém pela força, que é physis, de fazer brotar do oculto, da noite, tudo aquilo que é, e vem à luz. A existência de um sujeito externo, posto fora e diante da physis, na atitude racional, antinatural de conhecer é totalmente estranha ao pensamento pré-socrático. O homem também é physis. Dá-se no mesmo fluxo de todas as coisas (foi como Heráclito experimentou a unidade de tudo) ou na permanência de tudo que não se altera, como propôs Parmênides. Sejam fluxo ou permanência, natureza, cosmos e mundo não se distinguem. A força que faz brotar tudo, e também oculta, é physis, que é cosmos e caos. Cosmos é a palavra que se usa para dizer mundo. E universo. – Essa imensa compreensão que os pré-socráticos tiveram da simultaneidade de ordem e desordem, equilíbrio e desequilíbrio, harmonia e desarmonia logo foi encerrada, no século seguinte, pelos sofistas. E uma operação de Aristóteles no século IV a. E.C. pôs esses antigos pensadores do século VI fora da história da filosofia. Só foram recuperados ainda há pouco, no século XIX. Vale a pena lembrar alguns dos seus nomes. Foram gigantes. Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, Empédocles, Zenão, Demócrito, Pitágoras, Heráclito, Parmênides. Se as grandes transformações paradigmáticas por que vamos passando nos desesperarem de avançar no pensamento, será bom nos lembrarmos deles. São excelentes faróis.
No século V a. E. C., filósofos que depois seriam desprezados ao limite máximo em que se pode desprezar filósofos, encontraram problemas para manter a tensíssima unidade cósmica dos seus antecessores. Não conseguiram sustentar a complementaridade extrema entre a força que dissemina, explode, diferencia – a physis – e a sua contrapartida gêmea, indissociável, a força (igualmente cósmica) que reúne, unifica, pastoreia as diferenças, a que os pré-socráticos tinham dado o nome de logos. Não suportaram mais a intuição filosófica de que algo e o seu contrário possam se pertencer umbilical e reciprocamente. Dissociaram physis de logos. Entenderam logos como razão, razão individual, e à physis reservaram a qualidade do caos. Chegaram a duvidar de que algo verdadeiramente existisse, pois que tudo é caos. Górgias, um dos maiores desses filósofos (foram chamados sofistas) abriu assim seu livro sobre a natureza: “Nem ser nem não ser são”. E outro dos grandes, Protágoras, produziu o famoso “o homem é a medida de todas as coisas; do ser das que são, na medida em que são; do não-ser das que não são, na medida em que não são”. E pronto. Logos = razão para um lado (o bom), physis = natureza para o outro (o mau). Heráclito, Parmênides e todos os seus companheiros de contemplação pensante da natureza, do cosmos e do mundo estão cassados. Natureza não é mais força, cosmos não é mais equilibro, mundo não é mais a brotação de tudo que se apresenta a partir da força que faz aparecer. Homem e Natureza estarão doravante em posições opostas. Insisto: doravante. Porque essa cisão durará de diversas formas até hoje. Por exemplo, no modo moderno de Sujeito e Objeto. Talvez as grandes perplexidades por que estamos passando sejam sinais de que o vigor dessa grande dissociação sofística esteja se esgotando.
O combate socrático-platônico-aristotélico aos sofistas, no século IV a. E. C., que fundou a filosofia oficialmente, e lhe deu a missão de buscar o conhecimento da verdade do mundo, foi a reação a esse desarranjo sofístico. Tratou-se, para esses grandes filósofos, de aprender a lidar com o caos. Duas estratégias foram experimentadas, então, para dar conta de uma unidade do mundo (não estamos mais na presença do cosmos e da natureza pré-socráticas) que tinha deixado de ser evidente. Platão unificou a dispersão caótica das coisas sensíveis sob o guarda-chuva das Ideas. Aristóteles lhes injetou substância, para estabilizá-las em si mesmas. Ambos fixaram padrões. Elaboraram paradigmas de fixidez.
Platão enfrentou o desafio de sair da cilada sofística da natureza-caos. Quis levar em conta a qualidade dispersa, múltipla, de tudo que nos rodeia, de onde provêm as aparências que só geram opinião (doxa) e as enganações que nos fazem tomar uma coisa por outra e nos enganarmos nas nossas percepções (pseudos). Enfrentou o desafio e estabeleceu o primeiro paradigma filosófico de uma história em que ainda nos reconhecemos: manteve a separação entre logos e physis proposta pelos sofistas, mas pôs em hierarquia essas duas ordens de ser. À dimensão inteligível chamou Idea, Forma pura. Tudo que existe corresponde a uma Idea. À dimensão sensível do mundo impôs a condição de copiar as Ideas. Boas cópias permitem uma exploração que leve o homem, gradativa e imperfeitamente, à proximidade das Ideas e ao encontro, precário, da verdade do mundo. Más cópias, os simulacros, enganam e afundam o homem no erro. Nessas condições, desfaz-se a qualidade totalmente caótica que os sofistas tinham imposto à natureza. Uma ordem se constitui. Ela não é natural, cósmica. É fabricada. Custa imenso esforço. A filosofia é esse esforço.
Aristóteles encontrou o princípio de ordem nas próprias coisas. Não num ‘céu das Ideas’ (que, de resto, dificilmente terá sido o que Platão propôs, mas assim passou a ser entendido), mas no próprio mundo sensível, que ele chamou sublunar. Todas as coisas (substâncias foi o nome que lhes deu) possuiriam em si mesmas, soterradas por aparências e qualidades individuais, a sua própria ordem, a espécie e o gênero a que pertencem (não copiam). Cada coisa teria em si mesma aquilo que a faz ser a coisa que ela é. Essa estruturação do mundo sublunar de um modo substancialista, essencialista, permitiu a Aristóteles ocupar-se de toda e qualquer coisa. Do pensamento (na Lógica); da natureza em si mesma (na Física); do que não é nem apenas lógico nem apenas físico (na Metafísica); das matemáticas como artes da ordem; das ações humanas (Ética, Política, Poética, Retórica, Legislação); das substâncias naturais particulares (os animais, as plantas, os meteoros…). Aristóteles olhou para o céu. E viu-o fixo, ordenado em esferas dotadas cada uma da sua própria substância (que se expressava como um deus e se corporificava em um astro a que o deus dava seu nome), tendo no centro, obviamente, o ponto de onde a observação era feita – a Terra.
Quando Aristóteles olhou para o céu separou o mundo, que é sublunar, do cosmos, supralunar, onde reina uma ordem diversa da nossa aqui de baixo. Uma ordem, digamos, mais ordenada. Menos afetada pelas individualidades, acidentalidades e multiplicidades selvagens das coisas do mundo. Um céu ordenado como uma melodia perfeita (Pitágoras gostaria dessa ‘harmonia das esferas’), cuja esfera mais exterior é a das estrelas fixas, eternas, cercadas por Deus, a única substância imóvel. Um céu perfeito.
Temos agora então o mundo – a totalidade das substâncias sublunares, de que trata a Metafísica; a natureza ela própria, de que se ocupa a Física; a natureza particular, talvez disséssemos hoje os fenômenos naturais, que observou em tratados menores como o Dos meteoros; e o cosmos, não mais força ou princípio, mas substâncias ordenadas num espaço mais perfeito, acima da lua da Terra. Mundo, natureza e cosmos não se enovelam mais, mas se ordenam entre si. Têm encontros, pontos de toque. A ordem desses encontros se dá ‘de baixo para cima’: o mundo e, nele, a natureza, ocupam uma posição inferior; o cosmos é o céu estrelado, acima da Terra e sua lua. Mas tudo se articula. O sistema de Aristóteles é total, fechado, não deixa resto. Talvez tenha sido essa fixidez do grande sistema que fez a concepção de Aristóteles, repetida por Ptolomeu no século II E.C., ter-se tornado canônica. Já não pedia a contemplação pré-socrática, o recurso aos mitos, às cosmogonias, olhar o céu com espanto. Não foi um efeito de época, de uma (que arrogância!) ‘infância da ciência’. Aristarco de Samos nasceu muito pouco depois da morte de Aristóteles, cinco séculos antes do nascimento de Ptolomeu, e no entanto viu o universo como um sistema dinâmico, com o sol no centro e a terra realizando um movimento de rotação. Os motivos de Aristóteles não foram científicos – foram filosóficos. É a filosofia, com a mais simples das perguntas – o que é? – que rege as possibilidades da ciência, que responde a outras perguntas derivadas: por que, como, quando, para que? (Hoje, aparentemente, não mais.)
Morto Aristóteles, escolas ditas ‘menores’, como o estoicismo e o epicurismo (séculos III a. E.C – III E.C) infletiram o eixo da filosofia, do conhecimento ‘objetivo’ para o cuidado. O cuidado de si, de qualidade eminentemente ética, alterou a relação do homem com a Natureza. A physis passou de objeto a princípio, de caos a lei. Dela se fez uma experiência de inflexibilidade e necessidade absolutas, e os filósofos (Lucrécio e seu ‘De rerum natura‘ são talvez o melhor exemplo) propuseram modos de comportamento, não propriamente de conhecimento, diante da Natureza, do Cosmos, do Mundo: agnosia, afasia, apraxia, ataraxia. Essa moral da construção de si tendo em vista não já o conhecimento, mas a felicidade, teve concepções que dificilmente escapamos de comparar com as modernas. É um equívoco, mas há verdadeiramente semelhanças. Epicuro, por exemplo, retomou do pré-socrático Demócrito de Abdera a compreensão do universo como um sistema de átomos e vazio, e mais nada. Sem transcendência, sem Deus. Um pensamento ateu e materialista. Zenão e os estoicos em geral igualmente conceberam a Natureza como Lei. Inverteram a hierarquia, firmemente estabelecida desde os sofistas, de um Logos superior à Physis, e da Physis como caos. A Natureza é a Lei, o único necessário. Opor-lhe um conhecimento, um discurso, sentimentos, ações, não é mais do que violar o único necessário. Modos arrogantes de desencaminhar-se da trilha difícil, mas possível, da felicidade, que o sábio percorre com a ajuda da filosofia.
Na compreensão paradigmaticamente importantíssima dessas escolas novas, a Natureza e o todo do universo vêm a fazer unidade. Nada escapa à inflexibilidade da Lei natural, e, pelo menos para a escola epicurista, tudo é átomos e vazio. Os estoicos ainda conceberam Deus como a alma do mundo, responsável pela ordem, anteparo ao caos. E, decorrente disso, uma Providência e um Destino. Mas tudo segundo a Lei. E a Natureza é a Lei.
Esse anti-paradigma correu paralelo e subterrâneo ao dos grandes sistemas de conhecimento, que acabaram dando na ciência moderna como sistemas unificados pela linguagem matemática universal, com a pretensão de virem a ser o único modelo válido para o conhecimento verdadeiro de tudo que pode ser efetivamente conhecido. Conquistaram essa posição no século XIX, não sem antes travar vários séculos de luta com a filosofia. Uma luta que teve origem renascentista, quando se concebeu que sendo Deus um mau objeto de conhecimento, devíamos nos concentrar nas suas criaturas: a Natureza e o Homem. Na abertura da época moderna, do século XVII em frente, a filosofia se especializou no Homem, concebeu-o como Sujeito, formulou a questão do conhecimento verdadeiro (que pertence ao Sujeito), e acabou servindo de fundamento epistemológico às ciências nascentes. O racionalismo cartesiano deu-se como base para as ciências ‘exatas’. O empirismo inglês ofereceu-se às ciências ‘naturais’. E a filosofia começou a perder sua potência originária. Passou a investigar as condições segundo as quais o conhecimento pode ser verdadeiro, sem o engano dos sentidos. Pôs-se a emular as matemáticas. Spinoza escreveu sua Ética ao modo dos geômetras – more geometrico. Descartes foi matemático, e teve uma concepção mecanicista do universo que horrorizou Newton. Leibniz criou o cálculo integral e diferencial. O modelo dos grandes sistemas, agora acompanhado pela novidade científica, acabou triunfando, e o paradigma das ‘escolas menores’ voltou à sua natureza de rio subterrâneo. E o modelo ‘ciência’ começou sua trajetória vitoriosa.
Não foi, no entanto, um triunfo óbvio. No século XV Copérnico lutou com a teologia medieval, herdada de Aristóteles e seu modelo fixista do universo. Opôs-se à Igreja. Depois, Galileu pagou com o silêncio a ousadia de continuar no caminho que Copérnico abrira. Giordano Bruno pagou com a vida. Houve uma luta sangrenta na origem da ciência moderna. Sistema contra sistema. O totalitarismo da escolástica medieval contraditado pelo totalitarismo de uma ciência nascente que via um universo regulado por leis universais e imutáveis – as leis naturais – que tinham sua âncora no fato (Galileu disse) de que Deus criou o mundo em matemática. E os filósofos renascentistas foram buscar inspiração para o seu renascimento da cultura nos estoicos e epicuristas. Vasculharam as bibliotecas dos mosteiros da Europa à cata de textos desses filósofos abafados pela teologia cristã. O encontro do livro de Lucrécio foi, literalmente, uma festa. Mas durou pouco. Vencidos (palavra para se tomar com imenso cuidado) Platão e Aristóteles e seus sistemas fechados, e apropriados em parte os epicuristas e seu materialismo absoluto, a ciência hipersistêmica seguiu seu curso, a filosofia se enfraqueceu, e o universo, a natureza e o mundo voltaram a gozar de uma certa unidade, maas agora problemática. As mesmas leis não valem para essas três dimensões da realidade física. Mas são, em certas condições, extrapoláveis de uma para a outra. Eco longínquo dessa unidade tensa e dessa extrapolação arriscada pode ser o que hoje se passa entre a astrofísica e a cosmologia: ampliar a lógica da física da natureza e do mundo para o infinitamente grande do universo é uma realidade – mas de modo nenhum uma evidência. Há nessa extrapolação uma fricção de paradigmas, uma luta de interpretações. Universo e natureza podem estar em vias de mais uma vez se separarem.
O triunfo da ciência no século XIX é bem conhecido. O positivismo arrematou o mandamento galileano de só descrever quantidades; reduzir qualidades a quantidades, quando possível; desprezar (como se não fizessem parte do mundo) qualidades irredutíveis, dessas que têm jeito de essência, ideia antiga e medieval, que a modernidade se esforçava por superar. A ciência tornou-se capaz, por esse efeito redutor, de fornecer provas reais, que os outros pretendentes à verdade, filosofia à frente, não conseguiam produzir. E a a ciência reinou. E quando, no século XX, o valor da eficácia veio a tomar o lugar (não o mesmo lugar, porém) da verdade, boa parte da ciência converteu-se a esse paradigma emergente, que talvez valha a pena chamar de ‘pós-moderno’, tamanho é o estrago que ele pretende impor ao paradigma moderno – e não só.
Nesse momento nosso contemporâneo, em que somos chamados a pensar de novo, de maneira nova, sem a obrigação ou a preguiça de repetir os modelos que desde a Grécia nos vieram por caminhos às vezes imprevistos, encontramo-nos numa conjuntura grandemente desafiadora. Por um lado, o universo pode continuar a ser pensado como toda a matéria existente. Mas: matéria e energia, matéria e anti-matéria, regularidades e singularidades, caos, desordem, ordem longe do equilíbrio, acaso e lei. O universo se complexificou, a ciência se deu novos desafios. Não é impossível cogitar de uma metacosmologia (que não resisto a pensar como uma metafísica da ciência, que nega a extensão da física ‘de proximidade’ aos fenômenos de enorme escala). Por outro lado, a natureza vem a ser experimentada como meio, ambiente da vida, que está no seu meio. Na época do antropoceno, a Natureza deixou de ser apenas objetiva e neutra. Ela age. A intervenção humana, pela via das sofisticadíssimas tecnologias hoje disponíveis, provoca, pela primeira vez na história da Terra, alterações geológicas no meio-ambiente. Que reage. Isso é muito mais radical do que dizem as ecologias do desenvolvimento sustentável e do save the planet. É um novo, poderosíssimo e, para os mais pessimistas, terminal estado da natureza no nosso planeta. Entre a ciência do universo e o cuidado assustado com a natureza, um aparente divórcio – de novo, mas por totalmente outros motivos – entre universo e natureza pode estar em vias de se consumar.
Entre os dois fica o mundo. O mundo é o espaço da habitação humana. Sua dimensão é marcadamente ética e política. O mundo é um ethos. E não anda fácil. Nesse momento nosso contemporâneo, filósofos, sociólogos, historiadores que receberam o nome de pós-modernos, e tiveram sua máxima expressão nas décadas de 80 e 90 do século passado, decretaram a falência dos modelos de pensamento que levavam em conta a presença de um real objetivo e do seu fundamento (que conjurava o caos); da capacidade de um sujeito, uma consciência, representar esse real para si, e nessa representação encontrar sua verdade. No nosso longo passado histórico-filosófico o real verdadeiro teve o nome de Ser. O fundamento, causa. E a verdade precisava ser absoluta, ou não era verdade. Assim como o Ser e o fundamento. Do fato de vivermos numa cultura relativística, perspectivística, depois do vendaval historicista do século XIX, os pós-modernos tiraram duas ordens de consequências. Primeira: não sendo mais admissíveis os absolutos, não há mais real que valha a pena considerar (mais valem os virtuais); não há mais fundamentos – há eficácias; a representação entrou em profunda crise, porque no mundo tecnológico globalizado produzem-se simulações de real, simulacros, que só têm a obrigação de funcionar; e não há mais verdade. Segunda ordem de consequências: a História, que se conta a partir do passado (causa), sobre fatos (real objetivo) para alcançar verdades, acabou. Essas duas consequências do pensamento pós-moderno são resultado de saltos lógicos. Mas isso já não é mais argumentável. Porque a verdade acabou. Que possam estar se constituindo agora mesmo, sob os nossos olhos cegados pela eficácia tecnológica de um mundo globalizado pelo consumo, novos modos de verdade, por exemplo, não ocorre aos pós-modernos. Houve vários modelos de verdade na longa história do Ocidente. Estávamos operando com um do século XIII, estabelecido por Santo Tomás. Houve outros. Poderá haver outros. Mas por enquanto não se fala nisso. Para os pós-modernos, é coisa antiga. Cheira a mofo. Ninguém quer cheirar a mofo.
E se deixássemos aflorar agora aquele belo rio estoico-epicurista? Não se diga que não seria natural. Não seria mesmo, mas isso deixou de ser um problema, na conjuntura de universo-natureza-mundo que é a nossa hoje. Temos um mundo para cuidar. É nossa casa. Nele se passam nossas vidas, nossas vidas comuns. Não há nada mais radicalmente importante. Lutar por eles, a vida e o mundo, é portanto uma urgência que deveria ser irrenunciável. Uma atitude ética e política na salvaguarda daquilo de muito precioso que pode estar em absoluta perda. Não sabemos. Perdemos, na passagem moderno-pós-moderna, o algoritmo que nos permitia avaliar perdas e ganhos. E, eticamente, não temos o direito de esperar que o movimento paradigmático da cultura contemporânea se estabilize para, só depois, contabilizar os nossos mortos. Se o real perdeu importância e a história acabou, haverá (são dados do Banco Mundial) cerca de dois bilhões de pessoas fora do mundo (porque não consomem) e congeladas no passado. Sem futuro nem esperança. Elas não nos passaram procuração para pensarmos em seu nome. Mas é indecente, hoje, exercermos o pensamento como se elas não estivessem aí. Sem olhar para elas, para essa África de sofrimento. (O termo é simbólico. A África está no mundo todo.)
Nesse contexto de urgência e luta (a luta no pensamento é coisa pobre, mas é que os historiadores-filósofos têm para oferecer) por que então não trazermos para a nossa companhia os antigos estoicos e epicuristas? As condições são propícias. Os grandes sistemas totais, fechados, sem resto e sem vida correndo, estão em crise. Desde o século XIX Nietzsche os denunciou. O cuidado de si, que esses ‘filósofos menores’ praticaram, foi redescoberto e trazido à nossa consideração por Foucault. Numa época de hedonismo, individualismo e egocentrismo a busca da felicidade através da sabedoria que o trabalho filosófico pode nos proporcionar não é um desejo desprezível, nem desarrazoado. Heidegger nos ensinou que é como poeta – criador, inventor de sentido – que o homem habita a Terra e constrói seu mundo. Temos referências, grandes, grandes faróis para um novo caminho. Por que não os adotaríamos, por que não poríamos nosso pé nele? Podemos não, é claro. Trata-se de uma escolha. Por isso é que falei de ética e de política. Mas nessa escolha não estão em jogo teorias e sistemas. Estão em risco a vida e a morte. A nossa, a do mundo.
Talvez – um talvez cheio de incerteza e de esperança – os estoicos e epicuristas, os ‘menores’, tenham a nos ensinar que a vida que busca a felicidade é conexa à natureza, que é lei. E que num universo de átomos e vazio somos apenas uma poeira que ondula. Mas, se tudo está em tudo, natureza, universo e mundo, poeira de estrelas.